Estudos Sociedade e Agricultura
Eli Napoleão de Lima
Extrativismo e produção de alimentos: Belém e o "núcleo subsidiário" de Marajó, 1850/1920
Estudos Sociedade e Agricultura, 7, dezembro 1996: 59-89.
Resumo: (Extrativismo e produção de alimentos: Belém e o “núcleo subsidiário” de Marajó (1850/1920). Este artigo procura mostrar como a economia da borracha no Estado do Pará não estruturou um sistema econômico integrado. Examinando os Relatórios dos Presidentes de Província e Governadores de Estado no período de 1850-1920, a autora retrata o caráter expansivo da atividade de exportação – expresso no esplendor cultural e centralidade comercial de Belém –, fazendo o contraponto com a crise estrutural do abastecimento de alimentos da capital paraense.
Palavras-chave: extrativismo, ciclo da borracha, produção de alimentos.
Abstract: (Food Production in an Extractivism Economy – Belém and its “Dependent Nucleus”: The Island of Marajó (1850-1920). This article aims to demonstrate how the rubber economy in the State of Pará was unable to establish an integrated economic system. Examining the Reports from the Provincial Presidents and the State Governors in the 1850-1920 period, the author describes the expansionist character of export activity – exemplified in the cultural splendour and commercial centrality of Belém – and counter-poises to this the structural crisis of food supplies to Pará’s capital.
Key words: extractivism; the rubber cycle; food production.
Eli de Fátima Napoleão de Lima, é professora da UFRRJ/CPDA.
Introdução
Por ser este um texto síntese de uma parte de minha dissertação de mestrado, torna-se indispensável esclarecer: a) procuramos neste trabalho fornecer subsídios ao estudo da problemática da produção de alimentos para o abastecimento interno no Brasil, conforme a proposta de Linhares em 1979 [1] ; b) tomamos como objeto de estudo uma área da imensa região amazônica, cujo atraso tem sido explicado pela inviabilidade agrícola (o mito da natureza hostil; um país “essencialmente agrário”, a Amazônia representada pelo extrativismo); c) o objetivo principal da dissertação residia em detectar a problemática da produção de alimentos numa economia extrativista, centralizando a investigação na produção para o abastecimento da cidade de Belém, à época principal centro econômico e financeiro de toda a região amazônica; d) na medida em que resultava impossível desatrelar a produção de alimentos para o consumo de Belém da economia extrativista, tomamos o período de 1850/1920 como um parâmetro histórico bem representativo dessas duas realidades da região. Com efeito, é na década de 1850 que se inicia a corrida para a produção e fabrico da borracha. Ainda que não tivéssemos a intenção de realizar um exame detalhado da economia do látex, ela se impôs como passagem incontornável. O ano de 1920 fecha o período por configurar o contexto sob o qual se engendram os mecanismos ”identitários” da Amazônia. Após a quebra do monopólio da borracha silvestre, em decorrência dos investimentos de capital estrangeiro nas grandes plantações de seringueiras (veja-se a experiência da Ford Motor Company, iniciada em 1922; cf. Costa, 1981); e) desejávamos “discutir” a historiografia paraense [2] sobre o papel da economia, ou seja: de uma economia que fora responsável pelo estrangulamento da “florescente e próspera” agricultura local. Tal historiografia dava como explicação para a incipiência e mesmo aniquilamento da agricultura no Pará, o rush gomífero (“ciclo” da borracha) que teria desviado dos campos da lavoura os braços de que tanto necessitava para uma atividade enganosa; f) através dessa revisão bibliográfica encontramos a informação de que a Cidade de Belém era abastecida por gêneros alimentícios fundamentalmente oriundos de duas áreas do Estado: da Ilha de Marajó (pecuária) e da Zona Bragantina (agricultura), os “Núcleos Subsidiários” [3] da Capital; g) naquele texto trabalhávamos, portanto, com a região de Belém e o seu hinterland, vale dizer, uma área economicamente polarizada pelo mercado da Capital. Em suma, nessa ocasião investigávamos o tema da produção de alimentos da Ilha de Marajó e da Zona Bragantina voltada para o consumo de Belém, a partir de uma revisão da historiografia paraense e, sobremaneira, da pesquisa nas fontes documentais oficiais – Censos e Relatórios (e termos afins) dos Presidentes da Província e Governadores do Estado do Pará referentes ao período acima mencionado.
Belém: a cidade-porto da Amazônia
Belém foi fundada em 1616 por necessidades muito prementes da Coroa portuguesa. Até esta data, o norte do Brasil, em sua imensidão, encontrava-se “ocupado” por alguns poucos redutos militares. As potências ibéricas, com sua política monopolista, não podiam fechar os olhos para a área diante da aproximação dos franceses, ingleses, holandeses e irlandeses da foz do Amazonas em procura de um caminho para as minas peruanas.
A recuperação do mercado açucareiro e das drogas do sertão era uma meta dos portugueses. Ocupar a região significava explorá-la economicamente o quanto antes. Essa “necessidade” justificava as atitudes dos colonizadores, especialmente a tomada da terra dos índios e a exploração escravista de sua força de trabalho. À resistência destes, fórmulas “mais amenas” chegaram de Portugal com os missionários mobilizados para a tarefa da catequese e a promoção do comércio das drogas do sertão.
Em termos esquemáticos, a história da conquista portuguesa da Amazônia obedece a dois cortes. O primeiro (entre 1630/1780, aproximadamente) corresponde à fase do genocídio desenfreado (em 1729, um comando militar português dizimou 20.800 índios Muhra) (Souza, 1978: 46). Um segundo período (1780/1823) foi a intensa criação de aldeamentos, pois Portugal precisava, como diria Márcio Souza, “sedimentar a empresa”.
Foram realizados esforços para criar um sistema produtivo baseado na agricultura que não passaram de experiências fracassadas, ainda que possam ter tido expressividade em algum momento. Além do interesse mercantilista no garimpo da mata, os portugueses pensaram em fixar o homem através das atividades agrícolas, mas, ao privilegiarem as potencialidades econômicas imediatas inerentes à Amazônia (veja-se o minucioso trabalho realizado pelo naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira em 1783) [4] enriqueceram ainda mais a lista das “especiarias”, Esse padrão extrativista de produtos da selva atingiria, no decorrer do período, seu ponto alto com a exploração da borracha.
Ao iniciar-se o século XIX, a cidade de Belém assistia à proliferação, para trás e para os lados, de seu movimento de cais de trapiches de madeira, das chamadas rocinhas [5] .
Em 1820, os viajantes Spix e Martius comentavam que, ao chegar-se à cidade, ultrapassada a visão que dela se tinha desde a Baía de Guajará, encontrava-se mais do que prometia o aspecto exterior. As casas eram sólidas, perfiladas em longas ruas em ângulos retos e largas praças. Eram raras as construções suntuosas, assobradadas, sendo singela sua arquitetura (Spix e Martius, 1961: 16).
Com a leitura dos visitantes, é possível notar-se diversos pontos de vista sobre o aspecto puramente físico da cidade, porém, num item todos são unânimes: Belém destacava-se por sua importância comercial. Para ela convergiam os artigos destinados à exportação oriundos das várias localidades da região. Desses produtos (derivados da pecuária de Marajó, goma elástica e drogas do sertão), apenas uma parte (o açúcar, cachaça, melado, fumo e borracha) era cultivada nas cercanias da capital; a maior parte deles vinha do interior.
Como escoadouro da produção do interior amazônico, o porto de Belém recebia inúmeras embarcações fluviais; aquelas de maior calado, próprias ao tráfego marítimo, permaneciam ao largo da Baía de Guajará, provenientes de Portugal, Grã-Bretanha, Índias Ocidentais, França, Holanda e América do Norte. Os “gêneros de importação” trazidos, através do porto de Belém, eram enviados para Cametá, Vigia, Macapá, Monte Alegre, Santarém, Óbidos e Barra do Rio Negro, de onde provinham os produtos naturais da selva. Um registro indicava que, por volta de 1839, as atividades urbanas ultrapassavam as necessidades dos 12.500 habitantes da cidade [6] .
Poderíamos dizer que é somente a partir do século XIX que a cidade de Belém adquire “consistência” política, social e em urbanização, e se insere na vida do país. “Motins políticos”, progresso material e estético, e missões de interesse científico viriam tirar a Amazônia de seu sono solitário. A visita de Humboldt (1799/1804), Spix e Martius (1820), Castelnau (1843/47), H. W. Bates (1848/49), Alfred Wallace (1848/52), Luis Agassiz (1865/66), entre outros, revelaria ao mundo as riquezas amazônicas. Esse progresso material e estético seria interrompido durante a Cabanagem, um movimento, como se sabe, de luta contra o regime mercantilista, cujos primeiros ecos remontam ao ano de 1821 e se estende até 1840, pondo em sobressalto a Província do Pará (cf. Lima, 1987: 19-32). Após a rebelião, a função de Belém como entreposto comercial foi retomada: era através de seu porto que a Amazônia recebia os produtos provenientes do exterior e outras Províncias do Império e remetia, especialmente para fora, os produtos extraídos da sua floresta.
Extirpada a Cabanagem, a década de 1840-50 foi um período de restauração da ordem e de retorno às atividades abandonadas durante o conflito. Dos produtos oriundos da selva, um iria marcar, profundamente, os próximos 70 anos: a borracha. O “leite de seringa”, utilizado pelos indígenas para confeccionar bolas para jogos, sapatos, capas, chapéus, couraças, já era gênero de comércio amazônico desde o século XVIII. No entanto, não era mais do que um entre tantos outros produtos da floresta. A borracha comercializada nesta fase provinha das matas que circundavam Belém e da Ilha de Marajó. Extraída mediante um processo rudimentar que danificava as árvores, a coleta do produto adentrou a selva, com o decorrer do tempo, atingindo o Xingu, o Jari, o Guamá, o Acará, o Moju, chegando ao rio Tapajós e ao Madeira, alcançando o Solimões.
Se até os anos 20 do século XIX esse produto, mesmo crescendo na pauta de exportação de gêneros amazônicos, não tinha importância fundamental para a economia regional, a partir dos anos 30 começou uma escalada ascendente até a segunda metade daquele século, mantendo-se bem entrados os anos 20 deste século, tornando-se o produto-rei da região.
Podemos dizer que os seguintes eventos favoreceram essa expansão econômica: 1) a industrialização do mundo capitalista no século XIX, possibilitando às nações européias expandirem-se em busca de novos mercados e matérias-primas; 2) a descoberta do processo de vulcanização, em 1839 com Charles Goodyear e que se desenvolve com Hancock em 1842. Até esta descoberta, tinha-se conhecimento da propriedade impermeabilizadora da borracha, mas não se sabia como torná-la resistente às altas e baixas temperaturas; 3) o descobrimento do pneumático por Dunlop, em 1890, criaria uma demanda a exigir uma expansão, sem precedentes, da produção de borracha.
Uma outra circunstância, que viria a ser fundamental para a expansão do “ciclo”, foram as grandes levas de retirantes nordestinos que chegaram à Amazônia acossados pela miséria e pela seca que assolou o Nordeste em 1877. Sem essa mão-de-obra, o “ciclo da borracha” não atingiria o seu apogeu nesse período.
Não seria possível compreender a corrida à borracha amazônica (de ciclo violento, profundo, porém rápido) – observando-se que ela efetivamente possibilitou à Amazônia (representada por Belém e, mais tarde, também por Manaus) um esplendor nunca antes, nem depois, experimentado; e, ressaltando-se que a mesma ocasionou o colapso total da economia regional –, se não buscarmos as suas raízes mais profundas na história. A Amazônia não escaparia, como outras áreas brasileiras, da especialização agroexportadora. Dos produtos exportados, três vinculariam o Brasil ao mercado europeu, fazendo depender o povoamento o povoamento e toda a economia dos movimentos da demanda externa. Como se sabe, foi o açúcar que, ao propiciar a ocupação do Nordeste, iniciou a colonização; à mineração no Centro e ao café no Sul deve-se a expansão do povoamento no território brasileiro. Foram essas três economias exportadoras, em alguns períodos, coincidentes, e em outros, sobrepostas, fomentando atividades subsidiárias, que determinaram a evolução política, cultural, social e econômica do país.
Neste ponto, a Amazônia não difere em nada desse padrão. Desde cedo, a economia regional também se atelou ao mercado internacional por meio das drogas do sertão, embora de importância menor se comparados os seus lucros com produtos de exportação de outras regiões.
A extração de produtos florestais, como fonte de renda e emprego, daria o tom e forma das especificidades amazônicas, tornando-a “diferente” das demais regiões. O extrativismo montado na Amazônia não permitiu assentamentos demográficos permanentes à medida que consistia numa mobilidade contínua em busca dos produtos que escasseavam numa e noutra área. Mesmo que alguns núcleos mantivessem um relativo equilíbrio demográfico, a economia dependente do exterior prejudicava aquela tendência e ao mesmo tempo impedia qualquer alteração das técnicas extrativas. Uma população em trânsito não poderia dedicar-se às atividades agrícolas nem mesmo àquelas de subsistência.
Como observa Caio Prado Jr. (1977: 72), “A organização da produção também reflete as condições em que se realiza. Não tem por base a propriedade fundiária, como na agricultura e na mineração. A exploração se realiza indiferentemente na floresta imensa aberta a todos. E faz-se esporádica, coincidindo com as épocas próprias da colheita”. Assim, a região tornou-se dependente da importação de gêneros produzidos no exterior e em outras Províncias do Império, uma dependência que se tornaria absoluta durante o “ciclo da borracha”.
O início e o fim desse “ciclo” não é consensual entre os vários estudiosos. Alguns tomam como referência a ascensão e a queda do produto na pauta de exportação; outros, definem o período a partir do crescimento das capitais (melhoramentos, construções de edifícios públicos, casas de crédito, companhias seguradoras, etc.). Diríamos que, entre 1840 e 1911, a Amazônia vivera o furor da exploração da borracha, convergindo para ela as energias produtivas e improdutivas da região.
Aproximadamente até 1870, a “Capital da Borracha” deteria os “louros” da corrida gomífera. Mesmo com a inauguração da nova Província do Amazonas, em 1852, Manaus ainda se mantinha como a “outra” capital da Amazônia. Em 1865 não passava de um “punhado” de casas, muitas em ruínas. Alguns anos mais tarde, no entanto, e graças à borracha, Manaus tornava-se uma cidade faustosa e já dividia com Belém a “glória” proporcionada por aquela economia. Márcio Souza, referindo-se a Manaus da época do fastígio, observa: “Manaus foi a primeira construção kitsch brasileira: uma cidade do sonho e do delírio, microcosmo das doenças do espírito burguês com toques de selvajaria e grossura. Cenário para um vaudeville, seus habitantes souberam fazer desse gesto espetaculoso da democratização reificada da arte, a exorcização da visão abnegada dos costumes coloniais. (...) A vida procurava ser um primor difícil e caro, não mais o gesto simples. Mas tudo muito diferente do bem-estar europeu, como se a complexidade dessa babilônia tropical em miniatura tornasse o clima dos folguedos em ênfase retórico. (...) Uma cidade que não é verdadeiramente uma cidade, mas decoração, cenografia, palco ideal para a reificação colonialista” (Souza, 1978: 104).
Belém não seria tomada tão de chofre. Não que não tenha vivido semelhante apogeu como palco iluminado artificialmente. Belém sempre fora um palco artificial. Como bem disse Vicente Salles, o sistema colonial da Amazônia havia transformado a cidade “(...) num burgo administrativo extremamente oneroso e estéril” (Salles, 1971: 259).
O “ciclo da borracha” seria o espetáculo amazônico. Para Belém convergia e de sua praça se distribuía para o interior os produtos vindos do exterior e de outros portos nacionais. Com a borracha, a cidade ratificara sua condição de centro exportador, importador e redistribuidor de uma diversidade de produtos alimentares, utensílios e equipamentos variados (Penteado, 1968, 2, vol.: 127).
O surgimento de Bancos e novas representações consulares; a criação da Capitania do Porto; a inauguração da Freguesia da Trindade – bem próxima do cais –; a fundação de um cemitério particular para a colônia inglesa (registro da presença marcante do comércio britânico na área); a inauguração da colônia portuguesa em torno da Sociedade Beneficente; substituição do azeite de andiroba pelo gás líquido (1854-1864), seguida da substituição do sistema de iluminação antigo pelo gás carbônico (1864-1896), etc., demonstravam sua posição de centro econômico e financeiro.
A demanda internacional pela goma elástica despertou o espírito cosmopolita da cidade, cujo estilo de vida cada vez mais demandava construções imponentes, importação cultural, vida boêmia, um espírito frenético, consumidor de novidades passageiras, numa palavra: luxo.
O desenvolvimento da economia gomífera forçaria “(...) um aumento geral do custo de vida, tornando a existência em Belém, uma das mais caras do continente americano. Toda mão-de-obra disponível era recrutada para a exploração nos seringais; a falta de braços na agricultura determinou, inclusive, a falta de farinha de mandioca”. A falta de farinha de mandioca, alimento básico na dieta das populações amazônicas, dá a exata dimensão do que estava ocorrendo: “A exportação da borracha aumentava gradativamente e, ao mesmo tempo, desenvolvia-se uma vida artificial; os preços subiram, importava-se tudo sem ligar ao custo, pois a borracha pagava tudo” (Penteado, 1968, 2, vol.: 128-9).
Em contrapartida, ao esplendor do cais do porto e o estampido de rolhas de champanhe importada nas reuniões sociais, encontros lítero-musicais, cafés, bailes, clubes e eventos similares, no interior um imenso silêncio envolvia os seringais.
No mercado da efervescente “Liverpool Brasileira” podiam ser encontrados os mais variados produtos como frutas, hortaliças, legumes, aves, carnes, peixes, dentre outros gêneros; quase todos importados, pois à época a produção local era ínfima, absolutamente insuficiente. Esse mercado chegou inclusive a ser considerado um dos melhores do Império. Para os seringais seguiam mercadorias, as mais diversas: “Os aviamentos de mercadorias para os seringais eram pródigos, excessivos, absurdos. As ‘notas de pedidos’ eram exorbitantes, envolvendo às vezes artigos impróprios e supérfluos como, por exemplo, tecidos de seda. Os aviadores de Manaus e de Belém forneciam tudo quanto se lhes pedia, mercadorias úteis ou dispensáveis, aumentando-lhes ainda as medidas” (Lima, 1945: 148).
Aos seringueiros, isolados e solitários em suas estradas de seringueiras, cortando, colhendo e defumando o látex para propiciar aquele fulgor, sem dele compartilhar, o sistema extrativista oferecia os regatões – “espécie híbrida que surgiu entre o comércio e a pirataria, ou entre o decoro e a imprudência” (Penna, 1973: 81) –, através dos quais eles obtinham uma parcela, a mais alienante, dos resultados do seu trabalho. Em troca de quinquilharias, os regatões recebiam grandes quantidades de derivados da borracha, desviados pelos seringueiros do que era “devido” aos seus patrões. Já que nada podiam produzir para sua subsistência – seguindo a lógica do sistema –, restava-lhes adquirir produtos de longa durabilidade, como conservas importadas, extremamente caras.
Não seria possível determo-nos aqui na descrição dos mecanismos do sistema extrativista (cf. Lima, 1987). Importa-nos ressaltar que, como os demais produtos da floresta, a borracha comercializada em Belém provinha não apenas dos seringais do Pará. A economia paraense do período esteve estreitamente vinculada às demais áreas amazônicas, muito embora os registros das exportações de borracha nunca discriminem a sua procedência, constando toda ela como produto paraense. É mister lembrar que a Praça do Pará, através de sua Associação Comercial, controlava a produção dos seringais amazonenses e acreanos. O raio de ação do comércio de Belém ultrapassava o limite político-territorial brasileiro, atingindo o Perú, a Bolívia, a Colômbia e a Venezuela.
A construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, a “Ferrovia do Diabo” – assim chamada pelas grandes perdas em vidas provocadas pela febre tropical das companhias estrangeiras –, iniciada em 1870 e concluída por volta de 1912, visava escoar a borracha da área que, a partir de 1943, constituiria o Território do Guaporé (mais tarde Território Federal de Rondônia), para Belém e Manaus. “Não poderemos deixar de chamar a atenção para a grande dependência paraense em relação às áreas produtoras do Amazonas e do Acre em função da grande produção das duas localidades que beneficiava em grande parte a economia do Pará” (Silva, 1978: 27-29).
Tal era a dependência da economia paraense da goma elástica de fora de seu território que a desanexação e independência da Província do Amazonas – e, conseqüentemente, a formação do porto de Manaus, realizando uma comunicação direta com a Europa e os Estados Unidos – constituir-se-iam num grande perigo para os aviadores paraenses. A Associação Comercial do Pará tomaria diversas medidas para impedir a perda das vantagens que usufruía no mundo amazônico. O conflito Pará-Amazonas se estenderia por longos anos. A situação recrudesceria quando da anexação do Acre pelo Brasil, ao iniciar-se o século XX. Esta área, desde aproximadamente 1870, produzia uma borracha de boa qualidade, o que agravaria ainda mais a disputa entre Pará e Amazonas (Ibidem: 73).
Ao findar-se o “ciclo da borracha”, à cidade de Belém restava estas alternativas: manter a grandiosidade – conquistada à custa de um vasto interior miserável, doente e faminto – sem dispor de meios para isso, pois já era irreversível a derrocada da economia paraense; dividir sua hegemonia sobre a Amazônia com outro porto (Manaus); procurar uma saída para a crise que, desde então, se fazia presente em todos os setores da cidade. Na verdade, Belém e Manaus representavam o quadro menos desolador de toda esta história. Como nas demais capitais brasileiras, seus brilhos dependiam de um interior onde grassava a indigência: “A face oficial do látex era a paisagem urbana, a Capital coruscante de luz elétrica, a fortuna de Manaus e Belém, onde imensas somas de dinheiro corriam livremente. O outro lado, o lado terrível, as estradas secretas, estavam bem protegidas, escondidas no infinito emaranhado de rios, longe das Capitais” (Souza, 1978: 99-100).
O “Núcleo Subsidiário” da Ilha de Marajó
Em sua “História de Belém”, Ernesto Cruz mostra que a Ilha de Marajó era um núcleo subsidiário de maior importância para a vida de Belém. Já no início do século XVIII, a Provisão de 27 de outubro de 1702 determinava aos moradores da cidade que transferissem de suas roças para a Ilha o gado vacum e cavalar, oriundo de Cabo Verde, o que se consumaria em 1703. “A multiplicação deste gado foi tal que, na Páscoa de 1726, começou-se a vender carne de vaca em açougue na cidade, e passou a haver grande extração de carnes enxercadas e moxamas, e grande aumento nas rendas do Estado pelo dízimo do gado [7] .
Vejamos mais de perto alguns dados oriundos de fontes primárias sobre a pecuária da Ilha de Marajó, enquanto base abastecedora da cidade de Belém. Em que pese as dificuldades para se trabalhar com Censos Oficiais de 1872 e 1920 [8] , foi possível verificar que no período Belém, a Ilha de Marajó e a Zona Bragantina experimentaram um crescimento das suas populações de 294%, 238% e de 421%, respectivamente. Em 1872, nas três áreas, a maior parcela da população com profissão definida concentrava-se na agricultura. Aos 33% desta população rural, a área da Capital contribuía com 6%, a de Marajó com 3,40% e a de Bragantina com 6%; em 1920, aos 23% Belém respondia por 3%, Marajó, 2,5% e Bragantina, 6%. Esses números nos levam a imaginar uma situação de penúria. Os aumentos relativos da população total e dos contingentes alocados na agricultura em cada uma daquelas três áreas (294% e 80,41%; 238% e 165%; e 421% e 264%) dispensam maiores comentários.
Frisamos os dados referentes à agricultura por serem de grande expressividade. Em relação às atividades potencialmente produtoras de alimentos, teríamos o seguinte quadro:
Pará
Belém
Marajó
Bragantina
1872
33,0%
6,0%
4,0%
6,0%
1920
25,0%
3,1%
3,0%
6,4%
Fonte: Brasil. Diretoria Geral de Estatística. Relatórios. Rio de Janeiro. Tipografia da Estatística, 1872-1936.
Não estaríamos dizendo nada novo se afirmássemos que os aumentos expressivos em determinadas atividades do setor de transformação e serviços alcançavam em Belém expressões muito elevadas. No entanto, em relação à área de Marajó e mais ainda a da Bragantina, típicas zonas rurais, tratar-se-ia de uma situação anômala. O grau de urbanização atingido pelas duas áreas no período remete à questão do seu nível de eficácia como fontes abastecedoras de Belém; ao mesmo tempo que coloca o problema do nível de eficácia enquanto áreas auto-sustentáveis.
Como se explicaria o fato de Belém ter conseguido seguir seu “destino histórico” ainda que suas fontes abastecedoras de gêneros alimentícios houvessem escasseado os meios para sobrevivência biológica de seus habitantes? Sobre que bases a cidade asseguraria a sua hegemonia como “Capital da Amazônia”? Por que seus “núcleos subsidiários” não seguiram as vocações? Em que residiu essa situação?
Breve caracterização da Ilha de Marajó
A Ilha se constituíra, desde o século XVIII, como área de pecuária destinada a abastecer Belém. Em nenhum momento, no entanto, essa “indústria pastoril” (expressão muito usada nas fontes consultadas) foi suficiente para suprir as necessidades da Capital. Irregularidades na oferta dos produtos (principalmente escassez), carestia e má qualidade da carne verde, apresentaram-se de modo constante.
À área de Marajó (35.797 habitantes em 1872 e 121.091 em 1920) pertenciam as freguesias de Afuá, Soure, Santo Antonio de Chaves, São Francisco de Paulo de Muaná, Nossa Senhora da Conceição de Salvaterra, Santana de Breves, Menino Deus de Anajás, Boa Vista, Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira e Nossa Senhora da Conceição de Ponta de Pedras.
A Ilha de Marajó, a maior de toda a costa oriental da América do Sul, caracterizava-se por terrenos planos, sem colinas, sem vertentes e vales. Chuvas torrenciais ocorriam durante o inverno. Encontra-se dividida por uma linha quase diagonal. A parte do Sudoeste, menor, era plena de matas; a do Noroeste compunha-se de campos onde se encontravam, esparsados, grupos de árvores chamados “ilhas”.
Segundo o testemunho de Domingos Penna (1973), na porção coberta de matas, havia terras férteis, dada a umidade e o calor dessa área; uma diversidade de madeiras apropriadas para construção; plantas medicinais e de uso industrial; imensa quantidade de seringueiras, das quais se extraía a borracha para o comércio.
Com exceção da costa oriental, o nível da Ilha mantinha-se o mesmo em suas duas partes (matas e campos). A existência de depressões na superfície do terreno, ocasionava, durante o verão, áreas pantanosas. As depressões alagadas, na porção coberta pelas matas, recebem o nome de igapós (matos alagadiços); na porção de campos, baixas. Nos igapós cresciam variadas árvores como as seringueiras. Nas baixas, durante o verão, encontravam-se, em seu melhor estado, ervas que serviam como pastagem para o gado. As baixas, ocupando vasta extensão das campinas com muitos atoleiros escondidos sob densa vegetação palustre, recebiam o nome de mondongos. Assim também chamava-se o longo pantanal que ia da costa norte de 16 a 19 km, estendendo-se de Oeste a Leste, das cabeceiras do rio Cururuá até as proximidades da costa oriental da Ilha. Neste pantanal, além dos imensos atoleiros, havia pequenos lagos, muitas ilhas, enorme quantidade de plantas palustres, sendo as mais freqüentes as aningas que se constituíam num viveiro de répteis, tornando a área perigosa.
A Ilha de Marajó contava com grandes lagos: Arari, Guajará, Santa Cruz e Alçapão e mais dois ou três menores. O Lago Arari, o maior e o mais importante da Ilha, situava-se no meio das campinas, próximo do centro da Ilha. De largura cobria 3,5 km, aproximadamente; de extensão, 16 km que chegavam a duplicar-se, considerando-se o concurso da parte inferior do rio Apeú – na realidade, uma série de lagos pequenos intercalados por estreitos (canais de pequena largura, porém fundos). No inverno, quando atingia de 5 a 7 metros de profundidade, era bastante navegado por vapores que carregavam de 60 a 80 bois em cada viagem. No verão, tornava-se lamacento.
Dada a sua proximidade à linha do Equador, a Ilha encontrava-se sujeita a uma temperatura elevada. De outubro a dezembro, na contracosta e nos campos próximos à costa, a temperatura atingia, mais ou menos, de 12 às 15 horas, 32° e até às 20 horas, 25°. Na área de matas, nas horas mais quentes do dia, a temperatura variava entre 31° a 33°.
No verão, ou ainda, no último trimestre do ano, os extensos campos da Ilha apresentavam uma vegetação amarelecida e ressecada. O solo, argiloso, partia-se em fendas. As baixas ficavam quase secas, mas como continham reserva de água, era para aí que ia o gado à procura de pastagens. Com as chuvas de inverno, uma planície extensa, pontuada de depressões, num nível um pouco acima dos níveis dos dois rios que a circundavam, alagava-se em quase toda a sua extensão. Tais chuvas ocorriam a partir de dezembro, intensificando-se até abril e deixavam fora d’água apenas pequenos pedaços dos terrenos mais altos (denominados tesos), em algumas fazendas da costa oriental e em diversos pontos das costas norte e sul. Durante o inverno, os campos viravam um imenso lago salpicado de árvores (“ilhas”) que as águas não chegavam a cobrir.
Nos campos das costas norte e oriental as condições de salubridade decorrentes do ar puro trazido do oceano pelos ventos gerais davam aos homens que ali viviam um aspecto de robustez que já não era possível encontrar no centro da Ilha, especialmente nas margens do Arari, onde as febres eram freqüentes nos dois primeiros meses do inverno. Na área de matas – quase sempre pantanosas –, as febres intermitentes e palustres levavam à morte inúmeros indivíduos. Nesta área, abundavam os igapós, onde se encontravam os melhores seringais. Referindo-se a ela, asseverava Ferreira Penna: “Essa parte tem sido considerada o Eldorado dos seringueiros, cabendo-lhe muito melhor o nome de cemitério da indústria – e civilização da Província, pelo mal que faz à população o fabrico da borracha” (Penna, 1973: 34).
Nos seringais, o extrator/fabricante de borracha trabalhava, às primeiras quatro ou cinco horas de seu dia, golpeando as árvores e colhendo-lhes a seiva em tigelinhas, para depois ir preparar o produto numa palhoça. A coagulação do suco da seringueira era obtida pela defumação, processo reconhecidamente prejudicial à saúde (a fumaça da fogueira continha, em proporções elevadas, gases nocivos ao aparelho respiratório, como óxido de carbono e aldeído fórmico).
Alie-se às condições físicas da área (locus de sezões) e à defumação, o tipo de alimentação de que se nutriam os seringueiros – pirarucu seco, peixe do mato, vez por outra alguma caça, e farinha de mandioca, unicamente. Nem todos tinham acesso a essa “variedade”. Na realidade, muitas recorriam à farinha de mandioca misturada com água colhida no rio, compondo um alimento extremamente popular no Pará – e, provavelmente, em toda a Amazônia, o chibé. Havia, ainda, a bacaba e o açaí, frutos de palmeiras nativas, que eram pequenas bolas de película fina e dura que, friccionadas, adicionando-se água, fornecem um sumo bebido com ou sem farinha de mandioca. Durante o auge da economia do látex (aproximadamente entre 1870/1910), tal alimentação se não foi substituída – forte demais a afirmação –, foi “complementada” por produtos enlatados que só viriam recrudescer o quadro de anormalidade nutricional, sem dúvida, contribuindo para o agravamento das doenças.
A produção de alimentos na Ilha de Marajó
Destinada a ser um imenso criatório de gado vacum, a Ilha forneceu também produtos de lavoura para abastecer Belém. Domingos Soares Ferreira Penna [9] afirmou que a criação de gado vacum era, em 1872, a mais rica atividade da Ilha. Ainda segundo ele, na contracosta também existia uma boa olaria que fabricava telhas, tijolos e louça vermelha; em Muaná ainda se cultivava o cacau; e no Baixo Arari havia plantações de cana e engenhos que fabricavam aguardente.
Em nossa pesquisa também detectamos que o número de pessoas alocadas na agricultura era infinitamente maior do que na atividade criatória. A agricultura, especialmente se praticada de forma extensiva, demandava muito mais homens do que a pecuária, e se por agricultura entendermos também as atividades extrativas. Mas isto por si só não se constitui num dado explicativo daquela concentração.
Em Relatório de 1858, Ambrósio Leitão da Cunha afirmava que o Município de Muaná, com aproximadamente sete mil habitantes, era criador e produtor de cana, cacau, arroz e algodão (Cunha, 1858: 6). Num documento manuscrito apócrifo sobre o Município de Muaná, de 1881, encontramos o registro de que a sua lavoura consistia na cultura do cacau, arroz, cana-de-açúcar, algodão, mandioca, tabaco, milho e feijão. Também eram cultivadas muitas espécies de frutas, como abacate, pupunha, laranja, banana, cupuaçu, lima, coco, ananás, melancia, jerimum, atas, abio, beribá, jacas, jambo, mangas de diversas qualidades, limão doce e ácido, tangerinas [10] .
Criava-se gado vacum, suíno, algum lanígero e caprino; também havia criação de gado cavalar, embora a mesma não fosse progressiva devido à epizootia [11] (popularmente conhecida como “quebra-bunda”). Havia, ainda, uma pequena criação de aves domésticas. O documento informa que a pesca para o consumo era pouca, o que poderia parecer estranho, pois o Município situava-se em local privilegiado: de sua costa poderia receber tainhas, pescadas, filhotes, douradas, peixe-boi, tartarugas, tracacajás, arraias e mariscos. De seus muitos rios receberia acará, piramutaba, tucunaré, pirarara, pacu, pirarucu, mapará, bacu, etc. A indústria fabril produzia açúcar, aguardente e farinha de mandioca. Em 1881, o documento Paço da Câmara da Vila de Muaná indicava a existência de uma indústria extrativa da borracha em grande escala. O comércio consistia na exportação de açúcar, aguardente, cacau, gado vacum, arroz, algum algodão e a borracha, principal gênero do comércio.
O Município contava, ainda, com outros produtos: minerais – várias espécies próprias para construção e marcenaria (massaranduba, pequiá, paracuuba, acapu, sapopira, louro, cedro, bacuri, sapucaia, marupaúba, cumaru, jutaí, marapiranga, pau-rosa, umaúba); frutas silvestres – caju, bacuri, goiaba, araçá, araticum, pequiá, sapucaia, maracujá, mangaba, açaí, patauá, bacaba, buriti, macajá, inajá, umari, taperebá, tucumã, maruxi, etc.; animais silvestres – anta, taititu, porco-do-mato, veados de várias espécies, gato-do-mato, cotia, paca, tatu, quati, macacos de espécies diversas, tamanduás de espécies diversas, guaribas (de carne e pele muito valorizadas; hoje, uma espécie em processo de extinção, como tantas outras mais conhecidas), e variados tipos de aves.
Documento similar sobre o Município da Vila de São João Batista de Curralinho [12] , traz o registro que de certa forma choca-se com os dados do Município de Muaná. Essa fonte é muito precisa ao afirmar que em tempos anteriores à produção de goma elástica, “abundou a lavoura de arroz, farinha, café, algodão e cacau”. Em 1881, havia ainda indivíduos que cultivavam pequenas roças que não produziam nem mesmo para o consumo de suas famílias. Seria possível, então, inferir que, por localizar-se numa área menos rica em seringais (e, realmente, Muaná localiza-se na área de campos e Curralinho na de matas), o Município de Muaná, pôde continuar desenvolvendo sua agricultura e/ou ainda desempenhando-se como fornecedor de gêneros alimentícios para as suas adjacências ou mesmo para fora da Província.
Observe-se que de 1858 a 1881 o Município de Muaná ampliou seus produtos de lavoura – o Relatório dos Negócios da Província do Pará de 1864 do Presidente da Província, Couto de Magalhães, afirmava que, em 1863, dentre os gêneros alimentícios de principal consumo de Belém, alguns provinham, de Marajó: arroz com casca (de Muaná chegaram 1.028 alqueires), milho (1.083 “mãos”) e cacau [13] (de Muaná, 8.340 arrobas). Outros produtos que chegavam de Marajó: peixe salgado (252 arrobas), pirarucu (334 arrobas), carne seca e de moura (1.668 arrobas). Das 13.565 cabeças de gado, importadas para consumo da Capital, 13.323 vieram de Marajó: “A carne verde, mais do que qualquer outro gênero de alimentação, persistiu no passado brasileiro como um problema de abastecimento dos centros urbanos a desafiar leis, instituições, regimes políticos, doutrinas econômicas, governantes, consumidores e soluções. Dela sempre todos se queixam – má qualidade, escassez, carestia, como uma litania que tem seus primeiros refrões no século XVIII, em praticamente qualquer aglomeração urbana da Colônia, continuando, na mesma toada, através do século XIX e penetra na República, sem quebra de ritmo” (Linhares, 1979: 191-192).
No período que estamos tratando, o fornecimento de carne verde da Ilha de Marajó para Belém, representou uma “pedra no calcanhar” dos diversos administradores do Pará. O fato ganha proporções devido à condição “metropolitana” que assumia a Capital. Se a farinha de mandioca, pilar dos costumes das populações amazônicas, permaneceu como produto fundamental ao longo da história da Amazônia; na Capital, após a conquista portuguesa, o consumo de carne verde tornou-se de importância semelhante, talvez, maior. O fato de os colonizadores manterem uma dieta alimentar calcada no consumo de carne, arroz e café (Meggers, 1977: 192) significou sua “incorporação”, de tal forma que ela se tornou uma necessidade absoluta não só para a subsistência, como também passou a ser considerada garantia de boa saúde.
A crise do abastecimento de carne verde em Belém
Por ocasião das epidemias (febre amarela e bexiga), que se alastraram pela Capital e o interior em 1850, o Presidente da Província, Fausto Augusto D’Aguiar, dizia em 1851 que a irregularidade no fornecimento de carne verde era outra causa de sofrimento público: “É freqüente faltar absolutamente a carne nos talhos da Cidade por se demorar a chegada do gado, e, então, vê-se o povo obrigado a usar de outro alimento menos conveniente” (D’Aguiar , 1851: 26). Além da falta da carne verde, ele alertava as autoridades para que atentassem para a qualidade do produto como de uma questão de higiene pública.
A má qualidade da carne verde era atribuída à forma como o gado era transportado à Capital. Depois de dias de viagem, confinado em pequenas embarcações e mal alimentado, ou era imediatamente abatido ou permanecia por mais tempo nos limites mínimos de um curral. Fausto D’Aguiar considerava que não podia deixar de ser muito nociva a carne das reses abatidas em estado tão deplorável. Alie-se a isto a falta de fiscalização, o que aumentava o risco de consumo de carnes afetadas por moléstias contagiosas.
Dois problemas – o transporte e especialmente o furto do gado na Ilha – aparecem em praticamente todos os relatórios oficiais sobre o Pará. Em 1851, Fausto Augusto D’Aguiar já pedia providências. Em 1853, a Resolução n. 230 de 20 de dezembro autorizava o Governo provincial a contratar a condução do gado da Ilha para abastecer Belém, o transporte de passageiros, gêneros e mercadorias entre o porto da Cidade e os de Cametá e de Vila da Vigia, estipulando os pontos de embarque do gado, a quantidade de vapores, suas dimensões e força, o número de viagens, o preço máximo dos fretes e passagens, o número de passageiros e a quantidade de carga do Governo que deveriam ser conduzidos gratuitamente em cada viagem. Fixava também as multas, condições e encargos necessários à polícia e facilidade desta navegação. O Governo poderia conceder, pelos cofres provinciais, por três anos, a subvenção anual de até 30:000$000 réis ao empresário ou companhia que a tal fim se propusesse (Benjamin, 1854: 18-19).
Tão problemática parece se ter revestido a questão da compra ou contratação de um barco a vapor para tal transporte que, em 1855, visando abastecer Belém, Rêgo Barros pediu informações aos Presidentes das Províncias do Maranhão, Ceará, Piauí e Paraíba sobre o preço e o custo do transporte de gado dessas Províncias para a do Pará [14] . Isso teria funcionado positivamente, pois, em 1856, a Província do Pará comprava gado do Ceará e do Piauí, e só desta última provinha 100 reses por nunca além do prazo de 60 dias [15] . Em 1858, Ambrósio Leitão da Cunha, Vice-Presidente da Província, julgava não existir gado suficiente para um fornecimento regular a Belém, bem como alertava para o fato de que a falta de outros alimentos tornava mais dramático o consumo de carne. Para Cunha, também a má qualidade da carne procedente de Marajó devia-se ao péssimo transporte do gado, perdendo peso e, depois, as más condições de higiene à hora do abate a machado e cutelo, na lama mesma onde ficava o gado (Cunha, 1858: 43-44).
Leitão da Cunha propunha que o gado já viesse abatido de Marajó, devendo ser diretamente exposto à venda na Capital. Para isso, sugeria a desapropriação ou compra de um terreno na Ilha: um local não atingido pelas cheias dos rios, na foz do rio Caracará, perto da do rio Arari, a seis léguas de Belém, para onde deveriam ser levadas as reses. Inclusive na Ilha deveria ser construído um matadouro do qual já sairia o gado esquartejado para Belém.
Quanto à indiferença do poder público como uma das causas da carência, é verdadeiramente intrigante as proporções do furto de gado em Marajó, fato que também se encontra registrado nos relatórios das autoridades provinciais: “O roubo do gado em Marajó continua, infelizmente, não obstante as repetidas recomendações que, para puni-lo, tenho feito às autoridades daquela Ilha e os destacamentos de linha que pus a sua disposição na Cachoeira e em Chaves. É que a cessação completa deste estado de coisas que tão de perto afeta a fortuna dos criadores e a alimentação dos habitantes desta Capital, depende de um concurso de medidas, cujo conhecimento e execução requerem meditação, tempo e dispêndio” (Barros, 1855: 6).
Em 1854, referindo-se à polícia rural da Ilha de Marajó, Rêgo Barros lamentava que o Regulamento instituído pela Portaria de 16 de dezembro de 1852, não conseguira melhorar a atuação daquela polícia. Segundo ele, o fato se agravava por que os criadores, contando tão-somente com a tutela do Governo, não empregavam os seus próprios meios, para se prevenir para o futuro. Na realidade, o fracasso do Regulamento devia-se à inadequação do sistema de polícia existente na Ilha: “Os Corpos Coletivos não são os mais próprios para os encargos de semelhante natureza. Convém confiá-los a pessoas individualmente responsável por seus atos, que possam com facilidade mobilizar-se e exercer uma inspeção pronta e imediata em qualquer ponto do seu distrito, estranhas aos interesses e complicações locais, com ordenados que as incitem a empregarem-se exclusivamente e a serem zelosos no seu mister, e com os agentes e mais recursos necessários para as diligências de que essencialmente depende esta espécie de serviço e, por fim, simplificar-se o processo atualmente embaraçado de fórmulas e de julgadores” (Barros, 1855: 53-54). Em 1855, o Vice-presidente da Província, Miguel Antônio Pinto Guimarães, afirmava que todos os esforços deveriam ser feitos para extirpar a prática do roubo de gado na Ilha, uma vez que o mesmo afetava os interesses da Província, ocasionando o aumento do preço da carne verde na Capital [16] . Até aquele momento, todas as medidas tomadas tinham fracassado. O documento consultado, embora não especifique, informa que Pinto Guimarães, inclusive, pedira à Assembléia Provincial que aceitasse uma proposta do norte-americano Thomas Rainey para abastecer o mercado da Capital.
Em 1856 dizia Rêgo Barros que tais medidas eram insuficientes para trazer gêneros de outras províncias. Seria necessário corrigir o estado de escassez periódica em que vivia a cidade de Belém, e sugeria que se habilitasse a Presidência da Província de meios, além dos que já requerera ao Governo Imperial, para impedir não apenas o roubo, mas também a exportação do gado de Marajó. No entanto, em 1866, o Vice-Presidente da Província, Lacerda Chermont, o Barão de Arari, ainda informava que o furto de gado no Marajó continuava e que o gado de Soure era exportado para Caiena (Lacerda Chermont, 1866).
Em 1872, Domingos Soares Ferreira Penna afirmava que o Município de Cachoeira era o mais importante e principal produtor de gado vacum da Ilha. Seu território, atravessado em toda a sua extensão pelo rio Arari, o maior da Ilha, e livremente navegável, facilitava o transporte, mas também permitia o roubo de gado. Atento observador, ao verificar as diversas causas da “decadência” da “indústria pastoril”, essa autoridade informava que o furto de gado na Ilha de Marajó era “(...) costume, e costume tradicional” (Penna, 1973: 77).
Jerônimo Coelho, citando o Relatório de 1849, comentava que o Presidente da Província pretendia dar um regulamento definitivo ao código da polícia rural, para impedir o furto de gado que, cada vez mais, adquiria grandes proporções: “(...) o extravio e o escandaloso roubo de gado estão elevados à categoria de indústria” [17] .
O roubo de gado era um hábito, e todos roubavam gado: vaqueiros, feitores, fazendeiros. Ninguém denunciava para não ser denunciado. Tal prática era velha e (re)conhecida: em 1792, o Capitão General Francisco de Souza Coutinho informava ao Ministro dos Negócios Ultramarinos que aquele que pudesse ter muitos vaqueiros podia fazer o que lhe conviesse, “assim como pode apartar os seus [gados], pode apartar os alheios; e é o que se sucede” [18] . Quem mais praticava furto de gado era o próprio fazendeiro. E o fazia, fosse para comer, criar, ou diversificar sua dieta alimentar. Neste último caso, o que ocorria era a troca da carne de gado (seca ou de salmoura) por outros gêneros, trazidos pelos regatões, que ali aportavam freqüentemente.
Quanto ao gado roubado para ampliar sua criação, o fazendeiro cooptava vaqueiros das fazendas adjacentes; fazia-lhes calar ou abria espaço para que também roubassem: “Este gênero de furto consiste na assinalação de gados que ainda não foram assinalados por seus donos e no viciamento dos sinais de gados já assinalados. Favorece ao furto feito por esta forma o abuso que se tem feito de sinais, pois é raro o fazendeiro que, além do sinal para o qual tem título, não use de dois, quatro ou seis. Por causa deste abuso, hoje tão geralmente introduzido, o sinal não serve de garantia alguma ao fazendeiro” [19] .
Nesse contexto psicossocial, fisiográfico e histórico da Ilha, onde o ilícito foi um elemento tão marcante como a existência dos campos e matas, assumindo relevância e determinando carência e a carestia da carne verde, era natural que ele se convertesse num problema de muita ressonância em toda a Província do Pará. Isso se agravava mais ainda durante as grandes inundações que acometeram a Ilha, sobretudo as mais conhecidas dos anos de 1872 e 1875 (outras ocorreram em 1825/26 e 1856). Domingos Penna chega a considerar que elas foram a principal causa da “decadência“ da “indústria pastoril”. Em 1872, a Ilha sofreu um intenso inverno. A inundação exterminava os novilhos e as crias do ano precedente, sem chance de defesa, e até mesmo grande parte do gado adulto. A calamidade era atribuída à obstrução do rio Arari que impedia o escoamento das águas pluviais e inundava a Ilha. Os próprios fazendeiros acusavam a existência no rio de um grande baixio situado entre a boca do igarapé Moirin e a fazenda Itacuã.
A preocupação das autoridades leva à criação de uma lei conferindo crédito à Presidência da Província para a compra de uma draga. Em 1871 realizou-se o contrato, mas o resultado não foi dos melhores: ”Passados cerca de 10 meses, chegou o escavador ao porto da Capital, e, como logo se inutilizou ou, para ser mais exato, como já chegou inutilizado e incapaz de serviço, foi submetido a grandes consertos, deu-se-lhe um pessoal bem pago e, por fim, o empresário ganhou e a Província perdeu, ou, como disseram alguns, o escavador só serviu para escavar 80 a 100:000$000 (cem contos de réis) do Tesouro. Quando, porém, depois de grandes dispêndios se chegou a considerá-lo em estado de poder ensaiar o seu maquinismo, o rio Arari, apelando para o testemunho insuspeito dos habitantes da vila da Cachoeira, mostrou-se limpo de culpa e lodo, exibindo aos olhos de todos a cachoeira com seu leito de pedregulho tal qual sempre foi” (Penna, 1973: 28).
Outras causas da “decadência” da “indústria” pastoril, cuja crise já era evidente em 1874, após a consulta às fontes primárias, podem ser enumeradas, a saber:
a) A devastação dos campos. A introdução do gado cavalar na Ilha ocorreu mais ou menos na mesma época que a do gado bovino (trazido provavelmente em 1703). Durante algum tempo sua reprodução entusiasmou os fazendeiros, mas acabou por prejudicar a criação do gado bovino. À produção de 500.000 cabeças de gado bovino, em meados do século XVIII, correspondeu, na segunda dezena do século XIX, uma produção dobrada de gado cavalar. Quase selvagem, este devastava os campos, tornando-os insuficientes para o gado bovino, que então saía em busca de alimento, enfiando-se nos matos alagadiços, nas baixas e atoleiros e, enfraquecido, nas quedas acabava morrendo.
b) A matança de cavalos. Apesar dos reclamos dos fazendeiros, tudo continuou igual até 1826-27. Por essa época, um agente de um inglês “industrioso” solicitou ao Presidente da Província licença para comprar e aniquilar 5.000 éguas na Ilha, com a finalidade de aproveitar as suas peles e crinas na indústria. “É escusado dizer que nenhuma dificuldade se opôs à concessão da licença pedida” (Penna, 1973: 74). Outros agentes, ingleses e franceses, seguiram o primeiro exemplo que havia dado grande lucro. No entanto, como não existia nenhuma disposição para que fossem enterrados, os animais, depois de abatidos e retiradas as peles e crinas, permaneciam expostos nos currais; pelos campos, dispersos aqui e ali: seus corpos em decomposição inundavam a atmosfera. Por largo tempo “tornou-se insofrível a simples passagem ou aproximação àquelas localidades e suas circunvizinhanças” (Penna, 1973: 75).
c) A epizootia. Há registro de que, resultado daquela poluição, a moléstia passou a afetar os cavalos, segundo informavam os contemporâneos (1826/27). Ainda em 1874, ela continuava a fazer estragos. Durante cerca de 36 anos a Assembléia Provincial fez esforços para combater a moléstia. Administradores, empregados e fazendeiros também procuravam debelar a moléstia, embora sem sucesso. Acrescente-se a existência dos mondongos, onde se atolavam e morriam muitas crias e vacas enfraquecidas.
Os dilemas da economia extrativista
Sem dúvida, a criação de gado na Ilha era incomparavelmente mais importante que a atividade agrícola. Mas a agricultura, como de resto incipiente em todo o Pará, teve certa presença também em Marajó. A título de exemplo, pudemos verificar no Mapa demonstrativo dos principais gêneros de exportação do Estado entrado na Capital no ano de 1902 [20] que da Ilha chegavam a Belém: cacau (Afuá, Breves, Anajás, Chaves, Curralinho, Muaná, Ponta de Pedras, São Sebastião da Boa Vista); milho (Afuá); cana-de-açúcar (Muaná, Ponta de Pedras); farinha de mandioca (Ponta de Pedras); da chamada “indústria extrativa”: azeite e óleos (Breves, Cachoeira, Chaves, Curralinho, Muaná); borracha (Afuá, Anajás, Breves, Cachoeira, Chaves, Curralinho, Muaná, Ponta de Pedras, São Sebastião da Boa Vista, Soure); camarão (Breves); grude de peixe (Afuá, Breves); peixe seco (Breves, Chaves, Muaná). Sem falar de outros produtos derivados da madeira, como ripas, tábuas, etc.
Segundo o documento Condições da Agricultura no Estado do Pará de 1908, cultivava-se em Chaves mandioca, macaxeira e havia pequena cultura de cacau. A cultura de mandioca era a mais importante. Havia cana-de-açúcar para fabrico de açúcar e aguardente; em Muaná, cultivava-se cana-de-açúcar, mandioca, cereais (milho, arroz, feijão), cuja produção abasteceria o mercado local e Belém; em São Sebastião da Boa Vista, explorava-se cacau nativo, além das seringueiras; em Soure, cultivava-se o tomate – a cultura mais importante –, milho, cana, arroz, mandioca. O tomate era gênero de exportação do Município de Soure. Embora insignificante, por volta de 1872, nas terras aráveis de boa qualidade de Cachoeira, cultivava-se algodão, milho, arroz e mandioca. Ao descrever o Rio Arari, Domingos Penna mencionava a existência de algumas fazendas de cultura e fabrico de açúcar e aguardente.
Quanto à pecuária, especialmente para fornecimento de carne verde, a Ilha produzia a maior parte, mas não o suficiente para as necessidades da Capital. Em 1857, o consumo de gado vacum de Belém foi de 13.140 cabeças e a oferta da Ilha, de 9.000; em 1905, de 40.389 e só da Ilha saíram 18.787; em 1907, de 40.244 contra 17.378. Ainda que os números mostrem o peso da Ilha no abastecimento de Belém, Marajó não poderia continuar exercendo o seu “destino histórico” de “núcleo subsidiário”.
Com esse levantamento, [21] baseado no discurso de Presidente da Província e Governadores sobre a produção de alimentos e a atuação do aparelho estatal nas crises de abastecimento de Belém, foi possível conhecer diversas visões sobre o problema. Se não todos, a grande maioria dos administradores reconhecia os estados de “penúria”, “carestia e falta de gêneros alimentícios”, o “estado de sofrimento público pela carestia de vida”; o termo “crise” só aparecendo em relação à borracha, quando esta baixava sua cotação no mercado internacional.
Embora as diversas administrações do Pará já viessem de longa data denunciando a escassez e o abandono da agricultura, somente a partir da administração Sá e Benevides (1875) a agricultura e a dramática questão da carne verde e do peixe fresco seriam encaradas com algumas medidas de fomento, alcançando, nas administrações Lauro Sodré (1891-99 e 1917-21), Paes de Carvalho (1899-1901) e Augusto Montenegro (1901-1907), seu sopro maior; apesar dos fracassos, divergências, e as crises da borracha.
O fomento pecuário se deu a partir do primeiro governo constitucional-republicano do Pará.
Para acabar com o atrelamento administrativo dos municípios à Capital (o que dificultava a administração da justiça, importante no caso do roubo de gado em Marajó), as relações entre o interior e a Capital, Lauro Sodré decretou uma lei orgânica dos municípios que passou a vigorar em todo o Estado a partir de 15 de novembro de 1891.
O ano de 1891 coroava o clima de efervescência nascido do Manifesto de 1870 e das agitações do Partido Republicano que combatia a centralização do poder. Uma Constituição liberal e democrática, copiada da Carta dos Estados Unidos, foi promulgada.
A passagem de Província para Estado, com o regime recém-instalado no país quase não significou mudanças nas condições econômico-sociais do Pará. As crises da borracha sucediam-se. Como diria Luiz Cordeiro, comentando a Proclamação da República, permanecia “o regime das promessas mentirosas e a ausência de auxílios” (Cordeiro, 1920: 119).
Falta de verba e poderes conferidos pelo Governo Central foram sempre escassos na região amazônica, o que determinava paralização e o atraso das obras públicas que, quando concluídas, já se apresentavam bastante deterioradas.
A lei orgânica dos municípios não alcançou o resultado esperado. Em 1897, a lavoura de cereais estava abandonada, esquecida a cultura do algodão, desprezada a produção açucareira, abatida a “indústria pastoril”. As “crises” da borracha sucediam-se. As tentativas de fomento da produção pecuária da Ilha de Marajó não deram resultados relevantes. Em 1895, Lauro Sodré ainda acreditava que a Ilha sozinha seria capaz de abastecer de carne o território paraense. Para isso seria necessário resolver os dois maiores problemas; as enchentes e a falta de garantia à propriedade. Tais males poderiam ser remediados pelos poderes públicos. Sodré não estava formulando nenhuma proposta nova e ainda deixava a tarefa para o seu sucessor, Paes de Carvalho, cuja atuação entusiasmou a Associação dos Fazendeiros. Em 1900, Paes de Carvalho já falava da necessidade de ampliar as áreas apropriadas para a pecuária. Não apenas a Ilha de Marajó se lhe afigurava potencialmente apta para a produção de gado vacum.
Nesse mesmo ano, o Conselho Municipal se via às voltas com três graves problemas: 1) por causa do rigoroso verão de 1899, o abastecimento da farinha de mandioca era precário; 2) escasseava a carne verde; e 3) o êxodo de nordestinos havia trazido para o Pará grandes contingentes de retirantes, aumentando o número de consumidores.
A volta à normalidade das estações deu lugar a um considerável plantio de mandioca, principalmente na Zona Bragantina e em outras áreas do Estado. Assim, no início de 1901, de um modo geral era boa a situação do abastecimento de Belém, não obstante a escassez recorrente de carnes verdes.
Porém, na segunda metade de 1901, mais uma vez o produto-rei, termômetro da economia paraense, caiu em profunda depressão, fazendo o governador Augusto Montenegro, sucessor de Paes de Carvalho no Estado, denunciar a debilidade do erário público: “Se em geral, nos países bem organizados, o estado das finanças públicas é o reflexo fiel do estado econômico de um povo, no Pará esta verdade torna-se axiomática. Desde que o tesouro é nutrido quase que exclusivamente pela taxa sobre um único produto, desde que a absorve mais do quinto do valor bruto mesmo, é óbvio que o tesouro está escravizado totalmente às cotações desse produto” (Montenegro, 1901: 5).
Em 1903, após três anos, parecia que a crise ia chegando ao fim. Maior produção de borracha e preços mais elevados melhoravam a situação econômica. Em 1907, Montenegro contratou os serviços de Adolfo Lutz para estudar a epizootia no gado cavalar da Ilha, cuja conclusão exigiu recorrer ao apoio do Governo Federal. Aliás, capítulo sintomático dessa estória é a criação de um Posto Zootécnico, destinado, entre outras funções, à introdução de novos processos de criação, através da importação e criação de animais de raça. Em 1911, a situação continuava ainda inalterada, embora muito já se soubesse sobre os termos e proporções do problema.
Em 1912, era evidente a derrocada da economia do látex, impondo a intervenção do Governo Federal como uma necessidade inadiável. As promessas foram letras mortas. Em 1919, a pecuária paraense permanecia clamando por ajuda. E crescia, em ritmo acelerado, o número de bocas para alimentar: mais nordestinos buscavam o Pará, reduzidos à fome e à miséria (Sodré, 1919).
Eis aqui um retrato das marchas e contramarchas do processo de produção e abastecimento de um centro urbano, sede de uma economia extrativista que não conseguiu se bastar, mesmo contando com um “núcleo subsidiário” historicamente destinado para tal função.
Alguns processos característicos podem ser indicados, a título de conclusão do argumento que viemos desenvolvendo, a partir da análise dos discursos das autoridades regionais:
· Capital da Amazônia, centro das operações de exportação de produtos da selva, Belém desde sempre, esteve às voltas com problemas de abastecimento. Com o inchamento do setor de serviços devido à intensificação da exploração do Vale Amazônico, a situação recrudesceu. A crise na produção de alimentos, no Pará, foi, no entanto, anterior ao fenômeno da borracha.
No fundo, esse traço da produção de alimentos, no Pará, deveu-se ao antagonismo existente entre extrativismo e agricultura, observado, desde logo, tanto sua história econômica, como também no imaginário social que acompanha a região. A existência de uma natureza pródiga e a dependência absoluta dela sempre mascararam a realidade da região.
O extremo norte, onde se tentou desenvolver agricultura e pecuária, também terminou voltado a economia extrativista de produtos da selva, padrão esse que atingiria seu ápice na exploração da goma elástica.
O aparelho político-administrativo do Pará, na figura de seus representantes, com as exceções da gestão de Paes de Carvalho e mais na de Augusto Montenegro, sempre se comportou, nas crises de subsistência, guiado pela mentalidade espoliativa, expressando a “ideologia” do látex, ainda que nos discursos às vezes ela se misturasse à auto-piedade e ao complexo de inferioridade, diante das regiões “mais prósperas”.
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Notas
[1] O programa de História da Agricultura Brasileira do Departamento de História da Agricultura Brasileira do CPDA/FGV produziu duas obras pioneiras: Linhares(1979) e Linhares e Teixeira Da Silva (1979).
[2] Cf. especialmente Barata (1973) e Cruz (1973), fontes de inspiração de diversos outros historiadores e da oficialidade paraense.
[3] Esta expressão deve sua autoria a Ernesto Cruz. Embora não a usem, outros historiadores paraenses como Leandro Tocantins, Manoel Barata e Antônio Rocha Penteado referem-se à Zona Bragantina e/ou à Ilha de Marajó, como tais.
[4] Cf. “Estado presente da agricultura do Pará, representado a S. Excia. O Senhor Martinho de Souza e Albuquerque, Governador e Capitão Geral do Estado. 15 de março de 1784”. BNRJ SM-I, 21, 1, 16.
[5] Amplas casas de campo, avarandadas e sem forro, edificadas em terrenos cultivados com muitas árvores frutíferas. Cf. Cruz (1973, vol. 2:11).
[6] Baena, Antônio Ladislao Monteiro apud Lima (1987: 22).
[7] Baena, Antônio Ladislao Monteiro, apud Cruz (1973, 2o. vol.: 36).
[8] Para maiores detalhes, consulte Lima (1987: 44-218).
[9] Em 1871, o presidente de província, Abel Graça, encomendou a Domingos Penna o estudo da Ilha e de outros lugares. Penna realizou missões e apresentou diversos relatórios a diversos presidentes de província.
[10] Província do Pará, Paço da Câmara Municipal da Vila de Muaná, 1881.
[11] Doença que inutilizava os membros posteriores dos animais, impossibilitando-os de manterem-se de pé. Além de reputada incurável, era contagiosa.
[12] Câmara Municipal da Vila de São João Batista de Curralinho. Paço Municipal da Vila de São João Batista de Curralinho, 1881.
[13] Assim como a castanha, o cacau era exportado para outras Províncias e, principalmente, para fora do Império. Na Capital, ficava apenas pequena quantidade para ser empregada na fábrica de chocolate.
[14] Barros, 1855: 15-16.
[15] Exposição. 29/05/1856. Pará, 1956: 28.
[16] Relatório de 15/10/1855, anexo ao Relatório de 16/10 e da Fala de 26/10/1855 de Rêgo Barros, p. 30.
[17] Coelho, Jerônimo de Souza, apud Penna (1973: 77).
[18] Coutinho, Francisco de Souza, apud Penna (1973: 80)
[19] Coutinho, Francisco de Souza, apud Penna (1973).
[20] Estado do Pará – 1902. Anuário Estatístico (...) pelo chefe da 2a. Sessão, Egídio Leão de Salles. Paris: Tip. Ailland & Cia. p. 22.
[21] Para maiores detalhes, ver Lima (1987).