Estudos Sociedade e Agricultura
Jorge O. Romano
Atores e processos sociais agrários no Mercosul
Estudos Sociedade e Agricultura, 6, julho 1996: 91-113.
O presente trabalho foi desenvolvido tendo como uma de suas referências principais o relatório de pesquisa: “Integração econômica regional, estratégias agroindustriais e grupos sociais rurais: o caso do Mercosul”, de N. Delgado, L. Lavinas, R. Maluf e J. Romano, elaborado para o Ibase. No que se refere aos atores sociais, nessa pesquisa colaborou G. Rogel. Uma primeira versão deste artigo intitulada “El Mercosur como proceso social: el reconocimiento público y las estrategias de los actores sociales agrarios brasileños en el contexto de la integración regional” foi debatida tanto no Seminário Internacional “Argentina frente a los procesos de integración regional: los efectos sobre el agro”, organizado pela Faculdade de Ciências Agrárias da Universidade Nacional de Rosario e pela Federação Agrária Argentina na cidade de Rosario, Argentina, em agosto de 1994, como no XVIII Encontro Anual da Anpocs, em Caxambu (MG) em novembro do mesmo ano.
Jorge O. Romano é professor da UFRRJ/CPDA.
O Mercosul como processo social
Os “consensos” e os “dissensos” dos discursos, das visões e das tomadas de posição referentes ao Mercosul, dos empresários, políticos e sindicalistas, assim como as diferentes situações que esse processo apresenta nas matérias dos jornalistas e nas análises dos pesquisadores, permitem questionar os termos estritamente econômico-administrativos que, com freqüência, predominam nos discursos governamentais sobre a integração regional. Transcendendo esta perspectiva reducionista, este conjunto de elementos aponta para a complexidade do Mercosul como fenômeno social.
Como exemplos desta complexidade, cabe ressaltar que ao mesmo tempo que se apresentam situações de reconversão produtiva, de migração de capitais, de criação de novas modalidades de empresas e de ajuste de calendários e cronogramas administrativos, o Mercosul também compreende questões que dizem respeito à re-articulação entre os estados nacionais com o surgimento de focos de tensão intra e intergovernamentais, a diferenciação e a marginalização de grupos sociais e as tentativas de constituição de novas formas de organização da ação coletiva dos atores sociais.
Assim, parece-nos mais apropriado tratar o Mercosul em termos de um complexo processo social que aponta para transformações significativas nas relações políticas, econômicas e culturais entre os atores sociais dos países do Cone Sul, acompanhando as tendências de globalização e regionalização que se manifestam em escala mundial. No que diz respeito ao espaço agrário, o Mercosul, como processo social, pode vir a significar uma nova onda de “modernização” segmentada, com efeitos seletivos sobre os grupos sociais agrários. Tendo como pólo as grandes empresas agroindustriais e da área de distribuição e comercialização - transnacionais e nacionais - um dos cenários mais prováveis é a reprodução, de forma agravada, dos modelos concentradores de produção e distribuição existentes e a tendência ao crescimento da expulsão da mão-de-obra rural, implicando o aumento das contradições no sistema produtivo e no sistema social.
É a partir de uma perspectiva que considera o Mercosul como um complexo processo social que paulatinamente aponta para efeitos seletivos no espaço agrário, com a produção de mecanismos diferenciados de reconhecimento público, que neste trabalho tentaremos caracterizar as ações e os discursos dos atores sociais agrários brasileiros sobre o Mercosul.
Uma das formas sob as quais se manifestam os efeitos seletivos do processo social Mercosul tem sido através dos mecanismos de construção, nessa diversidade de situações, de diferentes instituições e grupos sociais como atores - públicos e privados - “sujeitos” e “objetos” da integração regional.
Esta construção diferencial dos atores sociais se realiza principalmente pelo reconhecimento público desses atores nos campos político, jornalístico e intelectual. O reconhecimento ou desconhecimento que se manifesta nesses campos - produtores por excelência da “opinião pública” - de diferentes instituições e grupos, de suas propostas e pontos de vista, tenderia a delimitar o cenário do Mercosul, dando contornos públicos e legitimidade a algumas das instituições e grupos - considerados como os “verdadeiros” atores do Mercosul - paralelamente à exclusão de outros.
Ao mesmo tempo, através dos mecanismos de reconhecimento delimitar-se-ia também o universo do pensável política e economicamente, isto é, os temas e problemas políticos e econômicos legítimos a serem debatidos quando se fala do Mercosul.
Um desses temas e perspectivas legitimados é a referência constante a exemplo da Comunidade Econômica Européia, como um caminho a ser seguido ou que adianta respostas a questões que nos coloca a integração. Essa perspectiva apresenta-se problemática devido às diferenças estruturais entre as integrações. Ante os blocos e as áreas regionais de comércio existentes hoje na economia mundial - a CEE, o Nafta e os países asiáticos do Pacífico - o Mercosul caracteriza-se como um bloco regional “periférico”, no sentido de que não é composto, nem liderado, por países industriais desenvolvidos, e tem seu potencial de crescimento autônomo e auto-sustentado bastante limitado pelos graves desequilíbrios internos e externos que incidem sobre seus países membros. A condição periférica dificulta a subordinação das políticas e estratégias nacionais a um projeto regional comum que se imponha como tal, a exemplo do que ocorreu na Comunidade Européia. O caráter vital dos vínculos econômicos de cada uma das nações participantes com os países centrais resulta num peso proporcionalmente maior das relações extra-bloco, ampliando as dificuldades para a harmonização das políticas nacionais necessária à plena constituição de um bloco regional.[1]
O Mercosul é - independentemente das suas nuanças e dos estágios atingidos - um processo em curso, que encontra suas manifestações últimas nos significativos incrementos nos níveis de intercâmbio regional entre os países signatários do tratado, e nos acordos assinados pelos presidentes em início de agosto deste ano, e que viabilizam a partir de 1/1/95, a criação de uma zona de livre comércio entre Argentina, Uruguai, Paraguai e Brasil, com uma tarifa externa comum.
Mas a construção do Mercosul como questão para os diferentes campos - político, sindical, jornalístico, intelectual e empresarial - vem sendo feita de forma diferenciada, sendo que, em vários deles, só se manifesta ultimamente e de forma lenta.
No campo político, a construção do Mercosul começou a ser feita em determinados grupos da burocracia do governo federal - que pertenciam, principalmente, as áreas de Relações Exteriores, Fazenda e Presidência da Nação - ficando circunscritas a circulação de informações e os debates a esses mesmos atores. Paulatinamente, sobretudo, a partir do tratado de Assunção em março de 1991, diversos membros do alto escalão do Executivo Federal, como os do Ministério da Agricultura e da Reforma Agrária, senadores, deputados, governadores, prefeitos e outras lideranças políticas - em especial da região Sul - vêm sendo obrigados a “tomar posição” com referência às situações produzidas com o advento do Mercosul e os cenários diversos que se visualizam.
No campo sindical, em especial no sindicalismo dos trabalhadores rurais, a pressão para “tomadas de posição” dos dirigentes e a incorporação do tema como questão nas discussões sindicais, preferencialmente na região Sul, é um dado recente e fragmentário, sendo ainda secundária sua posição na agenda de reivindicações.
No campo jornalístico, também só a partir do momento da assinatura do Tratado de Assunção é que o tema ganha mais espaço nas páginas dos jornais, mas, como veremos, com volume diferenciado de notícias segundo os “setores” e atores.
Entre os pesquisadores que tratam das questões políticas, sociais e econômicas da agricultura, o tema vem ganhando legitimidade também de forma lenta e restrita. O número de trabalhos e artigos sobre os processos de integração regional, e sobre o Mercosul em particular, tem aumentado só recentemente, acompanhando o progressivo crescimento da visibilidade das ações e dos discursos dos atores públicos e privados - sobretudo na imprensa - e a veloz institucionalização do processo colocada pela iminência dos prazos.
Mas a situação é diferente entre as grandes empresas de capital nacional e multinacional com sede na região, que têm reconhecido a importância da questão e vêm adequando de forma acelerada suas estratégias ao novo contexto. Um conjunto expressivo dos dirigentes destas empresas - 89% segundo pesquisa de finais de 1993 realizada pela Ogilvy & Mather Worlwide - têm incorporado o Mercosul em suas estratégias de desenvolvimento para os próximos anos. Mais da metade (53%) tinham implementado medidas concretas e 73% já operavam nos quatro países (Rogel, 1994).
Especificamente com relação ao campo jornalístico, uma constatação que se impõe é a do número reduzido de notícias sobre o nosso espaço de interesse - a agricultura - dentro do volume total de informações veiculadas. Os comentários nos jornais sobre os processos de intercâmbio comercial, de encontros e de formação de empresas referidos à indústria, às finanças e ao comércio em geral são muito mais freqüentes do que os referidos especificamente à agricultura. Esta predominância estaria refletindo uma particularidade do processo Mercosul: no Brasil tem-se afirmado que o Mercosul é uma questão que diz respeito mais ao setor industrial do que ao agropecuário. O que parece encontrar fundamento no fato de que a grande maioria das exportações brasileiras para os países que participam do Mercosul é de produtos manufaturados e industrializados. Da mesma maneira, os principais produtos que fazem parte da pauta de importações brasileiras dos demais países da região são produtos agropecuários.
Nesse sentido nota-se, através das informações, certo “otimismo” nas manifestações de empresários brasileiros que produzem bens de capital e equipamentos para a indústria, e também em alguns empresários agroindustriais representantes de interesses das indústrias de transformação, por exemplo, de derivados de suínos ou de produtos tropicais do tipo cacau ou açúcar.[2] Em contrapartida, empresários agropecuários brasileiros, produtores de cultivos de clima temperado (que concorrem com seus similares argentinos), manifestam continua “preocupação” ou “pessimismo” com o desenvolvimento do Mercosul.[3] Os discursos dos políticos e dos atores privados, as matérias elaboradas pelos jornalistas e, em geral, os estudos e ensaios produzidos no campo acadêmico, acompanham esta valorização generalizadora.
Assim, poderíamos dizer que, no processo de reconhecimento dos atores e dos temas e problemas “pertinentes” ao Mercosul, tem-se construído um consenso, uma visão legitimada que, cada vez mais, passa a assumir o caráter de pressuposto quando se fala do Mercosul: a oposição “otimismo” industrial e “pessimismo” agrário, no caso brasileiro, a qual teria sua equivalência no “otimismo” agrário e no “pessimismo” industrial, no caso argentino.
Estes tipos de generalizações ocultam conflitos de interesses muito mais complexos e diversificados dentro dos próprios espaços industrial e agrário dos respectivos países - conflitos esses que se manifestam nas ações e expectativas dos diferentes atores no Mercosul.
Em relação aos grupos sociais subalternos envolvidos no Mercosul, como os pequenos agricultores ou os trabalhadores assalariados, pouco se pode dizer a partir da análise dos materiais veiculados pelos conformadores da opinião pública, pois eles, e sua fala, não se têm constituído em “notícia” nem em atores e discursos legítimos no Mercosul. Se, de um lado, não surpreende a escassa presença dos grupos subalternos nos meios de comunicação de massas - no sentido de que, em nossa sociedade, é recorrente seu não-reconhecimento como atores políticos e econômicos na maioria dos fenômenos sociais dos quais fazem parte - por outro lado, essa constatação propicia uma primeira evidência sobre a reprodução de seu caráter subordinado em sua participação no Mercosul. Embora sejam partícipes desse processo social, não têm legitimidade para fazer-se ouvir, nem para “falar” através dos meios de comunicação de massas. No melhor dos casos, “são falados” pelos atores legitimados do processo Mercosul.
Isto é, outra característica geral encontrada na análise da forma como a questão do reconhecimento vem se desenvolvendo no Mercosul é o processo de “sujeitização/reificação” dos atores sociais. Na verdade, faz-se uma clivagem fundamental, agrupando, por um lado, aqueles com capacidade de iniciativa reconhecida: os representantes governamentais, os políticos e, especialmente, alguns empresários incorporados na categoria genérica de iniciativa privada. Eles aparecem defendendo ou criticando o processo Mercosul e fornecendo evidências empíricas para mostrar os “avanços” ou os “entraves” no intercâmbio regional, como prova do “êxito” ou do “fracasso” da integração. São os verdadeiros sujeitos do processo social Mercosul.
Por outro lado, existe um conjunto de agentes e de grupos sociais que - ainda que participem do Mercosul ou sofram seus efeitos - , por não terem sua capacidade de iniciativa legitimada, são reconhecidos e construídos como “objetos” do processo Mercosul. Nesse sentido, são “objeto” os trabalhadores - dos setores primário, secundário e terciário - , os pequenos e médios agricultores, os pequenos empresários, os consumidores em geral e o conjunto de seus mediadores e representantes. Sintetizando, é construído como “objeto” o denominado “terceiro setor”.[4]
Uma última característica geral que gostaríamos de ressaltar diz respeito não somente à diversidade de posições, mas sobretudo às mudanças e permanências dos papéis do Estado, do Mercado e do Terceiro Setor no processo social Mercosul.
Na proposta mais abrangente formulada pelos governos da Argentina e do Brasil em 1986, que incluía questões de intercâmbio tecnológico e nuclear de responsabilidade estatal, a integração parecia ser encaminhada com um papel ativo e prioritário do Estado enquanto ator central do desenvolvimento. Hoje fica cada vez mais evidente a diluição desse papel desenvolvimentista, independentemente da manutenção da sua capacidade institucionalizadora do processo de integração. Cada vez mais as iniciativas individuais dos agentes econômicos tornam-se fundamentais para a démarche do processo. A integração assume, portanto, uma dimensão fortemente comercial, coerente com as políticas que predominam nos países participantes.[5]
Mas em ambos os momentos do processo social Mercosul, manifesta-se a continuidade do papel secundário - beirando a exclusão - do terceiro setor. Ainda que na retórica do discurso oficial do Mercosul se mencione a necessidade da “participação ativa das sociedades nacionais” em sua totalidade, na prática política do Mercosul, as entidades representativas do terceiro setor foram marginalizadas dos processos decisórios, tanto pelos Estados como pelos atores dominantes do mercado, sendo-lhes atribuído, no melhor dos casos, um papel meramente consultivo.
O Estado e o monopólio da iniciativa política
As primeiras manifestações da ação do Estado nos revelam o Mercosul como o resultado da capacidade de monopólio da iniciativa política por parte dos executivos nacionais. Primeiro, porque o Programa de Integração e Cooperação Econômica entre Argentina e Brasil (PICE) foi feito sem a participação e o debate das diversas instâncias de representação da sociedade: nem através de parlamentares eleitos pelos cidadãos, nem de entidades organizadas representativas dos diversos grupos sociais, nem sequer da participação de grupos empresariais.[6] Também no Tratado de Assunção os executivos nacionais, de forma autônoma, tomaram a iniciativa política de levar adiante o processo de integração modificado entre os países do Cone Sul, fixando os objetivos do acordo, estabelecendo os marcos institucionais do seu funcionamento, determinando os instrumentos da integração e sugerindo as principais estratégias a serem implementadas.[7]
Paralelamente à concentração da iniciativa político-institucional, de forma coerente com a lógica liberalizante que caracteriza o Mercosul, os governos têm reafirmado que a integração se realize através dos “mecanismos de mercado”, enfatizando que cabe ao “setor privado”, em suma, ao mercado, o papel protagonista.[8] Efetivamente, a atuação do Estado, segundo os objetivos do tratado, deve “favorecer” as economias de escala, “estimular” os fluxos de comércio e “balizar” as ações do setor privado. Após ter tomado a decisão e fixado tanto os marcos institucionais como a forma de operação,[9] o Governo convoca o “setor privado” a tomar parte de subgrupos de trabalho - que são, junto com os fóruns, os espaços institucionais reservados a estes atores para discutirem as possibilidades e os estrangulamentos do processo - e deixa aos atores do mercado a tarefa de tornar-se o “motor do processo de integração”.
Assim, as ações governamentais vão se concentrando na geração de um ambiente institucional propício aos processos de intercâmbio comercial entre alguns grupos empresariais. Nesse sentido o governo tem dois tipos de atuação: como “promotor” de reuniões e como “mediador” de conflitos. A prática destes papéis está marcada por atritos e choques de interesses. O governo estimula encontros e seminários entre grupos de empresários, seja do Brasil, seja com outros de países vizinhos, onde se realizam “análises da complementaridade do setor”, trocam-se planilhas de custos, debatem-se aspectos estruturais e conjunturais, e “fecham-se negócios”. Quando os empresários envolvidos não conseguem chegar a acordos sobre as possibilidades de “complementaridade do setor”, os agentes governamentais assumem a tarefa de mediação.
Entre os atores políticos, o executivo federal entra em confronto com os governos estaduais, sobretudo da região Sul, e com os membros do legislativo federal. Em 1992 começou a funcionar a Comissão Parlamentar Conjunta do Mercosul, cuja seção brasileira composta por oito senadores e oito deputados, em sua quase totalidade das regiões Sul e Centro-Oeste do país. Assim, o legislativo procurou construir um espaço próprio de deliberação e de decisões, pretendendo estabelecer limites à burocracia dos diferentes ministérios federais, a qual, com a direção do Itamarati, vinha conformando com exclusividade o tecido político-institucional do Mercosul no Brasil.
Estas iniciativas de controle do legislativo na prática se diluíram com os acontecimentos da política nacional que envolveram fortemente o Congresso - impeachment do presidente Collor, processos a parlamentares por corrupção, eleições - , permitindo a continuidade da concentração da iniciativa política no executivo federal.
Os argumentos utilizados pelo Estado nas reuniões e encontros com os atores privados estão orientados por concepções de “eficiência de segmentos”, de “complementaridade de setores”, de “aproveitamento de vantagens comparativas pelas cadeias agroindustriais”, de “competitividade dos produtos”, quase nunca se remetendo aos atores sociais concretos. Estes tipos de categoria - “segmentos”, “setores”, “cadeias” e “produtos” - usados nos argumentos do discurso estatal possuem também uma “legitimidade” proveniente de seu caráter técnico e de sua utilidade nas análises macroeconômicas. Mas de um ponto de vista que contemple os interesses político-econômicos dos diferentes atores agrários, a colocação dos problemas nesses termos cria dificuldades, já que essas noções funcionam como homogeneizadores sociais ao diluir as diferenças econômicas e políticas dos atores sociais dentro dos espaços econômicos.
Quando, por exemplo, se levantam os problemas decorrentes da maior potencialidade agropecuária argentina, é freqüente lerem-se frases como “o leite brasileiro é um produto sensível”, ou “um setor afetado será o do trigo brasileiro”. Ora, não é “o leite” o produto sensível nem “o trigo” o afetado, mas os que serão “afetados” e sofrerão “sensivelmente” os efeitos da diferença de potencialidade são os seus produtores, os trabalhadores e os empresários das indústrias de transformação. E dentro do conjunto de atores, nem todos são igualmente “sensíveis” nem serão igualmente “afetados”.
Assim se leva a cabo uma segunda “reificação” dos atores no discurso oficial: a transformação de “setores” e “produtos” em “atores”, esquecendo-se ou não reconhecendo-se os atores sociais concretos, isto é, os produtores, os trabalhadores, os empresários. Esta segunda “reificação” do discurso do Estado, legitimada no campo político, é geralmente incorporada - ou pelo menos não questionada - nos discursos das entidades representativas dos pequenos produtores e das ONGs. Ao se constituir numa perspectiva consensual nos diferentes campos, a visão de que os problemas do Mercosul são de caráter técnico e econômico tende a se legitimar, induzindo, por exemplo, a se deixar de lado o conteúdo anti-social das políticas que orientam estes programas de integração, e diminuindo o reconhecimento da importância dos custos sociais do processo.
Apaga-se assim uma visão alternativa do Mercosul - um complexo processo social que envolve atores concretos, inseridos em relações que apresentam problemas e conflitos em diferentes dimensões técnicas, econômicas, ecológicas, políticas, históricas, sociais e culturais. As medidas de política que procuram a solução desses problemas e conflitos deveriam, necessariamente, levar em conta essa diversidade e multiplicidade do processo social Mercosul.
O papel da iniciativa privada
Nos marcos fixados pelos governos e nos campos político e jornalístico, a iniciativa privada tem sido reconhecida como o motor do processo de integração. A categoria é relevante, na medida em que, sob a aparência de sua generalidade e neutralidade, inclui grupos sociais e exclui outros, pois nem todos os atores do processo Mercosul têm a mesma capacidade de iniciativa.
Nessa visão consensual a iniciativa privada é um termo usado para se referir, sobretudo, aos grandes empresários. Isto é, atores que, à diferença de outros proprietários - como os pequenos empresários e os pequenos agricultores - , possuem não apenas uma ampla capacidade de “iniciativa econômica”, mas também de “iniciativa social” e “política”, que lhes possibilita uma fluida passagem nos meios de comunicação e nos espaços governamentais onde se decidem as políticas. No caso dos grandes empresários, estes, freqüentemente, não precisam da delegação e da representação corporativa da categoria para “falar” e se fazer “ouvir” pelo governo e pela sociedade; eles podem fazê-lo por si mesmos, já que personificam individualmente a sua categoria.
A construção da iniciativa privada - isto é, os grandes empresários - como atores privilegiados do processo de integração Mercosul não é alheia a problemas e conflitos com o Estado, sobretudo no que se refere à agricultura. O noticiário da imprensa tem veiculado nos últimos anos, de forma recorrente, o desconforto e a crítica dos empresários, sobretudo agrários, em relação, por exemplo, à “burocratização” e à “imposição dos prazos” nos encaminhamentos dados pelo Estado. Da mesma forma que nos cenários das políticas comerciais e agrícolas nacionais, quando são atingidos seus interesses econômicos pelas novas condições de concorrência, vêm a público falando em nome do setor, “para mostrar o modo conflituoso” pelo qual é conduzido o processo de integração.[10]
Estas manifestações de crítica, “preocupação” e “temor” perante a entrada de produtos agrícolas dos demais países do Mercosul denotam o “pessimismo agrário” que, em linhas gerais, se expressa nos discursos públicos dos empresários agropecuários brasileiros, nos quais se prevê até a “ruína da agricultura nacional”.
Paralelamente ao conjunto de problemas e críticas, no imaginário construído do Mercosul, apresenta-se a “valorização da própria iniciativa”, a partir do reconhecimento dos “êxitos” da integração nos empreendimentos pontuais, resultado da “capacidade de iniciativa” dos atores privados.
As notícias que exemplificam os “êxitos” e os “avanços” da integração e que marcariam os “rumos do processo” referem-se a estratégias e condutas de agentes econômicos que, por “própria iniciativa”, e até por fora dos espaços institucionais definidos pelos governos, começam a rever suas operações no Mercosul.
Entre essas estratégias bem sucedidas estão as desenvolvidas por empresas que podem produzir e agir em dois ou mais países, aproveitando as “vantagens comparativas”, “complementando” as bases produtivas e aumentando a “eficiência” do trabalho. Elas têm a “capacidade” ou bem de, por si próprias, integrar setores econômicos diferentes - como é o caso da Sadia que complementa o setor avícola com o de cereais e aproveita as vantagens comparativas de dois países[11] - ou bem de integrar processos diferentes de um mesmo tipo de produto, como é o caso do grupo Bongrain no setor leiteiro.[12] Sem dúvida estes atores agroindustriais se beneficiam do Mercosul. Representando um tipo de agente econômico que pode operar processos de intercâmbio comercial de forma mais ou menos independente, apontam para a relação significativa entre internacionalização de capitais e processos de integração regional.
Existem também estratégias de atores que implicam na clara migração de capitais. Há produtores que estão migrando para produzir em países vizinhos, onde os custos de produção são sensivelmente mais baixos. É o caso de grandes e médios produtores brasileiros de arroz, que migram para o Uruguai onde os custos de produção são metade do que no Brasil.[13] Os casos são variados,[14] mas a tendência geral é a migração de capitais brasileiros para os territórios dos países limítrofes, atraídos pelos preços da terra excepcionalmente baixos em relação ao Sul do Brasil.[15] Essas iniciativas levam à concentração da terra nas regiões fronteiriças dos países vizinhos, colocando em curso processos de reestruturação fundiária que deverão aguçar a expulsão de pequenos agricultores, com conseqüências sociais nada otimistas.
Finalmente, os efeitos do processo de integração do Mercosul se fazem sentir no campo da representação dos interesses patronais. Coexistindo com a estrutura sindical própria, apresenta-se uma diversidade de formas de representação, estabelecidas em função de diferentes critérios de agregação de interesses e âmbitos territoriais de atuação. A existência desta diversidade, em especial, das entidades que congregam os atores por cadeia agroindustrial, capacitou melhor os empresários, desde o início do processo, no enfrentamento das questões que a integração regional colocava. Mas a característica segmentada do processo e os efeitos diferenciados em termos regionais apontam para modificações nas relações de poder e prestígio entre as diversas entidades representativas do setor, em especial para a acentuação da tendência de perda de hegemonia das entidades tradicionais que congregam a representação única de interesses diversos, como é o caso da Confederação Rural Brasileira.
O papel secundário dos trabalhadores rurais e dos pequenos e médios produtores agrícolas
O processo de integração Mercosul, marcado por uma forte dimensão comercial, pode, do ponto de vista econômico, “dar certo” para algumas empresas. Mas os custos sociais são muito altos e nem o Estado nem a iniciativa privada - isto é, os atores sujeitos do Mercosul - têm tomado algum tipo de atitude político-econômica consistente com o objetivo de diminuir esses custos. No caso brasileiro não existe uma política consistente de reconversão produtiva, e muito menos políticas compensatórias.
Assim a integração regional segmentada que se manifesta no Mercosul está reforçando um novo processo de diferenciação dos atores sociais que se vinha delineando com o predomínio das políticas de liberalização. Esta diferenciação encontraria na distribuição desigual da capacidade de iniciativa entre os atores um de seus principais divisores de águas econômico-sociais.
Os atores sociais que constituem a iniciativa privada, isto é, os grandes empresários, são os verdadeiros sujeitos do processo de integração econômica regional.[16] Mas, paralelamente, o processo de diferenciação resulta no reagrupamento de diversos atores sem condições e possibilidades seja de se aproveitar significativamente das vantagens comparativas, seja de responder à elevação dos padrões de competitividade, e conseqüentemente, de participar ativamente do Mercosul.
Referimos um espectro social que inclui diversos agentes de setores determinados de atividade agropecuária, como cooperativas, pequenas e médias empresas agroindustriais, proprietários rurais médios e, sobretudo, pequenos produtores agrícolas. Estes agentes seriam “objetos” mais que “sujeitos” do processo de integração, já que lançados no novo espaço de concorrência não conseguem participar em condições que lhes permitam obter benefícios significativos, passando a sofrer basicamente os efeitos negativos do novo contexto. A capacidade de reação desses grupos, entretanto, não é homogênea, e depende 1) do grau de verticalização das cadeias produtivas em que se inserem; 2) de suas condições econômicas (financeiras, tecnológicas, de mercado, etc.) para viabilizar a reestruturação produtiva; e 3) do acesso às políticas públicas existentes ou que venham a ser formuladas no marco da integração.
Assim, encontramos vários grupos de produtores que, induzidos por empresas agroindustriais, estão conseguindo implementar a mudança de suas bases tecnológicas, visando a diminuição dos custos de produção, através de processos de “reconversão produtiva” que enfatizam a especialização. Essa estratégia encontra-se, por exemplo, entre produtores do leite no Rio Grande do Sul.[17] Também estão se desenvolvendo formas novas de reconversão produtiva com investimentos tecnológicos que favorecem a adoção de estratégias de “diversificação integrada”. É o caso de cooperativas do oeste do Paraná, as quais, ao mesmo tempo que continuam propiciando a alta produtividade no trigo e na soja, induzem os produtores a diversificar o leque de produtos integrados de alta qualidade.
Mas, também entre estes produtores que conseguem permanecer integrados as agroindústrias competitivas se apresentam perdas de sua autonomia e de sua capacidade de decisão - no que diz respeito às empresas às quais estão vinculados - devido à diminuição dos espaços de barganha, ante as ameaças do novo contexto da integração.
A grande maioria dos pequenos agricultores do Sul do Brasil auto-identificados como “colonos” não consegue sozinha implementar essas estratégias. São produtores diversificados e, embora possam dedicar mais atenção a um desses produtos através da integração à agroindústria, com freqüência se inserem no mercado também através da comercialização de outros bens. Só lhes resta, no melhor dos casos, uma estratégia de “diversificação de sobrevivência” diferente da “diversificação integrada” comentada anteriormente. Isto é, procurar diferenciar ainda mais sua estrutura produtiva, intensificando mecanismos informais de compra, venda e troca da produção dentro de suas comunidades com os outros produtores, os habitantes das vilas, os pequenos comerciantes e as cooperativas locais. Para estes atores, os novos contextos da liberalização e da integração funcionam como uma “segunda onda” da “modernização”, acentuando os efeitos seletivos negativos que esta ainda vinha produzindo.
Os efeitos da segmentação econômica e da diferenciação social em curso no processo de integração do Mercosul também operam no campo da representação de interesses dos pequenos produtores e dos trabalhadores rurais. Estão sendo abaladas as relações de poder e prestígio entre as entidades mediadoras. As formas predominantes que tem assumido a representação de interesses desses atores - seja através da estrutura sindical fundada em sindicatos únicos por município, federações estaduais e confederações de nível nacional, seja por meio da organização cooperativa e de movimentos reivindicativos específicos - apresentam limitações de caráter estrutural no desempenho eficiente de suas funções ante as demandas que o novo contexto coloca. Isto é, se estas entidades já manifestavam dificuldades de atuação como representantes da diversidade de grupos sociais criados no processo de agroindustrialização nacional, essas dificuldades se multiplicam frente à complexidade de interesses resultante do novo processo de diferenciação.
No que diz respeito especificamente aos enfrentamentos dentro do sindicalismo, a permanência dos efeitos do processo recolocam, em outro patamar, as polêmicas em torno da unicidade sindical, da representação por categoria produtiva, da desespacialização da representação e da representação intrafirma.
Ante estes cenários desfavoráveis, as entidades representativas dos pequenos produtores e dos trabalhadores rurais - como a Contag e o DNTR da CUT - manifestam uma visão muito crítica do processo de integração. Em geral seus discursos refletem, de um lado, preocupações tanto de ordem econômica - em especial sobre as possibilidades de reprodução social dos pequenos produtores - , como também a vontade política de entrar em cena e de serem reconhecidos como atores que efetivamente participem do processo. Ao mesmo tempo distinguem claramente os efeitos diversos do Mercosul entre os atores agrários, beneficiando a uns e prejudicando a outros. Estes são aspectos que estabelecem diferenças quanto aos discursos produzidos pela iniciativa privada, discursos marcados pela preocupação com questões pontuais - como a tributária, os custos dos fretes, as normas de qualidade etc. - e nos quais, também, os empresários agrícolas se auto-atribuem a representação do conjunto de produtores do “setor”, ou ainda mais genericamente, dos agricultores ou produtores agrícolas brasileiros.
Não sendo reconhecidos pelo Estado como os interlocutores privilegiados, os representantes dos pequenos produtores e dos trabalhadores rurais procuram, através de diferentes iniciativas, seu reconhecimento como atores no processo. Os resultados, contudo, têm sido limitados.
Segundo o formato institucional estabelecido no Tratado de Assunção, existem os Seminários Agroindustriais como espaços de deliberação quadripartites dos produtores, nos quais se elaboram sugestões para os negociadores dos governos. Mais recentemente foram criados no Brasil fóruns estaduais que tratam das questões da pequena produção familiar, com a participação das secretarias de agricultura estaduais, agências de extensão agropecuária, cooperativas e representantes dos pequenos produtores. Na prática, as organizações dos pequenos produtores e dos trabalhadores rurais apresentam sérias dificuldades de participação nestes seminários e fóruns, apesar de ter-se constituído um Coletivo Nacional de dirigentes dos trabalhadores rurais e dos trabalhadores da indústria agroalimentar que desenvolve ações em todo o ramo agroindustrial, a partir das cadeias específicas.[18] O acompanhamento é feito segundo dois critérios, por estado e por produto. Os estados inicialmente listados são Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Minas Gerais que, cabe lembrar, caracterizariam-se pela complexidade e diversidade das situações de organização da produção que apresentam. A lista dos produtos - carne, vinho, fumo, feijão, milho, soja, leite, frutas e oleaginosas - compreende a maioria dos principais produtos agropecuários do País.
Ora, a necessidade desta forma de acompanhamento implica a existência de estruturas institucionais especificamente concebidas para essa tarefa, com orçamentos volumosos para deslocamentos, uma fluida rede de elaboração ou acesso aos dados necessários e um elevado número de quadros e assessores especialmente capacitados. Este tipo de estrutura transcende às possibilidades concretas das entidades representativas dos pequenos produtores, como o DNTR-CUT e a Contag. Os esforços por suprir estas carências são significativos, como por exemplo, os levados a cabo pela CUT através de entidades como o Desep, o Deser e a Escola Sul da CUT, mas é consensual que ainda não se tem obtido o patamar desejável.
Uma outra resposta a estas limitantes tem sido a ativação dos vínculos das entidades representativas com diferentes ONGs, em função de objetivos específicos. Desde meados dos anos 80 as ONGs vêm construindo - com muitos questionamentos e incertezas - um espaço na mediação dos atores do terceiro setor. O processo Mercosul introduz condições favoráveis à afirmação do papel articulador dessas organizações. Isto porque, nesse contexto, assume grande importância para os pequenos produtores e trabalhadores rurais um conjunto de características próprias das ONGs, como, por exemplo, a prática na circulação de informações, a experiência na constituição de redes nacionais e regionais, a agilidade nos contatos, a capacidade financeira e técnica para organizar encontros pontuais entre lideranças e a maior vinculação com fóruns internacionais.[19]
Conseqüentemente a participação das ONGs na organização dos encontros, reuniões e seminários vinculados ao Mercosul, o apoio para a elaboração de documentos sobre temas de interesses, assim como a constituição de redes de informação são alguns dos espaços nos quais esta vinculação tem obtido um êxito maior. Também lhes coube dar apoio na identificação dos parceiros do terceiro setor nos países do Mercosul, agilizando as articulações entre os mesmos, o que - em alguma medida - veio a suprir a tradicional falta de diálogo concreto entre os representantes e mediadores dos pequenos produtores e dos trabalhadores rurais destes países.
Entre as ações que as próprias entidades representativas, freqüentemente com o apoio de ONGs, implementaram para incrementar este diálogo, encontra-se tanto as tentativas de articulação entre centrais sindicais, como também, mais especificamente, entre as organizações de pequenos e médios produtores rurais.
No primeiro caso foi criada uma Coordenadoria das Centrais Sindicais, constituída pela CUT (posteriormente ingressaram também a CGT e a Força Sindical brasileiras), junto com o PIT/CNT (Uruguai), a CGT (Argentina), a CUT (Paraguai), e centrais sindicais do Chile e da Bolívia. Em sua difícil atuação conjunta a entidade tem pretendido sensibilizar e articular os trabalhadores e às próprias centrais para - no plano regional - discutir sobre os impactos da integração no mundo do trabalho. Ao mesmo tempo tem procurado trazer a experiência das centrais sindicais européias nas questões da integração. Um grande obstáculo está sendo o reconhecimento, pelos órgãos oficiais do Mercosul, de seu caráter de articuladora máxima do espaço sindical.
Não menos difícil tem sido a construção de uma articulação entre os pequenos e médios produtores rurais. Às questões específicas do sindicalismo de pequenos produtores e trabalhadores rurais a nível nacional têm-se somado aquelas decorrentes da dificuldade em articular as entidades representativas desses atores nos diversos países que constituem o Mercosul. Manifestam-se problemas graves. Além de em muitos casos os próprios interesses das categorias de agricultores representados dos diferentes países estarem em conflito, as características e os interesses específicos das entidades representativas dos pequenos e médios produtores agrários e dos trabalhadores rurais se apresentam como diversos, dificultando a articulação dos mesmos. Entre essas características poderíamos indicar o grau de representatividade, o peso político-institucional, a estrutura organizativa, a complexidade da política interna das entidades e o interesse e possibilidade de acompanhamento dos temas vinculados ao Mercosul.
Este cenário complexo é que explicaria que só recentemente - a partir de articulações iniciadas em outubro de 1993 em Montevidéu, passando por um novo encontro em Córdoba em março de 1994, consultas internas às entidades de cada país, e uma última reunião em Porto Alegre, em agosto de 1994 - e contando com o apoio de redes de ONGs se tenha podido constituir uma articulação formal entre as organizações representativas de pequenos e médios produtores dos países do Mercosul. Assim, com o objetivo de organizar iniciativas imediatas frente ao calendário das negociações e estimular o maior intercâmbio de informações entre os agricultores familiares dos quatro países, foi criada uma Coordenação Executiva de cinco representantes (Contag e CUT pelo Brasil, Federação Agrária Argentina, Federação Nacional Camponesa pelo Paraguai e Comissão Nacional de Fomento Rural pelo Uruguai). Esta última entidade uruguaia foi escolhida como sede da secretaria executiva. Com a Coordenação se teria conseguido - quase no final desta etapa de constituição do Mercosul que culmina em 31 de dezembro de 1994 - o reconhecimento da participação articulada da representação dos pequenos e médios produtores rurais nos espaços consultivos institucionalizados, ao lado dos representantes da iniciativa privada.
Com relação a outras formas de organização e mediação de interesses vinculadas aos pequenos produtores - por exemplo, os movimentos sociais e a organização cooperativa - os efeitos são diversos.
O processo Mercosul não se apresenta como um cenário propício para o desenvolvimento dos movimentos sociais que, durante os anos 80, com distintos níveis de abrangência e de institucionalização, constituíram-se na forma mais dinâmica de politização e canalização de demandas e interesses das diversas categorias de trabalhadores e pequenos produtores rurais. Até o momento não se verifica a presença de nenhum movimento social específico sobre as questões da integração regional. Ainda que eles venham a se constituir, o caráter descontínuo e fragmentado e as dificuldades de consolidação institucional típicas desses movimentos criam sérios limites a seu reconhecimento frente aos outros mediadores, sobretudo com o predomínio das formas institucionalizadas de participação no Mercosul.
No que diz respeito à organização cooperativa, que vinha sendo questionada pelos sindicatos e pelos movimentos, por ter abandonado seus objetivos originários assumindo marcadamente um caráter empresarial, o novo contexto, que coloca no centro do debate a “questão econômica” na reprodução dos pequenos produtores, pode vir a criar condições de retomada de prestígio no campo da representação dos pequenos produtores.
Sintetizando, o fato de o Estado ter deixado de implementar a integração em termos de um projeto de desenvolvimento nacional, impulsionando ao mesmo tempo a iniciativa privada para que se aproprie do Mercosul, tem conseqüências significativas para a situação dos trabalhadores rurais e dos pequenos e médios produtores agrícolas. Isto é, dada a crise do Estado e o esgotamento do modelo de desenvolvimento fundamentado na substituição de importações, as possibilidades de integração passaram a estar predominantemente determinadas pelas estratégias de reestruturação dos capitais locais e internacionais. O Mercosul passa a ser progressivamente apropriado pelos agentes econômicos que lograram valer-se desse processo como alternativa de reestruturação produtiva, na busca de ganhos de competitividade que favoreçam sua inserção no mercado internacional. Assim, o Mercosul se constitui enquanto um processo de integração segmentado, com um acentuado caráter setorializado no plano econômico, em função do dinamismo da iniciativa privada.
Os caminhos onde a iniciativa privada é reconhecida como avançando no Mercosul, vinculados às estratégias implementadas pelos atores, são múltiplos. Temos apontado algumas dessas estratégias: a integração de setores econômicos diferentes, a migração de capitais, o aproveitamento da complementação de setores produtivos. Também grupos específicos de pequenos e médios produtores, em geral impulsionados pelas agroindústrias, têm implementado estratégias de reconversão produtiva fundamentada em investimentos tecnológicos para aumentar a especialização ou para a diversificação de forma integrada, permitindo-lhes manter ou reconstruir uma trajetória positiva no contexto do Mercosul.
Entretanto, nem todos os atores têm condições de implementar estas estratégias. Na medida em que a capacidade de iniciativa está desigualmente distribuída na estrutura social, os agricultores que não têm capacidade de operar em diferentes países, e tampouco de realizar altos investimentos para se adaptar às novas condições de concorrência, nem de ter acesso à formulação, implantação e usufruto dos benefícios das ações governamentais, apresentam possibilidades mínimas de competir nas novas condições da integração.
Assim o Mercosul está reforçando um novo processo de diferenciação social, que estava se delineando com as políticas de liberalização. Este processo aponta para modificações significativas no mapa social dos atores agrários, com a perspectiva de um aumento significativo do número de trabalhadores rurais e de pequenos e médios produtores agrícolas, marginalizados ou excluídos. A dimensão destes efeitos negativos não só está vinculada às estratégias e às formas de organização da ação individual e coletiva dos atores sociais agrários. Ela depende também de que o Estado não venha a ter reduzido seu papel a um mero administrador dos encaminhamentos e das demandas da iniciativa privada, e possa recuperar sua capacidade de formulação e implementação de políticas agrícolas e sociais ativas (cf. Delgado, 1994) que viabilizem formas de reconversão produtiva ou compensatória para o maior número possível de trabalhadores rurais e de pequenos e médios produtores agrícolas.
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Notas
[1] Para uma caracterização mais detalhada do Mercosul como bloco periférico ver: Delgado, Lavinas, Maluf e Romano (1992 e 1994).
[2] Na mesma perspectiva colocam-se os produtores pampeanos de trigo e de regiões frutíferas da Argentina, os quais vêem no Brasil um forte mercado para produtos como trigo, leite ou pêssego.
[3] De forma semelhante aos empresários industriais argentinos, por exemplo os representados pela UIA (União Industrial Argentina).
[4] Sobre a noção de “terceiro setor” ver: Boccacin (1994).
[5] Esta perspectiva foi ressaltada em outro trabalho anterior: Delgado, Lavinas, Maluf e Romano (1992).
[6] Em julho de 1986, em Buenos Aires, é assinado o PICE. Em 1988, a fim de consolidar o processo de integração, foi assinado o Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento, pelo qual os dois países demonstravam o desejo de constituir um espaço econômico comum num prazo de 10 anos. Até 1990 foram assinados 24 protocolos em áreas diversas, como bens de capital, trigo, produtos alimentícios, automotores, cooperação nuclear etc. Esses acordos foram absorvidos num único instrumento consolidado em julho de 1990 pelos presidentes Collor e Ménem, que assinaram a Ata de Buenos Aires, a qual fixa 31 de dezembro de 1994 como prazo para a conformação definitiva do mercado comum entre Argentina e Brasil. Em agosto de 1990, Uruguai e Paraguai foram convidados a participar, o que resultou na assinatura pelos quatro países, em 26 de março de 1991, do Tratado de Assunção.
[7] O Mercosul não foi o resultado natural de políticas integracionistas anteriores. Os esforços de integração latino‑americana, Alalc (1960), Aladi (1980) não podem ser pensados como etapas em uma linha de continuidade ou como antecedentes histórico‑políticos que explicam as características que assumiu o Mercosul. O Tratado de Assunção não apenas absorveu os protocolos de Integração de 1986 mas introduziu também profundas alterações na forma e na cronologia do processo. O Pice era um Programa de Integração abrangente, gradual e seletivo que tinha como pressuposto o desenvolvimento econômico amplo e conjunto dos países, e no qual os intercâmbios comerciais eram apenas uma dimensão - sem dúvida importante - de um esforço mais ambicioso que incluía cooperação científica, tecnológica, militar, nuclear, etc. Com o Mercosul o caráter do processo foi totalmente transformado, os prazos fixados reduziram-se drasticamente, e secundarizaram-se os critérios de seletividade e de gradualismo: o Mercosul passou a ser “progressivo”, “linear” e “automático”.
[8] Esse movimento é coerente com as políticas de cunho neoliberal que predominam nos países signatários do Tratado de Assunção, onde o Estado vem se retirando dos diferentes espaços econômicos, deixando o lugar para a chamada “iniciativa privada”. Basta lembrar, por exemplo, as chamadas “políticas de privatização” em curso.
[9] A estrutura institucional para o período de transição, composta de órgãos provisórios do Mercosul, é a seguinte: a) Conselho de Mercado Comum: é o órgão superior ao qual cabe a condução política e a tomada de decisões para assegurar o cumprimento dos objetivos. É integrado pelos ministros da economia e das relações exteriores dos estados-partes; b) Grupo Mercado Comum: é o órgão executivo, coordenado pelos ministros das relações exteriores. É integrado ademais por membros que representam os Ministérios da Economia ou equivalentes, e os Bancos Centrais. O grupo definiu como prioridades 10 subgrupos de trabalho: 1) Assuntos Comerciais; 2) Assuntos Aduaneiros; 3) Normas Técnicas; 4) Políticas Fiscal e Monetária; 5) Transporte Terrestre; 6) Transporte Marítimo; 7) Política Industrial e Tecnológica; 8) Política Agrícola; 9) Política Energética; 10) Coordenação de Políticas Macroeconômicas. Depois foi criado mais um, o 11) Relações de Trabalho, Emprego e Seguridade Social (Boletim de Diplomacia Econômica, 1991).
[10] Por exemplo, por ocasião da decisão do governo de importar farinha de trigo da Argentina, o presidente da Abitrigo - Associação Brasileira da Indústria do Trigo - declarava: “O assunto está sendo tratado burocraticamente. Empresários e produtores agrícolas não estão sendo consultados” (Jornal do Brasil, 13/12/91). Manifestações similares são realizadas por representantes de outros “setores”. Por exemplo, as queixas sobre a situação dos produtores de alho, seriamente afetados pela concorrência dos produtores argentinos. Ante o incremento nas importações resultante da diminuição das restrições alfandegárias, o presidente da Associação dos Produtores de Alho declarava: “...a importação média de 18.000 toneladas nos últimos anos também contribuiu para piorar o quadro... o jeito mesmo será ir para Argentina para plantar alho” (Gazeta Mercantil, 26/6/92).
[11] Um dos melhores exemplos deste tipo de conduta é, evidentemente, o da empresa agroindustrial SADIA - uma das 10 maiores empresas brasileiras dentro do “setor privado”, a maior consumidora de milho no Brasil, primeira produtora e transformadora de frangos, perus e suínos, segunda produtora de margarinas, azeites e massas em geral - que inaugurou recentemente escritórios em Buenos Aires. Segundo declarações de seu vice‑presidente, a empresa planeja exportar frangos, suínos e perus para a Argentina (com custos de produção entre 10 a 15% inferiores), e comprar milho, trigo e soja nesse país para servir de ração alimentícia para esses mesmos produtos.
[12] O grupo francês Bongrain, instalado no Brasil, adquiriu há pouco tempo indústrias de transformação láctea na Argentina. A estratégia da empresa é aproveitar “vantagens comparativas” dos dois países, produzindo queijos de massa dura - Parmesão, Gorgonzola e Cheddar, cujo processo produtivo exige menos tecnologia industrial e muito leite - na Argentina, onde os processos de transformação industrial são relativamente mais ineficientes mas a qualidade do produto in natura é melhor, deixando queijos cremosos e fundidos - Polenguinho, Chamois D’Or, Camembert - para serem produzidos no Brasil, que apresenta condições produtivas inversas. Diz um representante da empresa: “Vamos unir as redes de distribuição já existentes no Brasil e na Argentina e aproveitar o que de melhor as duas empresas podem fazer” (Folha de São Paulo, 31/7/91).
[13] Estima-se que entre 20 e 40% da produção “uruguaia” de arroz estão em mãos de produtores brasileiros, sendo em grande parte exportada para o Brasil.
[14] Como o da Cooperativa Cotrijuí, no Rio Grande do Sul, que recentemente comprou grandes quantidades de terra no Chaco.
[15] Um hectare de terra custava nos últimos anos, nessas províncias uruguaias e argentinas, aproximadamente uma quarta parte do valor do hectare no Rio Grande do Sul.
[16] São atores privados que, individualmente ou não, com ou sem apoio estatal, vêm impulsionando através do mercado o processo de integração, conseguindo apropriar-se das vantagens comparativas já existentes ou criadas pela própria integração, com base em novas condições tecnológicas e financeiras. Como tínhamos apontado, exemplos de atores sociais com capacidade de iniciativa são as empresas agroindustriais com atuação em âmbito regional - inclusive instalando filiais ou constituindo “joint ventures” - e os grandes produtores agropecuários capacitados a expandir sua atividade econômica para além das fronteiras nacionais.
[17] A maior indústria láctea do Rio Grande do Sul, a Cooperativa Central Gaúcha de Laticínios (CCGL), que detém 62,5% do mercado estadual, começa no final de 1991 um processo de reconversão produtiva de acordo com a dinâmica do Mercosul. A cooperativa fez grandes investimentos para financiar inovações tecnológicas a grupos de produtores e de transportadores do produto. O planejamento da cooperativa é que todo o leite produzido seja resfriado na propriedade dos produtores e coletado de dois em dois dias em caminhões tanque. Transferindo o custo financeiro ao produtor, a cooperativa espera diminuir os custos de frete, que variam de 13 a 17%, para apenas 6%. É um tipo de reconversão que implica altos investimentos para os produtores.
[18] O plano geral de trabalho que se vem implementando contempla: a elaboração de diagnósticos gerais da agricultura de cada país assim como a análise das principais características das respectivas políticas agrícolas; a análise da participação do setor agrícola no mercado internacional; a análise dos impactos do Mercosul nos setores prioritários, e em especial as alternativas para os trabalhadores ante esses impactos; o acompanhamento da ação dos empresários; o favorecimento da articulação das organizações sindicais (Ires-CGIL/Desep-CUT, 1992).
[19] Desde a década de 80 as ONGs entraram também em espaços antes exclusivamente reservados aos representantes de governos, às agências multilaterais ou às empresas transnacionais, estando presentes nas reuniões do Gatt, do Grupo dos 7 e do Banco Mundial. Têm-se constituído em novos atores no cenário mundial (Chalout, 1992).