Estudos Sociedade e Agricultura
Roberto José Moreira
Disputas paradigmáticas nos programas de pós-graduação em economia e desenvolvimento rural
Estudos Sociedade e Agricultura, 6, julho 1996: 65-80.
Texto elaborado visando a intervenção do autor nas “Jornadas Redcapa 1996 - La Educacion Superior en Economia Rural y Desarrollo Sostenible”, realizadas no Rio de Janeiro entre 6 e 10 de maio de 1996. Redcapa/CPDA/UFRRJ/FAO-Itália.
Roberto José Moreira é professor da UFRRJ/CPDA.
Introdução
A elaboração deste texto visa, de um lado, refletir preliminarmente sobre os artigos de Ruben (1996) e de Davini e Vitale (1996) sobre os cursos de pós-graduação de desenvolvimento rural preparados para as Jornadas Redcapa 96 e, de outro, socializar alguns desafios que têm ocupado o nosso pensamento nestes últimos anos e que envolvem tentativas de repensar questões associadas à agricultura e à agricultura familiar no capitalismo, tais como a resignificação da renda da terra como renda da natureza, a questão ambientalista, a tecnologia e a produção e apropriação do conhecimento técnico-científico, bem como introduzir algumas indagações sobre o saber e o fazer universitário.
Apontaremos alguns desafios que se colocam aos programas de pós-graduação em ciências sociais e em particular aos de economia e de desenvolvimento rural quando se procura associar à tradição destes programas a questão da sustentabilidade ambiental ou socioambiental. Dada a natureza desta intervenção, o tratamento das questões será pontual sem pretender com isto reduzir a complexidade das problemáticas envolvidas.
Sobre o tema do seminário e a problematização da pesquisa
Procuraremos aqui apresentar nossa perspectiva de análise sobre o campo de pesquisa de ciência, técnica e formação profissional ao mesmo tempo em que estaremos comentando e sugerindo questões para desenvolvimentos futuros. Este tópico estará mais diretamente relacionado aos textos de Ruben (1996) e de Davini e Vitale (1996) que apresentam informes sobre aspectos do estudo das pós-graduações em Economia y Políticas Agrícolas y Desarrollo Rural en Redcapa.
Olhando a mudança como campo de disputa
Este seminário tem como pressuposto a consciência da vivência de um cenário de grandes transformações que abarcam o conjunto da vida social das sociedades latino-americanas e que se fazem presentes nos processos agrários. O reconhecimento destas transformações, simbolizadas pelas noções de globalização, sustentabilidade e desregulamentação, rebate-se nas indagações sobre quais seriam os paradigmas da ciência, em geral, e de cada campo científico, em particular, sobre quais seriam o perfil e as relações entre universidade e sociedade, quais seriam os perfis dos cursos e dos profissionais[1] e, no caso deste seminário, qual seria o perfil do economista agrícola/rural no século XXI.
A estruturação do seminário seguiu o privilegiamento de quatro eixos básicos: economia agrícola; economia do meio ambiente e agricultura sustentável; desenvolvimento rural; e políticas agrícolas. Na medida em que este módulo está proposto para pensar os cursos de pós-graduação em desenvolvimento rural, todos estes temas estão novamente imbricados e complexificados pelas questões postas pela institucionalização e desenvolvimento deste campo científico na esfera do ensino, da pesquisa e da interação com a sociedade abrangente.
Neste contexto, parece-nos relevante ressaltar que estamos examinando um processo social institucionalizado nos cursos de pós-graduação. Isto significa reconhecer a existência de um espaço de exercício de relações de poder acadêmico e científico que, na atualidade, envolve não só um campo de disputa paradigmática disciplinar em uma perspectiva kuhniana,[2] como também um campo de disputa paradigmática do próprio fazer científico em uma perspectiva capriana.[3] Nestes sentidos estão em disputa visões distintas sobre a realidade de cada campo disciplinar e do próprio campo científico. Na medida em que a ciência fala sobre a realidade social e sobre a socialização da natureza,[4] também estão em disputa visões distintas de sociedade. Neste contexto os próprios conceitos e significados de desenvolvimento, de rural e de sustentabilidade são criticados e estão sujeitos a processos de resignificação, dependendo da dinâmica do embate e dos conteúdos postos em disputa.
Do ponto de vista analítico, reconhecer as inter-relações e interdependências entre o campo científico e um determinado campo disciplinar e os interesses que estão em jogo na sociedade abrangente significa reconhecer a impossibilidade de exame de um campo científico apenas a partir de processos endógenos. Dependendo da inserção sociohistórica de uma determinada área científica, as categorias analíticas podem assumir diferentes significações. Por exemplo, o campo de disputa que conforma a questão ambiental tem envolvido um emaranhado de significações que temos caracterizado como nebulosa ambientalista. Não é de todo improvável que nas sociedades desenvolvidas da Europa e da América do Norte esta questão assuma um significado de sustentabilidade ambiental no sentido de ambiente natural e de biodiversidade, aproximando a economia agrícola das ciências naturais, como aponta Ruben (1996: 6). Na América Latina e no Caribe a questão da sustentabilidade envolve o significado de sustentabilidade sociopolítica, envolvendo as questões da consolidação da democracia, da cidadania e até o direito a postos de trabalho e a terra de trabalho. Neste caso a economia agrícola poderá se aproximar ainda mais das outras ciências sociais, reduzindo ou até complexificando seu potencial de integração com as ciências naturais.
A entrada da temática ambientalista nos campos da tradição analítica do desenvolvimento agrícola e do desenvolvimento rural imprime a necessidade de resignificação conceitual que está se conformando como desenvolvimento sustentável. Como todo processo de mudança paradigmática na ciência este processo pode ser visualizado como um campo de disputa paradigmática e como um processo de construção de uma nova realidade, de uma nova visão de mundo.
Sem aprofundar este argumento, quando associamos a questão da sustentabilidade ao conjunto de mudanças que é vivenciado pelas sociedades contemporâneas e, em particular, às especificidades que estas mudanças assumem nos países da América Latina e do Caribe, podemos pressupor que em algum grau enfrentamos no interior dos cursos de pós-graduação em desenvolvimento rural um momento de disputa pré-paradigmática. Aqui estariam em disputa o paradigma ainda em vigor (e as instituições científicas e acadêmicas a ele associadas) e as novas interpretações, significações e formulações, cujos representantes (e as instituições emergentes a eles associadas) apresentam-se como críticos daquele paradigma. Apesar de terem como elemento unificador a condição de críticos do paradigma hegemônico, a natureza, a especificidade e a profundidade da crítica, bem como a capacidade de legitimação de novos métodos e teorias são diferenciados.
A vivência de um processo deste tipo e a complexidade que os envolve nas sociedades contemporâneas nos impede de visualizar com certeza qual será a forma e a natureza do novo paradigma; neste sentido há um componente de indeterminação que pode se apresentar nos resultados da pesquisa em andamento na Redcapa.
Partindo do pressuposto que estamos vivenciando um processo deste tipo e que alguma mudança paradigmática no campo do desenvolvimento rural está em curso, sugerimos aos pesquisadores da Redcapa que reflitam sobre a pertinência das noções de campo de disputa e de ruptura paradigmática para o aprofundamento dos estudos sobre a pós-graduação em desenvolvimento rural. A análise de Ruben (1996: 3-7) sobre os componentes acadêmicos para os currículos de economia agrícola na América Latina parece estar adotando o pressuposto implícito de uma evolución del paradigma, que a nosso ver nega a priori a possibilidade de visualização de uma ruptura paradigmática e adota uma perspectiva de interpretação evolucionista e acumulativa do conhecimento para este campo científico. Esta aparência de uma interpretação evolucionista pode estar associada à postura metodológica do autor que olha seu objeto de análise a partir e em defesa da Nueva Economía Institucional, que prioriza ...el estudio de la institucionalidad rural como um proceso endógeno, basado en relaciones de poder entre los agentes rurales (Ruben, 1996: 2-3). Esta postura metodológica e a defesa da importância da Nova Economia Institucional obscurecem, a nosso ver, a explicitação da ruptura que o novo impõe ao velho e a própria identificação da permanência do velho dentro dos curricula de desenvolvimento rural. A perspectiva analítica que Davini e Vitale (1996: 4-6) propõem para a identificação das tendencias en la estrutura de los curricula parece elaborar-se na identificação da tradición académica e na identificação dos movimientos críticos de tal enfoque, mais associada às noções que explicitamos acima.
A inserção sociohistórica e o campo das significações
A nosso ver, esta questão da resignificação de idéias, noções, conceitos e teorias não é tanto uma questão de idéias fora de lugar, mas sim um processo de disputa na apropriação de conceitos e teorias, um processo de disputa que envolve a apropriação do conhecimento. Neste contexto interpretativo, estes processos de disputa teórica e conceitual envolvem a disputa pela consolidação e sedimentação de significados. No campo científico a institucionalização de determinadas significações conceituais está associada ao processo de consolidação e hegemonia de um determinado paradigma científico.
A contextualização sociohistórica e estudos das significações conceituais podem apontar também para algum nível de indeterminação ou de nebulosidade nos critérios de eficiência e eqüidade em uso, nas diferentes orientações do pensamento no que se refere à estrutura agrária, ao papel do mercado, à mudança tecnológica, ao papel do estado e à organização rural e nos diferentes métodos e técnicas de investigação dos diferentes programas e campos científicos. O informe de Ruben (1996: 4, 10-14) aponta indícios deste campo de disputa e da indeterminação dos procedimentos e critérios.
Ainda nesta linha de raciocínio, o próprio processo histórico de institucionalização da ciência e da tecnologia são distintos quando se considera os países europeus, norte-americanos e latino-americanos. Enquanto em alguns um mesmo campo disciplinar pode ter um processo centenário de consolidação e institucionalização em outros envolvem apenas algumas décadas. Estas tradições distintas e a rigidez relativas dos campos disciplinares e da legitimação do saber e dos profissionais destes campos podem facilitar ou dificultar a emergência de centros multidisciplinares, interdisciplinares e transdisciplinares, seja lá o que estes conceitos vierem a significar no futuro. Há a possibilidade de que a América Latina se apresente como um campo mais propício para a perspectiva analítica interdisciplinar, quando comparada com a Europa e os Estados Unidos.
O informe de Ruben (1996: 3) ressalta que na América Latina a comunicação e o intercâmbio conceitual da economia agrícola com a sociologia, a antropologia e outras humanidades têm sido mais freqüente e menos complicada do que na Europa e nos Estados Unidos. O autor aponta ainda para duas tradições diferentes de institucionalização da carreira de Economia Agrícola, como especialização dentro da Faculdade de Ciências Econômicas, recebendo o título de licenciado, e como especialização dentro da Faculdade de Ciências Agrárias, recebendo o título de engenheiro. Aponta ainda que em alguns institutos de Educação Internacional foram criadas carreiras de Desenvolvimento Rural, buscando um vínculo acadêmico entre sociologia/antropologia rural e economia agrícola (Idem: 9).
Gostaríamos de ressaltar que a noção de funções de integração do currículo universitário de Davini e Vitale (1996: 6-7) parece-nos adequada para o estudo dos processos de institucionalização dos programas e da facilitação do diálogo entre disciplinas e, conseqüentemente, dos temas relevantes de ensino e pesquisa que são legitimados. Há a possibilidade de que o diálogo entre as ciências sociais e as ciências naturais seja mais amplo e frutífero naqueles centros e programas que emergem da Faculdade de Ciências Agrárias quando comparado com os oriundos das Faculdades de Ciências Econômicas.
Contextualizando a análise de Ruben
Na apresentação de sua análise, Ruben (1996:1) coloca como sua intenção buscar una vinculación entre los temas de desarrollo rural tal como son dictatos por el desarrollo de la realidad socioeconómica del continente latinoamericano, con la reciente evolución del marco metodológico la corriente de la Nueva Economía Institucional, de tal manera que se lograra una adecuación de la orientación académica de la Ensenãnza Superior en Economía Agrícola que responda a las necesidades de la población campesina, que gostaríamos de fazer alguns comentários.
Não está explicitado, no informe do autor, quais são os temas de desenvolvimento rural que são ditados pelo desenvolvimento da realidade socioeconômica do continente latino-americano e nem está demonstrado que a sedimentação do marco metodológico da Nova Economia Institucional promoverá a adequação necessária no ensino superior de economia agrícola na América Latina para que este responda às necessidades da população camponesa. Em que sentido pode-se afirmar que esta mudança paradigmática nos cursos deslocará o poder dos agentes rurais em favor de uma hegemonia dos interesses camponeses?
O reconhecimento, que está explícito e demonstrado na estrutura do informe, de que a perspectiva analítica da Nova Economia Institucional permite identificar aspectos relacionados con el diseño curricular, basándose en una mayor precisión de la diversidad rural que determina los diferentes niveles de (des)agregación analítica e se constituiu em uma perspectiva para la retroalimentación entre el análisis disciplinario y multidisciplinario (Ruben, 1996: 2) não é suficiente para responder às necessidades da população camponesa.
Gostaria de destacar ainda que reconhecer que a Nova Economia Institucional, ao priorizar ...el estudio de la institucionalidad rural como un processo endógeno, basado en relaciones de poder entre los agentes rurales (Ruben, 1996: 3), permite visualizar a complexidade dos interesses em jogo na esfera rural e impõe um diálogo interdisciplinar da economia com a ciência política. Isto, no entanto, não significa, necessariamente, aceitar que os processos não endógenos ao mundo e aos agentes rurais não estejam presentes e atuantes. No mundo contemporâneo, e nas sociedades latino-americanas, o recorte dualista rural-urbano parece-nos inconsistente e reducionista.
Para finalizar este ponto do comentário gostaríamos de ressaltar que o material empírico (a bibliografia de referência) utilizado pelo autor é dominantemente norte-americana e européia. Poderíamos dizer que sua análise refere-se ao estado atual das artes dos cursos de pós-graduação de economia rural nestes países e da presença da Nova Economia Institucional nestes países. O estado das artes na América Latina só poderá ser visualizado com o avanço da pesquisa bem como a presença e a importância da Nova Economia Institucional na América Latina, o que ainda está por se fazer. O título do informe e o desenvolvimento da argumentação pode estar significando que o autor propõe que a Nova Economia Institucional se constitua como uma parte componente dos curricula na América Latina.
Alguns desafios da ruptura paradigmática
Capra (1982: 259), argumentando sobre a nova visão de realidade que estaria associada a uma concepção sistêmica da vida, vai afirmar que esta nova visão baseia-se na consciência do estado de inter-relação e interdependência essencial de todos os fenômenos físicos, biológicos, psicológicos, sociais e culturais. Esta visão vai requerer que se transcenda as fronteiras disciplinares e conceituais. A consideração da problemática do desenvolvimento sustentável como um desdobramento do campo da tradição do desenvolvimento rural envolve, a nosso ver, desafios maiores do que aqueles que têm sido postos pela Nova Economia Institucional. Sem pretender ser exaustivo, estaremos neste item argumentando sobre alguns destes desafios.
Conceito de natureza
Entendemos que a questão ambiental está associada aos processos culturais da globalização, à valorização da questão ecológica e à construção de um novo patamar competitivo da ordem capitalista, que apresentará elementos de um capitalismo ecológico. Estes movimentos e mutações tendem a recolocar a questão do uso e da propriedade da terra e do meio ambiente natural no capitalismo. De um lado, este requisito recoloca o entendimento da especificidade do patrimônio em terras e da própria resignificação e revalorização da teoria da renda da terra na análise da dinâmica capitalista e, de outro, requer que coloquemos em questão o próprio conceito de natureza que está associado ao pensamento científico e aos campos disciplinares da economia e da economia política, em geral, e da economia rural e do desenvolvimento rural, em particular. Em Moreira (1995a) considerávamos aspectos desta resignificação elaborando o que então denominávamos de renda da natureza ao mesmo tempo em que considerávamos a especificidade da mercadoria terra e do processo de territorialização do capital.[5] Reconhecíamos então que a propriedade da terra, e dos recursos naturais, coloca o seu proprietário na disputa dos excedentes econômicos e procuramos demonstrar que a renda diferencial I, de fertilidade e localização, está associada a processos sociais e não às condições naturais externas à sociabilidade humana. De um lado, a noção de fertilidade foi reinterpretada não como um atributo natural das terras mas como um atributo do conhecimento que se tem sobre estes recursos naturais. Neste sentido a fertilidade da terra tornou-se referenciada ao contexto histórico e cultural que valoriza estas terras. De outro lado, a localização é sempre relativa aos mercados, lócus privilegiado da sociabilidade capitalista. Procuramos destacar ainda que a valorização do patrimônio em terras, portanto a territorialização do capital, é um processo mais amplo do que os processos associados às terras em produção, pois envolve a valorização das terras improdutivas e de usos não agrícolas, no presente e no futuro.
Cremos que esta tentativa de reinterpretação, de um lado, reconhece a impropriedade de se falar do rural e do agrícola como entidades separadas da dinâmica do todo social e, de outro, imprime um novo significado à disputa capitalista: a propriedade dos recursos naturais capacita que seu proprietário entre na disputa dos excedentes econômicos, presentes e futuros, gerados pelo conhecimento aplicável ao uso destes recursos. Dito de outra forma, o conhecimento tecnológico ou cotidiano aplicado às terras pode ser apropriado privadamente pelo proprietário dos recursos naturais, simplesmente pelo exercício de sua posição de proprietário. A nosso ver, o abandono do campo analítico que envolve as considerações sobre a terra em particular e, em geral, sobre as forças da natureza deveu-se ao fato do predomínio do modelo analítico do capital industrial, como se a indústria não se utilizasse das forças naturais nos processos de produção industrial.
Estas tradições têm tido dificuldades de analisar os processos de inovação tecnológica na agricultura. Esta dificuldade aparece nas elaborações e debates sobre a renda da terra, em especial na interpretação da renda diferencial I e no campo analítico da renda diferencial II. No campo analítico da competição intercapitalista, que reconhece a propriedade industrial (a propriedade dos meios industriais de produção) como distinta da propriedade da terra (a propriedade dos meios naturais da produção), o debate se concentra na existência ou não de um monopólio específico, que seria o monopólio privado da terra. Analiticamente esta questão se torna visível na discussão sobre a renda absoluta, na teoria da renda da terra.[6]
Em geral diz-se que o progresso técnico na agricultura visa a superação das barreiras de ordem natural, uma espécie de luta da civilização contra a natureza e não um embate entre forças e classes sociais pelo controle dos recursos produtivos e pela apropriação do excedente econômico.
Esta tradição daria assim uma especificidade à agricultura quando comparada ao comércio, à indústria e às finanças, estes marcadamente entendidos como campos de disputas sociais. A especificidade da tecnologia na agricultura teria a ver com os fatores climáticos, com os fatores ligados à dotação de recursos naturais e com o fato de que os processos produtivos na agricultura assentam-se em processos biológicos. Neste sentido a tecnologia teria que ser adaptada ao meio e estaria condicionada ao ciclo de vida e produtivo de plantas e animais,[7] que expressa uma interpretação que naturaliza o social e biologiza as ciências sociais.
A nosso ver, os recursos naturais, dentre os quais a terra, participam do processo produtivo e seus usos são socialmente construídos e não dotações da “natureza”. O que conta é o conhecimento aplicado que se tem sobre os usos presentes e futuros dos recursos naturais. Este conhecimento é um produto social. Entendemos que o que ocorre é um processo de socialização da natureza, não no sentido de uma socialização da propriedade, mas, sim, no capitalismo, uma socialização capitalista da terra e da natureza. Esta mercantilização da terra e da natureza pode ser entendida pela noção de territorialização do capital.[8] A propriedade privada dos recursos naturais viabiliza que o proprietário entre na disputa dos excedentes econômicos gerados.
Creio que estas questões estão correlacionadas àquelas hoje postas pela sustentabilidade agroambiental e pelo capitalismo ecológico, bem como às novas formas de apropriação do conhecimento que se tem sobre a natureza.
A apropriação privada do conhecimento e progresso técnico
Parece-nos necessário repensar os conceitos de natureza, de tecnologia e de apropriação privada que tem permeado e conformado a tradição da economia política e da economia. Esta tradição tem-se desdobrado no privilegiamento da tecnologia como a variável estratégica e autônoma dos processos de desenvolvimento e tem conformado um papel legitimador do status quo social no tardo-capitalismo.[9] Neste contexto torna-se relevante a análise dos processos sociais de geração, transmissão e distribuição do conhecimento, o que também significa no capitalismo analisar os processos de apropriação privada do conhecimento. Esta temática ganha relevância na medida em que reconhecemos que em nossa contemporaneidade a indústria cultural e a mercantilização da imagem ganham destaque significativo na configuração da dinâmica capitalista. A sustentabilidade associada ao contexto das revoluções tecnológicas da comunicação, da engenharia genética[10] e da mercantilização do subjetivo deixam visível a importância da questão da apropriação privada sobre o conhecimento.
Do ponto de vista dos processos econômicos, a institucionalização da ciência e da técnica significa investimentos sociais, públicos e privados, em educação e pesquisa e, conseqüentemente, na expressão dos interesses hegemônicos na configuração das políticas educacional, científica e tecnológica. Neste contexto, a própria produção social do conhecimento torna-se campo de disputa capitalista e a tecnologia não pode mais ser considerada como variável independente, como tem sido o procedimento da tradição analítica da economia e da economia política.
Na análise dos fundamentos do progresso técnico no capitalismo este tem sido tradicionalmente associado ao processo de lutas de classes e ao processo de competição intercapitalista.[11] No primeiro nível de análise, o que conta é a diferenciação fundamental entre proprietários e não-proprietários dos meios de produção que estão em uso ou que podem ter potencialidades de uso futuro.[12] Este nível analítico vai tornar visível que o progresso técnico, a longo prazo, pode ser visto como a forma de o capital (as relações sociais do capital) contrapor-se à tendência decrescente da taxa de lucro e como meio de aprofundar a submissão do trabalho ao capital.[13] Em nossa contemporaneidade esta visualização aponta para processos estruturais de exclusão ao emprego e ao acesso a rendas, em tal sentido que estas sociedades tem sido vistas como em um processo de apartação social. No segundo nível de análise, o que conta é a diferenciação entre os capitais privados e suas formas sociais de organizações empresariais ou privadas não empresariais, como é o caso da agricultura familiar. Este é o campo analítico que deixa visível a competição intercapitalista e a operação das forças dos mercados.[14] Neste nível, o progresso técnico é visto como arma da concorrência intercapitalista e como meio de aumentar a eficiência produtiva do trabalho associado a um determinado capital privado. Este é também o campo analítico dos processos de inovação, adoção e difusão tecnológica. Aqui, a lógica tecnológica do processo competitivo garantiria ao empresário inovador uma vantagem relativa frente aos competidores. Com o barateamento relativo de seus custos de produção sua taxa de lucro se amplia, aumentando seu poder de competição e de investimento.[15]
Gostaria de ressaltar que, regra geral, por detrás das elaborações analíticas relativas à importância do progresso técnico na competição intercapitalista estão dois pressupostos, não explicitados. O primeiro é o de que o modelo de operação capitalista é o modelo de operação do capital industrial e que a mercadoria é necessariamente um bem material. O segundo é o de que o controle da tecnologia está objetivado no controle dos meios de trabalho socialmente produzidos (os instrumentos industrializados da produção). Em ambos os pressupostos o controle sobre a terra e sobre a natureza pouco tende a explicar. A teoria da renda da terra torna-se um apêndice da teoria geral e tende a ser vista apenas como um elemento da distribuição do excedente econômico. Cumpre notar que em muitos programas de pós-graduação em economia e desenvolvimento rural a teoria da renda da terra não aparece como elemento dos conteúdos disciplinares. Isto pode ser um indicador da hegemonia dos enfoques urbano-industriais no estudo dos temas agrários. Discutir a sustentabilidade ambiental requer portanto uma nova problematização destes pressupostos, que a nosso ver passa pela compreensão de que a questão tecnológica no capitalismo é uma questão da apropriação privada do conhecimento aplicado,[16] de que a terra e os recursos ambientais são elementos da produção e de que a propriedade sobre estes recursos viabiliza seus proprietários a disputarem a apropriação do conhecimento que se tem sobre os seus usos, no presente e no futuro.
A tecnologia como variável independente
Uma outra tradição herdada, que está presente nos economistas clássicos, neoclássicos e marxistas e na sociologia marxista e schumpeteriana,[17] é a de desconsiderar os processos sociais de produção de conhecimento tecnológico como parte componente da lógica de operação da dinâmica capitalista.
O raciocínio analítico que incorpora o “capitalista inovador” de Schumpeter e “aquele capitalista que incorpora a tecnologia” de Marx está calcado em um modelo analítico onde os processos sociais associados à produção e apropriação privada da tecnologia estão fora do modelo. A tecnologia assume assim o papel de variável independente, a inovação tecnológica é tomada como um dado, sem necessidade de explicação, ou mesmo de análise.
Diversos autores, dentre eles Habermas (1968) e Bell (1973: 415-448), vão argumentar sobre a institucionalização da ciência e da técnica no “tardo-capitalismo”, onde a ciência e técnica são vistas como forças produtivas, e nas sociedades “pós-industriais”, onde este campo é visto como politicamente conformado.
Em nossa contemporaneidade as formas de operação das indústrias das comunicações e propaganda, do setor financeiro e do campo social de produção e transmissão do conhecimento científico e tecnológico tornam visível a operação da psique nos processos sociais de decisão. Torna-se cada vez mais visível a mercantilização do subjetivo e da imagem como campo de aplicação do capital e com amplas possibilidades de vir a tornar-se, em associação com o capital financeiro, a esfera hegemônica das sociedades pós-industriais.
Neste contexto, a mudança tecnológica assume uma faceta econômica e cultural e a apropriação privada da tecnologia torna-se cada vez mais visível como a apropriação privada do conhecimento e de elementos da cultura, postos como elementos da dinâmica da indústria cultural.
O processo pode assim ser visualizado como um processo de valorização e desvalorização econômica e cultural das técnicas, que entendemos estar também associado à valorização e desvalorização das formas sociais associadas a estas técnicas, sejam em seus aspectos socioeconômicos, sejam em seus aspectos socioculturais (Moreira: 1996a).
Reconhecemos que a superação paradigmática destas tradições analíticas coloca uma multiplicidade de questões além daquelas que aqui foram abordadas.
Finalizando
O peso da tradição científica institucionalizada nos diversos campos científicos e disciplinares está também internalizada na psique dos pesquisadores pela formação científica herdada. Os processos em curso e a valorização da crítica e da liberdade de pensamento que são norteadores da ética e dos valores do campo científico certamente impulsionarão processos de mudanças que podem se configurar como ruptura paradigmática no campo do desenvolvimento rural. A nosso ver os processos de mudanças endógenos ao campo científico não são suficientes para direcionar os processos sociais e nem são independentes deles.
Olhar para os processos sociais procurando reconhecê-los como processos dinâmicos prenhes de complexidade e de indeterminação, visualizá-los como expressão dos processos integrativos e como campo de cooperação que conformam e reconformam a totalidade cambiante da sociedade e entendê-los também como expressão de atividades auto-afirmativas e como campos de disputa que conformam e reconformam as identidades cambiantes de indivíduos, grupos e classes sociais torna-se o grande desafio de uma ruptura paradigmática de fundo.
Referências bibliográficas
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Notas
[1] Temos refletido sobre estas questões em Moreira (1990), onde discutimos o espaço e o papel das ciências sociais nos cursos de graduação das áreas técnico-profissionalizantes; em Moreira (1991), onde discutimos aspectos da incorporação das questões da ecologia na economia e na economia política e insistimos na necessidade de incorporar as condições de vida na noção de meio ambiente; em Moreira (1993), onde abordamos alguns significados da questão ambiental em suas relações com o pensamento científico, a cultura e a ECO-92; em Moreira (1994a), onde refletimos sobre a formação interdisciplinar e o desenvolvimento sustentável, referidos à problemática da pequena produção agrícola; em Fernandes e outros (1994), onde problematizamos a especificidade da universidade pública no Brasil e algumas demandas no Século XXI; em Moreira (1994b), quando enfocamos algumas teses equivocadas sobre as relações entre a universidade e a sociedade; em Moreira (1994c), com respostas a uma enquete universitária realizada pela revista Estudos Sociedade e Agricultura entre vários professores; e em Moreira (1996), onde discutimos algumas questões da atualidade na formação profissional das ciências agrárias no contexto do Programa Alfa, rede Estrela.
[2] Para estas noções veja Kuhn (1989).
[3] Para Capra (1982), as transformações que vivenciamos colocam em questão o próprio paradigma científico herdado e apontam para rupturas das perspectivas dualistas e disciplinares e até dos pressupostos filosóficos básicos da ciência herdada do cartesianismo.
[4] Estamos falando de socialização da natureza como um processo no qual a dinâmica das relações sociais e culturais historicamente configuradas conformam a visão e a interação que as diferentes classes e categorias sociais vão ter com a natureza, dentre as quais o próprio conceito de natureza e de realidade natural. Esta noção é oposta ou simétrica à noção de naturalização do social.
[5] Nesta tentativa de resignificação a terra é considerada um indicador das condições bioclimáticas que estão a ela associadas. Neste novo sentido, falar em apropriação privada da terra ou territorialização de capital significa falar em apropriação privada da natureza e em uma espécie de naturalização do capital. Veja também Moreira (1995b) onde este enfoque é utilizado na análise da agricultura familiar no capitalismo.
[6] Veja Moreira (1995) onde, refletindo sobre algumas destas questões, reinterpreto a renda da terra como renda da natureza.
[7] O que provocaria uma dissociação entre tempo de produção e tempo de trabalho, própria dos processos biológicos. Neste sentido haveria uma espécie de primazia das inovações biológicas que afetariam a rotação do capital na agricultura, bem como poderia potencializar outras inovações tecnológicas, como as mecânicas e físico-químicas.
[8] Veja Moreira (1995a), para detalhes do entendimento desta noção. Nossas discussões sobre a produção e apropriação do conhecimento e a renda da natureza diferem-se da perspectiva marxista e ricardiana, considerando a terra como um bem produtivo. Em Marx e Ricardo, mas não claramente em Smith, a propriedade da terra é tomada como um elemento apenas da distribuição de valores. A “fertilidade” (produtividade) de um recurso natural (ecossistema) é socialmente construída no sentido de que o que conta é o conhecimento que se tem sobre a fertilidade e não a fertilidade em abstrato. Por exemplo, o valor econômico das terras com petróleo, das terras de cerrado e da biodiversidade não se expressa sem as tecnologias (o conhecimento) associadas ao seus usos produtivos.
[9] Habermas (1968) destaca que o conhecimento científico e sua institucionalização explicita seu papel como força produtiva do capitalismo, bem como o capacita a exercer ideologicamente o papel legitimador e orientador da ordem social capitalista.
[10] Esta vertente da tecnologia se desdobra nas questões dos genomas e dos direitos sobre a biotecnologia.
[11] Seja na vertente marxista e clássica da economia política, seja na vertente neoclássica da economia.
[12] Na perspectiva marxista este é o campo de operação das leis de movimento do capital e da operação analítica da teoria do valor.
[13] Mantendo e reproduzindo os elementos fundamentais do modo de produção capitalista, dentre os quais, a propriedade privada e o “trabalho livre”.
[14] Na perspectiva marxista este é o campo de operação das leis de mercado, o campo da dinâmica do capital e da operação analítica da teoria dos preços.
[15] Não argumentaremos aqui sobre a importância de se considerar o poder de mercado no capitalismo contemporâneo e como este poder de mercado torna-se um elemento extremamente importante na competição intercapitalista dos mercados imperfeitos, onde operam as formas sociais camponesas e da agricultura familiar. Apresento esta argumentação em Moreira (1981, 1995b).
[16] O debate e a legislação sobre patentes - os direitos sobre o conhecimento tecnológico - são um dos aspectos desta compreensão.
[17] Para uma visão sintética destas interpretações veja Giddens (1990).