Estudos Sociedade e Agricultura
Giralda Seyferth
Concessão de terras, dívida colonial e mobilidade
Estudos Sociedade e Agricultura, 7, dezembro 1996: 29-58.
Resumo: (Concessão de terras, dívida colonial e mobilidade) Este artigo analisa a sistemática da concessão de terras públicas a colonos de origem européia, na fase final dos assentamentos ocorridos no Vale do Itajaí-mirim, após a criação do município de Brusque em 1881 – uma região oficial de colonização administrada pelo Estado de Santa Catarina desde 1860. Focaliza as práticas de ocupação de lotes utilizadas pelos colonos, consideradas ilegais pelas autoridades porque contrariavam o modelo de colonização idealizado pelo Estado, configurando uma situação de constantes deslocamentos. O artigo contribui para o entendimento da mobilidade camponesa no sul do Brasil – no contexto do processo histórico de imigração e colonização.
Palavras-chave: ocupação de terras públicas, colonização e imigração, mobilidade camponesa.
Abstract: This article studies the process of public land concession to settlers of European origin, focusing on the last colonization period within the Itajaí-mirim Valley (a Santa Catarina State colonial region since 1860), after the creation of the Brusque municipality in 1881. It deals also with the land occupation practices used by settlers, esteemed to be illegal from the authoritie’s view point because they contradict the model of colonization idealized by the legal authorities, showing a situation of constant displacement. The article is a contribution toward understanding peasant mobility in Southern Brazil – in a historical context of immigration and colonization processes.
Key words: public land occupation, colonization and immigration, peasant mobility.
Giralda Seyferth é professora do Museu Nacional/UFRRJ.
Este trabalho focaliza a sistemática de concessão de terras e as práticas de ocupação de lotes configuradas como “ilegais” na fase final do assentamento de colonos europeus na área pertencente às Colônias Itajaí e Príncipe D. Pedro, fundadas (respectivamente em 1860 e 1866) e administradas pela Província de Santa Catarina. A área destinada a estes dois projetos de colonização oficial englobava o médio e alto Vale do Rio Itajaí-mirim e uma parte do Rio Tijucas [1] – portanto, a região que hoje corresponde, aproximadamente, aos municípios de Brusque, Guabiruba, Botuverá, Vidal Ramos, Nova Trento, Leoberto Leal e parte do município de Itajaí. No período histórico abrangido por este trabalho (1881-1930) os quatro primeiros formavam uma única unidade municipal – Brusque – derivada da emancipação da Colônia Itajaí em 1881; e o município de Nova Trento foi criado em 1892, desmembrado do município de Tijucas (Cf. Cabral, 1970). Com a extinção da Colônia, o assentamento de imigrantes passou a ser responsabilidade da Inspetoria de Terras e Colonização – portanto, oficialmente fora do controle do poder local. A análise sobre as práticas relacionadas à distribuição de terras e à mobilidade dos colonos, embora referida a um caso especifico do Vale do Itajaí, procura relativizar algumas afirmações distorcidas ou idealizadas contidas na literatura sobre imigração e colonização. O trabalho, assim, se inscreve entre os estudos sobre a mobilidade do campesinato que se formou nas regiões de colonização do sul do Brasil, sob a égide da pequena propriedade familiar.
I
Parte dos autores que trataram do tema da colonização européia no sul do Brasil tem diferentes interpretações sobre as causas da mobilidade dos colonos. Entre elas podem ser enumeradas a falta de apego à terra, tomada como espécie de desvio ou anomalia do comportamento camponês, os desacertos da política de colonização, a instabilidade da agricultura, o contato com o caboclo brasileiro e suas práticas agrícolas atrasadas, a mentalidade pré-capitalista dos camponeses, a mentalidade pioneira, a abundância de terras virgens (com abertura constante de novas colônias), etc. Mas a maioria dos textos (inclusive de alguns cientistas sociais) nem sequer faz menção à mobilidade: ela é simplesmente ignorada tendo por base o paradigma de sucesso dos empreendimentos coloniais.
Alguns exemplos permitem situar a questão no âmbito da literatura especializada. Ao falar da instabilidade crônica dos colonos alemães no Rio Grande do Sul, Jean Roche (1969, II: 565) conclui: “essa classe é muito ligada à propriedade mas não à terra”. Se esta afirmação for tomada isoladamente, pode parecer que Roche compartilha da opinião de Willems, segundo a qual “virtualmente, o colono teuto-brasileiro está sempre disposto a vender suas roças e a sua casa e a tentar a vida numa zona mais ou menos distante de cujas possibilidades econômicas ouviu falar” (Willems, 1980: 182). O pressuposto da caboclização está presente nas considerações deste autor sobre a mobilidade, mas Roche, ao contrário, situa suas causas nas formas de execução da política de colonização e sua relação causal com a “necessidade de encontrar terras novas para as gerações vindouras”, razão que “impede que o colono se apegue à sua terra” (Roche, II: 570). As limitações de um sistema de assentamento em lotes coloniais cada vez menores [2] – a questão fundiária, enfim – aparece como causa primordial da mobilidade, claramente associada à reprodução social deste campesinato. Nesse sentido, a instabilidade de que fala Roche é relacionada à precariedade da execução dos projetos coloniais: terras devolutas vendidas pelo Estado sem demarcação apropriada, às vezes incluindo áreas particulares ou em disputa judicial; grilagem de lotes atribuídos a colonos; a demora na quitação da dívida colonial, com atraso na expedição dos títulos definitivos; conflitos envolvendo questões de limites entre lotes; desconhecimento dos procedimentos legais acerca da propriedade e herança por parte dos imigrantes e até dos seus descendentes [3] . Diante deste quadro, afirma o autor que “durante todo o século XIX e, por vezes, ainda no século XX, a vida das colônias foi agitada pela questão do cadastro e dos títulos de propriedade. O tranqüilo prazer da posse era turvado pelas ameaças de expropriação, de reivindicação ou de indenização, que criavam uma agitação endêmica dos espíritos e tornava sempre precária a propriedade. Essa incerteza, acrescida à valorização das terras, explica a aspereza das reivindicações, pois o colono não podia viver sem terra para cultivar” (Roche, 1969, II: 568).
Estes problemas relacionados à propriedade da terra também são mencionados por autores que estudaram as “colônias particulares”, isto é, estabelecidas por companhias de colonização constituídas como empresas, e que obtinham concessão de terras devolutas (como no alto Vale do Itajaí, cf. Albersheim, 1962), ou lotearam terras de particulares (como na região do atual município de Venâncio Aires no Rio Grande do Sul, cf. Flores, 1983).
Apesar de não realizarem análises mais abrangentes sobre a questão fundiária, os dados apresentados por estes autores apontam para uma constante troca de lotes entre colonos ou para o abandono dos lotes com deslocamentos sucessivos para outras colônias. A especulação fraudulenta, a não-quitação da dívida dentro dos prazos estipulados nos contratos (Roche, 1969), a má qualidade das terras e o pequeno tamanho dos lotes (Albersheim, 1962), as demarcações malfeitas ou mesmo causas sociais [4] (Flores, 1983) são arroladas para explicar a mobilidade espacial – que pode ser individual ou coletiva (famílias aparentadas entre si ou simplesmente ligadas por laços de vizinhança, ou de mesma procedência nacional, que migram juntas).
Os autores citados estudaram a colonização alemã. No entanto, nas chamadas colônias italianas [5] os problemas fundiários eram praticamente os mesmos. Assim, Azevedo (1982) e Manfroi (1979), mencionam a preferência dos colonos em se agrupar com base na origem nacional ou regional, mesmo quando recebiam lotes em linhas coloniais diferentes. O processo de reagrupamento se fazia através da troca ou da venda de lotes, ou simplesmente, pelo abandono e reassentamento noutra linha, tentando uma recomposição comunitária ou de parentesco. Embora Azevedo e Manfroi não estivessem diretamente interessantes na mobilidade, os dados que apresentam para os colonos italianos permitem detectar as mesmas causas de instabilidade fundiária; isto é, os deslocamentos também estavam relacionados a razões de natureza étnica, social, à questão das dívidas e à falta de garantia e regularização da propriedade territorial, aos conflitos individuais causados pela demarcação dos lotes, e ao próprio tamanho dos lotes originais (cuja variação era de 12 a 25 hectares). Azevedo (1982: 213-14) ainda menciona conflitos e protestos coletivos por causa das condições precárias enfrentadas pelos colonos.
As palavras “caos”, “instabilidade” e “conflito” aparecem com freqüência nos textos citados (com exceção de Willems), numa crítica à política de colonização oficial e das empresas particulares. Apesar disso, a questão fundiária é mencionada em poucos parágrafos, que remetem ao tamanho e distribuição espacial das linhas e respectivos lotes. Numa outra perspectiva, autores como Willems (1940, 1980) e Waibel (1958), entre outros, associam a mobilidade espacial dos colonos com a prática da agricultura extensiva resultante da “influência da cultura cabocla”, dando também algum destaque às influências do meio físico. Nestas análises, a prática da coivara, com o conseqüente esgotamento das terras, teria conduzido e uma agricultura de rapina (Raubau, na designação alemã), com produção pouco racional, inadequada a uma economia capitalista, e voltada primordialmente para a subsistência familiar, fator que levou parte dos colonos à troca sistemática de uma propriedade por outra, literalmente correndo atrás de novas frentes pioneiras. O pressuposto que orienta a interpretação de Willems e Waibel é o retrocesso econômico e cultura, dos descendentes de colonos europeus, decorrentes de fatores mesológicos e do processo de aculturação: a falta de apego à terra e a mentalidade pioneira impulsionando a caboclização e o nomadismo. Willems (1940), de certa forma, se prende a uma concepção idealizada da ligação emocional do camponês por sua terra, onde a “imobilidade” do campesinato alemão é contraposta ao nomadismo dos colonos teuto-brasileiros – como se tivessem deixado no país de origem o “apego à terra”. Nesta interpretação, os ditames da reprodução econômica e social do campesinato sucumbem aos deveres da sua condição de classe – a suposta obrigação que todo camponês tem de se apegar à terra e passá-la de geração a geração.
Mas, se por um lado, as causas da mobilidade são apenas parcialmente analisadas, por outro, boa parte da literatura sequer faz referência a ela, numa celebração da colonização idealizada como processo de desenvolvimento econômico, social e político, sem percalços na sua história pioneira. Da colônia à indústria, passando pelo artesanato – eis o modelo privilegiado nas histórias das colônias e, de certa forma respaldado por alguns cientistas sociais e historiadores entusiasmados com o sucesso da política de colonização. Diegues Jr. (1964: 46), por exemplo, afirma: “O regime de pequena propriedade rural, nascido nos lotes de terras que foram concedidos aos imigrantes como colonos, teve resultados profícuos nas regiões por onde se implantou. Foi sem dúvida um dos fatores de fixação do colono, e com essa fixação criou condições que estimularam o progresso regional, através do desenvolvimento do artesanato e do crescimento da produção agrícola. A pequena propriedade representou um elemento estimulador da estabilidade do imigrante, tornando-o proprietário, e dando-lhe assim maior responsabilidade e sobretudo consciência do papel que passava a representar na nova sociedade”.
“Instabilidade crônica, “caboclização”, “estabilidade da pequena propriedade” conduzindo à industrialização – os termos explicativos para o sistema de colonização presentes na literatura são diferenciados, às vezes simplistas na sua formulação, mas de modo algum exclusivos. As colônias não foram apenas prósperos oásis de tranqüilidade propiciados pela política de colonização baseada na pequena propriedade, nem caos absoluto marcado pela instabilidade crônica da agricultura camponesa. Independentemente do privilegiamento de uma ou outra interpretação, a literatura permite vislumbrar que a dinâmica da ocupação de terras devolutas por imigrantes nem sempre obedeceu ao modelo idealizado pelo Estado, e que a mobilidade (sistematicamente ignorada pela maioria dos autores) tem muito pouco a ver com a dinâmica da aculturação e está intrinsecamente relacionada à reprodução do campesinato. Aliás o tão celebrado sucesso da colonização é medido, principalmente, pela industrialização dos principais núcleos urbanos que floresceram nas áreas coloniais – e que atraiu para as fábricas uma parcela significativa do campesinato (configuração da outra face da mobilidade – a migração rural-urbana).
II
Nos 21 anos situados entre a fundação da colônia Itajaí-Brusque e sua emancipação política, o assentamento de colonos de diferentes procedências nacionais [6] foi marcado por conflitos e problemas de diversas ordens, motivados, sobretudo, pela desorganização na demarcação dos lotes, pela falta de recursos para assegurar o funcionamento dos serviços públicos (ai compreendidos saúde, educação, vias de comunicação, expedição de títulos de propriedade, etc.) e pelo excesso de imigrantes encaminhados à região, em número superior ao suportável pela Colônia, obrigando a longos períodos de até um ano de espera pela concessão do lote.
Os protestos individuais e coletivos dos colonos, resultantes das precárias condições vigentes na Colônia, foram objeto de um trabalho anterior (Seyferth, 1988). A relação dos colonos com a administração e autoridades estaduais foi pontuada por conflitos, alguns deles violentos, envolvendo destacamentos de soldados enviados para conter as manifestações. Parte das reivindicações dizia respeito à posse da terra – numa constante preocupação dos imigrantes com a expedição dos títulos de propriedade. Não há registro de manifestações violentas após a criação do município de Brusque, apesar da continuidade do processo de colonização. A ocupação das terras devolutas com imigrantes passou a ser responsabilidade do escritório local da Inspetoria de Terras e Colonização, extinta em 1897 e substituída, sistematicamente, por outros órgãos públicos com idêntica finalidade. Na verdade, a troca de denominações, freqüentes após 1889, não significou mudança radical na sistemática de colonização. Apesar disso, a sucessão de leis, decretos e regulamentações do sistema de colonização causou alguma confusão entre colonos que sequer conheciam o idioma português, e cuja única orientação legal vinha do próprio órgão encarregado da concessão de lotes e da cobrança das dívidas que, por sua vez, mudou de nome com certa constância. O fluxo imigratório diminuiu após 1881, provavelmente porque as terras de várzea mais apropriadas à agricultura já estavam ocupadas, restando para colonizar apenas os terrenos acidentados e distantes da sede municipal. A situação dos colonos que já haviam ocupado seus lotes, mas que não saldaram sua dívida com o Estado, bem como os novos assentamentos, estavam subordinados a órgãos estaduais e federais encarregados da colonização, e à legislação que regulamentava as concessões de terras públicas. A administração municipal, portanto, não tinha controle legal sobre o processo de ocupação das terras demarcadas em linhas coloniais.
A periodização adotada marca, por um lado, a passagem da colônia agrícola à condição de município, coincidindo com o fim de uma fase conturbada por conflitos entre colonos e a administração colonial que, no local, representava o Estado, e com a diminuição progressiva do fluxo imigratório (1881); e, por outro lado, o término da colonização da região (aproximadamente 1930).
Na elaboração do trabalho foi utilizada a documentação produzida no âmbito da Inspetoria de Terras e Colonização e nos órgãos públicos que a substituíram (como a Comissão de Medição de Lotes das Ex-Colônias Itajaí e Príncipe D. Pedro, o Comissariado Geral das Terras do Estado, etc.): são os livros de registros das concessões de terras, das dívidas dos colonos, de requerimentos e informações (onde estão transcritas as petições dos colonos), títulos provisórios de concessão de lotes [7] . Algumas histórias de vida e relatos de colonos referidos à mobilidade dos “pioneiros” serviram como fontes adicionais.
III
A literatura aponta para a valorização extrema da propriedade individual, pelos colonos, como forma privilegiada de acesso à terra. Esta constatação, como já foi observado, traz em si uma crítica à mentalidade pioneira de um campesinato que valoriza mais a propriedade do que a terra, contrariando valores tradicionais de seus antepassados europeus. Ao vincular um juízo de valor (o desapego à terra) à questão concreta da mobilidade espacial, os autores citados deixaram em segundo plano, ou simplesmente ignoraram o fato de que o próprio sistema de colonização impunha a idéia de propriedade legítima como única forma de obter a concessão do lote colonial. Assim, a Lei de Terras de 1850, vinculada ao projeto imigrantista do Império, extinguiu o regime de posses e transformou as terras devolutas em mercadoria, isto é, a posse só podia ser efetivada por compra, ao Estado. A posse continuou sendo um direito potencial à propriedade, de acordo com Foweraker (1982), mas a definição da propriedade cabe ao Estado. O controle das terras devolutas passou da União para os Estados em 1891, mas isto não afetou os procedimentos de concessão de lotes coloniais: o colono (europeu ou brasileiro) obtinha a concessão por compra e o título definitivo de propriedade só era expedido após a quitação da dívida, numa tramitação burocrática bastante longa.
Na verdade as regras do sistema de colonização não favoreciam aqueles que a burocracia oficial denominava de “intrusos” ou de “posseiros” – sempre sujeitos à expulsão.
Num contexto administrativamente confuso, onde os títulos definitivos demoravam décadas, onde lotes eram ocupados sem permissão do órgão responsável pelos assentamentos, onde famílias corriam o risco de perder benfeitorias e os investimentos de muitos anos de trabalho porque não podiam saldar a “dívida colonial”, obviamente a propriedade da terra era extremamente valorizada e a única forma de posse legitimada e perseguida.
A confusão legal apontada por autores como Foweraker na ocupação mais recente das terras devolutas do oeste do Paraná, Mato Grosso, etc., também ocorreu nas áreas coloniais mais antigas, povoadas com imigrantes europeus, como no vale do Itajaí. Assim, a documentação relativa à ocupação dos lotes na antiga Colônia Itajaí aponta para uma certa incapacidade da administração colonial (até 1881) e da administração estadual de controlar o assentamento dos colonos. As demarcações precárias dos lotes, a falta de pessoal técnico, a centralização da expedição dos títulos provisórios e definitivos (num longo percurso burocrático que chegava ao governador do Estado), não só dificultava a legalização da propriedade pelos colonos, como permitia que pessoas e grupos econômicos que dominavam a política local manipulassem a lei para controlar parte das terras destinadas ao projeto de colonização.
As alterações relativamente freqüentes na legislação específica, as dificuldades na administração da ocupação das terras até o encerramento do projeto em fins da década de 20, os interesses econômicos das oligarquias locais, aguçados a partir da emancipação da Colônia, contudo, não trouxeram mudanças substânciais ao essencial da política de colonização. Os lotes eram concedidos por compra, através de requerimento dos colonos, para pagamento num prazo máximo de 5 ou 6 anos. No ato de concessão, portanto, as famílias concessionárias assumiam uma dívida e recebiam um título provisório. O povoamento não foi um processo espontâneo e a ocupação das terras obedeceu a um rígido controle dos funcionários do órgão colonizador. O tamanho dos lotes raramente ultrapassou os 25 hectares, e sua demarcação realizou-se por linhas coloniais, em formato longitudinal, com dimensões que variavam entre 100 e 200 metros de largura por 600 a 1.000 metros de comprimento – uma demarcação onde o principal ponto de referência era o curso d’água (rio ou ribeirões). Finalmente, o “chefe da família” figurava como concessionário, mas a concessão era “familiar”. Neste caso, os beneficiários da concessão eram, em primeiro lugar, as famílias nucleares compostas por pais e filhos pequenos, por viúvas ou viúvos e seus filhos. Solteiros e filhos de adultos de colonos que já possuíam um lote tinham dificuldades de acesso à terra. A concepção idealizada neste processo tinha como parâmetro a pequena propriedade trabalhada exclusivamente pelos membros de uma família nuclear.
O preço estipulado no ato de concessão e o prazo de pagamento eram variáveis, embora os limites máximos, supostamente, não podiam ultrapassar aquilo que estava delimitado na legislação. O preço dependia do tamanho do lote e da sua distância em relação à vila mais próxima (no caso, Brusque e Nova Trento), calculado por metro quadrado. O preço final da maioria dos lotes concedidos desde 1881 oscilava entre 200 e 400 mil réis, conforme os Livros de Registros das Concessões; um valor a ser pago em prestações anuais, num prazo máximo de 5 ou 6 anos (nos termos estabelecidos pelos próprios concessionários), com juros de 6% ao ano. O atraso no pagamento implicava em juros de mora acrescidos ao montante da dívida, à qual também eram incorporados os eventuais subsídios recebidos para manutenção [8] . A qualidade das terras não tinha influência sobre o preço dos lotes. A distância em relação à vila parece ter sido o fator crucial na determinação do preço, num cálculo onde estavam em jogo as possibilidades mais ou menos concretas de escoamento da produção.
Os colonos tinham acesso ao título de propriedade após a quitação da dívida (inclusive dos subsídios) e do pagamento das despesas com a medição definitiva das terras, dadas as condições precárias da demarcação inicial por linhas coloniais.
Este formato de assentamento de colonos não foi exclusivo desta região. O processo de colonização do sul estava sujeito a um mesmo conjunto de leis (apesar da autonomia específica de cada Estado) e, com raras exceções, realizou-se em terras devolutas, portanto, públicas. Cumpria-se, assim, um dos objetivos desta política – o povoamento de áreas consideradas “vazios demográficos” [9] . Os projetos oficiais e particulares de colonização seguiram, pois, o mesmo procedimento: o lote concedido por compra, ficando a terra hipotecada até o pagamento da dívida, chamada “colonial” porque incluía, além do preço da terra, adiantamentos, subsídios e juros.
Burocrática e legalmente a colonização foi concebida como um modelo perfeito, que previu, inclusive, espaços destinados às futuras povoações. No caso em questão, para cada conjunto de linhas coloniais de um distrito também foram demarcados “lotes urbanos”, nas chamadas “linhas sede”, bem menores (entre 1.000 e 3.000 metros quadrados) com preço mais alto por metro quadrado. Os ocupantes destes lotes, em geral, não eram agricultores; o sistema praticamente impunha ao colono fixar residência no lote colonial concedido. Neste caso, o formato assumido pela ocupação – como em quase todo o sul do país – foi o do povoamento rural disperso, em fileiras (Cf. Seyferth, 1974).
Mas o “modelo perfeito” constante dos mapas dos agrimensores não levou em conta todo um conjunto de circunstâncias adversas que marcaram a colonização desde o seu início, em 1860. Em primeiro lugar, os burocratas não previram as dificuldades de demarcação de lotes numa área acidentada e coberta por florestas: erros na colocação dos marcos, o próprio traçado dos lotes em linhas retas que não levavam em conta a topografia, entre outras coisas, causaram muitos conflitos em torno de limites, obrigando a despesas com novas demarcações, sendo que a definitiva corria por conta do futuro proprietário. Em segundo lugar, boa parte do território que restou para colonizar após 1881 constituía-se de terrenos de encosta, com grandes jazidas de calcário, pouco aproveitáveis para agricultura. O “modelo perfeito” estabeleceu como fundamento do sistema a pequena propriedade familiar. O tamanho dos lotes (25 hectares), estipulado segundo o princípio da utilização exclusiva da mão-de-obra familiar, pressupunha uma área de terra que bastasse às necessidades de uma família (nuclear), explorada sem empregados. Este cálculo não levou em consideração a má qualidade das terras, uma das causas principais da mobilidade, tanto no Vale do Itajaí como em outras regiões de colonização européia no sul, conforme Waibel (1958). Em terceiro lugar, o planejamento – talvez um pouco obscurecido por uma imagem da auto-suficiência da pequena propriedade familiar – não levou em conta nem as dificuldades de cultivar acidentadas terras de floresta, nem a distância do mercado consumidor dos bens produzidos na Colônia, fatores que inviabilizaram, para muitos, o pagamento da dívida. Finalmente, a forma aleatória dos assentamentos, que separava, muitas vezes, parentes ou famílias procedentes de uma mesma região, a impossibilidade de acesso à terra para os filhos adultos solteiros, além da especulação fundiária ligada aos interesses econômicos externos à classe dos colonos, foram outros tantos fatores que atrapalharam o projeto idealizado de colonização, e contribuíram para o abandono ou troca de lotes à revelia da legislação.
Como em outras colônias do Vale do Itajaí, a ocupação das terras realizou-se a partir de um centro situado à margem do rio, previsto como futura área urbana. As linhas principais foram traçadas ao longo das duas margens do rio Itajaí-mirim e de seu principal afluente, o ribeirão da Guabiruba; as linhas secundárias, por sua vez, também acompanharam as margens dos cursos d’água. A ocupação se deu em direção às nascentes do rio, em terrenos cada vez mais acidentados e afastados do centro da Colônia. O fluxo imigratório, embora diminuindo consideravelmente a cada década, persistiu por mais de 50 anos – os colonos recebendo lotes cada vez mais acidentados e distantes da vila de Brusque, o antigo centro da Colônia.
Apesar do planejamento cuidadoso e da burocracia da colonização (presentes através da diretoria da Colônia até 1881 e dos agentes de diferentes órgãos estaduais e federais que a sucederam), não houve uma ocupação organizada das terras (demarcadas ou não). Ao contrário, a documentação correspondente à fase final dos assentamentos, após a emancipação da Colônia, revela, sobretudo, uma intensa mobilidade e a presença constante de posseiros [10] (a ‘maioria deles imigrantes). O Ofício n. 61, de 26/9/1914, assinado pelo agente A. Eisendecker e dirigido ao Diretor de Viação, Terras e Obras Públicas do Estado de Santa Catarina, pode ser tomado como exemplo:
Incluso remeto-vos, para os desvidos fins, uma relação dos intrusos existentes neste distrito, intimados de acordo com a lei a medirem e pagarem no prazo de dois meses as terras que ilegalmente ocuparam. Em diversos lugares ainda não foi possível descobrir os intrusos existentes, além disso encontrei nos livros 138 concessões dos anos 1913-1914 até agora não medidas, provavelmente em conseqüência da escassez de dinheiro.
Este e outros documentos de mesmo teor mostram uma realidade surpreendente, ignorada pelos estudiosos da colonização em Santa Catarina: pelo menos neste caso, a ocupação das terras destinadas aos colonos efetuou-se, em grande parte, através de invasões [11] . Parte destes invasores eram italianos ou alemães recém-chegados, mas entre eles, provavelmente, existiam filhos e netos dos chamados pioneiros. São raros os nomes luso-brasileiros constantes das listas concessionários e intrusos – mostrando que a população regional próxima à área de colonização teve participação muito pequena no processo de ocupação das terras devolutas [12] .
Documentos como o citado são significativos para o entendimento da mobilidade, pois mostram, em primeiro lugar, que decorridas mais de cinco décadas, persistiam os problemas relacionados à demarcação das terras. Qualquer ofício de diretor da Colônia datado de 1860, por exemplo, menciona a escassez de recursos para uma demarcação efetiva que evitasse conflitos (cf. Seyferth, 1988). Mais ainda, apontam para a ocorrência de ocupações antes da medição dos lotes. Além disso, as autoridades sequer tinham noção do número exato de “intrusos” e “ocupantes ilegais” (para usar as categorias de uso oficial). Por outro lado, este tipo de ocupação podia ser uma estratégia bem-sucedida, uma vez que, nesta mesma documentação, verifica-se que os colonos nesta situação tinham a possibilidade de obter a terra legalmente, desde que se dispusessem a pagar integralmente, em prazo curto, o valor estipulado para o lote e sua medição definitiva. A posse, assim, podia constituir-se em um direito potencial à propriedade, confirmada na própria documentação. Existem inúmeros ofícios dirigidos ao Promotor Público solicitando a intimação de intrusos para que regularizem suas posses, providenciando a medição definitiva e o pagamento dos valores estipulados para seus lotes, sempre num prazo de dois meses. Em muitos destes ofícios é mencionada uma lei estadual de 1908 onde está definido o tipo de colono que deve ter sua situação legalmente regularizada: aqueles que, sem nenhuma dúvida, fixaram suas residências definitivas em quaisquer lotes de terras ainda não demarcadas, como “posseiros criminosos”. Apesar de pressupor a invasão de terras devolutas como crime (expresso na própria categoria empregada), os posseiros têm oportunidade de obter um título de propriedade desde que comprovem o uso da terra que ocuparam. A existência de benfeitorias e plantações assegurava o direito de posse, e o crime deixava de existir no ato do pagamento da dívida colonial, estipulada de acordo com a lei.
Na mesma documentação em que se define o “posseiro criminoso” como apto a regularizar sua situação legal, aparece uma outra categoria – “intruso ambulante” – que desqualifica aqueles que se deslocaram com mais freqüência de um lote para outro. Segundo o Ofício n. 42, de 16/7/1909, por exemplo:
... os ocupantes dos lotes vulgo intrusos, eram pessoas que fixaram definitivamente como posseiros as suas residências em qualquer lote ou terra ainda não demarcada, como entende-se em geral um intruso. Mas no Ouro existem uma espécie de intrusos ambulantes, que moram hoje aqui, amanhã lá, que plantam cá e lá. A conseqüência de uma tal vida errante é somente a completa desvalorização de uma linha inteira. É esta agência de opinião que a maior parte dos moradores não pode ser considerada posseiros criminosos, no sentido do art. V do Regulamento para execução da Lei n. 173 e pede autorização do governo que pode proceder contra todos aqueles que forem encontrados sem benfeitorias que provam indubitavelmente a colonização definitiva como rege o art. 67 do cap. IX da mesma Lei.
Este texto é demonstrativo da possibilidade legal de regularização da posse, mas também aponta para as dificuldades impostas aos dois tipos de posseiros considerados como postulantes em potencial (criminosos e os intrusos ambulantes). A questão legal implícita no ofício citado remete aos termos de compromisso assumidos pelos colonos no ato da concessão dos lotes.
As condições de venda do lote colonial pelo governo constam do documento chamado “Designação de Lote de Terras” – com texto bilingüe, conforme a nacionalidade do colono – e que também servia como título provisório. Isto é, ao receber legalmente um lote, o colono assumia uma série de compromissos, que deviam ser cumpridos sob pena de perda da concessão.
Na “Designação” consta o número do lote, a linha ou referência à planta cadastral, o distrito, a metragem quadrada e mais dez cláusulas que regulamentam a concessão de acordo com a legislação. A primeira cláusula responsabiliza o concessionário pela manutenção dos marcos, que não devem ser deslocados sob pena de nova demarcação às expensas do responsável. A segunda cláusula impõe um prazo de seis meses para que sejam cultivadas, no mínimo, mil braças quadradas, e seja construída uma casa com pelo menos quatrocentos palmos quadrados (designada como “habitação permanente”). Estipula, portanto, uma ocupação definitiva. A terceira cláusula específica que o título definitivo de propriedade só será expedido após o pagamento integral da dívida. Se a dívida for saldada antes, o ocupante deve provar, através de testemunhas, a permanência de pelo menos um ano no lote, com casa e cultivo efetivamente realizados. As outras cláusulas importantes são: aquela que especifica o preço do metro (ou braça, conforme a época) quadrado e o prazo de pagamento (em geral cinco anos, conforme a legislação vigente), e a que dispõe sobre os direitos dos herdeiros, em caso de morte do concessionário (que é sempre o chefe da família, homem ou mulher). Nesses casos, os herdeiros, filhos ou cônjuge, permaneciam com a concessão desde que isto fosse requerido à maior autoridade estadual (o governador) através do agente local encarregado da colonização. É claro que, mantida a concessão, todas as cláusulas contratuais deviam ser cumprida, inclusive o pagamento da dívida. As demais cláusulas dispõem sobre a conservação de estradas, picadas e pontes; a conservação cabia ao colono que também devia contribuir como o fornecimento de madeira de suas terras para qualquer obra pública próxima a seu lote.
As condições acima descritas mudaram muito pouco ao longo do tempo. Os pontos principais dos títulos provisórios foram mantidos: a terra só podia ser obtida por compra, assegurando-se os direitos dos herdeiros no caso de morte do concessionário; a expedição do título definitivo de propriedade dependia do pagamento da dívida assumida no ato da compra, e a ocupação de fato só era considerada a partir de evidências bem precisas (plantação e moradia no próprio lote). A sistemática de cálculo da área do lote mudou algumas vezes: ora se calcula por braça quadrada, ora por metro quadrado; na especificação das benfeitorias ora utilizaram o palmo, ora o metro quadrado. Os prazos de pagamento também variaram, dependendo de cada caso, mas nunca ultrapassando 5 ou 6 anos.
As cláusulas contratuais constantes dos títulos provisórios e a forma de identificação dos posseiros mostram que as regras do sistema que permitiam a legitimação da posse da terra estavam referidas à marca objetiva atribuída ao pequeno produtor camponês – cultivo da terra como prova de ocupação, acrescido da outra condição contratual fundamental – a moradia dentro do lote. Roças e benfeitorias, portanto, constituíram a condição da posse tanto para os que possuíam o título provisório expedido legalmente como para os que podiam ser classificados como “posseiros criminosos”.
As reivindicações de compra dos “intrusos ambulantes” não eram reconhecidas pelos agentes, apesar de, às vezes, serem chamados de “moradores”. A separação das duas categorias se fazia de modo arbitrário – os “posseiros criminosos” plantando suas roças próximas ao local da moradia (configurando o modelo do lote colonial) enquanto os “ambulantes” faziam suas plantações em diferentes lugares (configurando a “vida errante” mencionada no já citado Ofício n. 42). A natureza do relevo da região explica suficientemente esta segunda forma de ocupação.
De um modo geral, o caminho até a posse definitiva de um lote era longo e intermediado pelo agente local responsável pelos assentamentos, qualquer que fosse a condição legal dos colonos. A este funcionário cabia o parecer inicial sobre o pedido de concessão e arbitrar o preço do metro quadrado do lote pretendido. Informava, também, sobre as dívidas incidentes sobre o preço da terra quando se tratava de lote abandonado pelo primeiro ocupante.
Para os que possuíam título provisório e comprovassem seu estabelecimento efetivo no lote concedido, o primeiro passo para chegar à propriedade era o pagamento da dívida colonial. Comprovado este pagamento, podiam requerer o título definitivo ao governador do Estado, para que, por sua vez, autorizava a escritura (um processo bastante lento que podia levar alguns anos até chegar ao documento final). Os livros do Registro da Dívida Colonial, porém, mostram que boa parte dos colonos que possuíam títulos provisórios renegociaram as dívidas mais de uma vez, havendo casos de concessões feitas nas décadas de 1880 e 1890 que não haviam sido pagas por seus ocupantes em 1918. Há registros de abatimentos progressivos das dívidas (que ultrapassaram muito o prazo de 5 anos), mas a situação, mais comum são os lançamentos em livros subseqüentes, dos saldos a pagar – indício das dificuldades de pagamentos por parte dos colonos, que preferiram o aumento do saldo devedor com acréscimo de juros a cada ano. É interessante observar, porém, que os sucessivos registros da mesma dívida, em nome do mesmo colono, ao longo de mais de uma década, indicam que a inadimplência foi tolerada muito além do prazo máximo de pagamento e à revelia da legislação. O recurso à venda em hasta pública parece ter sido usado nos casos dos lotes abandonados por famílias que possuíam títulos provisórios e haviam contraído a dívida, invadidos por terceiros sem que estes fossem formalmente reconhecidos como posseiros. Aí reside a principal dificuldade de legalização da posse para os “intrusos”: não tinham que pagar apenas o valor estimado por metro quadrado (o valor da terra), mas também assumir a dívida colonial do concessionário original, acrescida dos subsídios e juros, pagando num prazo máximo de 60 dias. O mesmo procedimento de pagamento era válido para os posseiros estabelecidos em lotes abandonados que requeriam à Agência o título de propriedade: comprovada a ocupação efetiva (moradia inclusive) era necessário pagar a dívida do concessionário anterior no mesmo prazo de venda em hasta pública.
As disposições legais que regulavam a posse da terra, portanto, não foram suficientes para assegurar uma ocupação ordenada: nem os agrimensores, nem os responsáveis pela burocracia da Agência de Brusque, podiam informar com certeza sobre a situação fundiária nos territórios coloniais. A correspondência da Agencia com a Diretoria de Viação, Terras e Obras Públicas e com a Promotoria Pública (que abrange principalmente as décadas de 1900 e 1910) é indicativa de uma ocupação desordenada, sobretudo nos distritos de Porto Franco, Ribeirão do Ouro e Nova Trento. As terras ali são de má qualidade, ocorrendo abandonos sucessivos dos lotes, situação agravada pela especulação com madeira e calcário. A maior parte dos ofícios dirigidos à Promotoria Pública solicita a execução de dívidas dos colonos e cancelamentos de concessões. Os despachos dos agentes nos requerimentos de compra dos colonos (quase sempre relacionados a lotes abandonados), por sua vez, tem como principal característica a imprecisão das demarcações: impossibilidade de localização dos marcos, necessidade de nova especificação das linhas divisórias, impossibilidade de encontrar lotes na planta cadastral e até indicações de ribeirões inexistentes (um complicador sério porque estes são os indicadores das linhas). Parte da correspondência evidencia, ainda, o mau relacionamento entre os membros da comissões de medição: auxiliares dos agrimensores são acusados de negligência, falta ao trabalho, insubordinação, havendo vários ofícios solicitando exoneração ou afastamento de funcionários. Em alguns casos, agrimensores e engenheiros são acusados de fraudes, como no Ofício n. 70, de 24/9/1909: o agrimensor J. Batista Noli é acusado de fraudar a demarcação dos lotes “a favor dos seus patrícios italianos”. A fraude em questão constituiu em demarcar os vinte e poucos hectares determinados para cada lote no formato retangular em vez do longitudinal (favorecendo os que tinham o lote assim demarcado em terras melhores).
A maior parte dos documentos (ofícios, pareceres, requerimentos, etc.), contudo, aponta para a constância do abandono dos lotes e para linhas inteiras levadas à venda em hasta pública, quase sempre situadas em áreas montanhosas.
Neste contexto desordenado de ocupação, havia espaço para o reconhecimento das reivindicações dos posseiros, apesar da intrusão ser considerada crime. Isto pode ser constatado em alguns pareceres contrários às pretensões de empresários brusquenses que requerem terras nos distritos de Ribeirão do Ouro e Porto Franco, sob alegação de que os lotes pretendidos estavam “ocupados por intrusos que se estabeleceram com casa de moradia e benfeitorias” (Ofício n. 67, de 29/9/1910).
Mas se famílias de posseiros comprovadamente estabelecidas em lotes constantes das plantas cadastrais tinham oportunidades de legalizar sua situação, se houve tolerância com relação ao pagamento final das dívidas – inclusive por parte da justiça [13] – o mesmo não aconteceu com outros imigrantes e colonos pretendentes a lotes. Todas as petições feitas por colonos já estabelecidos em nome de filhos menores foram indeferidas, apesar da argumentação apontar para a impossibilidade do futuro estabelecimento destes filhos no mesmo lote dos pais. Adultos solteiros também tinham suas petições sistematicamente indeferidas, já que o modelo ideal privilegiava a família. Aos poucos camponeses nacionais que requereram lotes na área exigia-se, inclusive, certidão de casamento e comprovação de bons antecedentes [14] . Os colonos classificados como intrusos poucas vezes tinham suas pretensões reconhecidas. Do parecer do agente dependia o prosseguimento da tramitação burocrática de legalização dos títulos. Os pareceres revelam o grau de arbítrio deste funcionário, principalmente no que se refere à classificação dos intrusos – da qual dependia a aprovação ou não do pedido. Entre as razões alegadas para não atender estas petições estão: considerações sobre o caráter dos colonos, suspeitas de não haver interesse em plantar a terra mas tão somente explorar a madeira, o retorno do lote à condição de terra devoluta por abandono, ou já constar do edital para venda em hasta pública, etc. “Intrusos” considerados “desordeiros”, “provocadores”, “maus trabalhadores”, tiveram seus requerimentos indeferidos quase sempre em razão de conflitos com a Comissão de Medição de Lotes, que encontrava dificuldades para realizar seu trabalho.
Deve ser observado, porém que os indeferimentos não são circunscritos aos “intrusos, atingindo também as pretensões de “pessoas gradas da localidade” (cf. Ofício n. 48, de 3/8/1907) que reivindicavam a compra de áreas bem maiores (quase sempre superiores a 40 lotes), que correspondiam a linhas inteiras.
IV
A expressão “pessoas gradas” é significativa e aponta para a existência de especulação com terras devolutas destinadas a projetos de colonização – uma das principais causas da mobilidade. Isto é, parte das terras disponíveis para assentamentos de colonos estavam sendo objeto de disputa por parte de comerciantes, industriais, proprietários de serrarias e políticos estabelecidos nas duas sedes municipais da região – as vilas de Brusque e Nova Trento; entre eles, dois ex-superintendentes municipais. Visavam a exploração da madeira e calcário e ambicionavam a construção de uma ferrovia que, uma vez concretizada, valorizaria as terras. O traçado, planejado no início deste século, ia do distrito de Ribeirão do Ouro até o Porto de Itajaí, mas a obra nunca se realizou. No entanto, a simples menção da sua possibilidade acelerou a especulação.
Nesta fase final dos assentamentos travou-se, assim, uma disputa desigual pela terra: de um lado, imigrantes recém-chegados e colonos em situação irregular, de outro, lideranças políticas e econômicas locais que, pela legislação vigente, não podiam ter acesso a lotes coloniais, condição específica das terras pleiteadas. As terras que continham as jazidas de calcário estavam circunscritas ao alto Vale do Itajaí-mirim, mas o interesse pela exploração da madeira existia em toda a área colonizada. As estratégias para a ocupação das terras por parte destas “pessoas gradas” foram basicamente duas: a grilagem, invadindo e explorando (sem qualquer amparo legal) tanto terras ainda devolutas como lotes ocupados por posseiros sem título provisório e até legalmente ocupados, forçando a saída destes colonos através da simples destruição das roças e benfeitorias; ou o requerimento dirigido ao governador do Estado, através da Agência de colonização. O segundo procedimento, apesar da aparência de legalidade, feria a sistemática corriqueira de concessão de lotes: as solicitações visaram áreas superiores a 1.000 hectares, quando o tamanho padrão era de 25 hectares. Para contornar, costumavam subdividir as petições, fazendo várias delas em nome de parentes próximos (facilmente identificáveis). O parecer formal do agente era decisivo para que posseiros e colonos em geral obtivessem seus lotes; mas este não era o caso destas petições envolvendo interesses maiores, pois mesmo os indeferidos eram encaminhados à autoridade mais alta, a quem cabia a palavra final. As autoridades do Estado acompanhavam o parecer do agente nas petições de colonos; nas outras prevaleciam os interesses econômicos e as pressões políticas dos coronéis locais [15] .
Dois casos, tomados como exemplos, mostram como esta especulação fundiária afetou os colonos. No primeiro deles, conforme relato no Ofício n. 52, de 13/8/1907), um colono com lote concedido pelo governo em 24/8/1904, através de título provisório e para ser pago em quatro prestações anuais, foi expulso porque sua terra estava incluída numa área de 1.000 hectares requerida por um coronel da guarda nacional e ex-superintendente municipal. A concessão ao coronel foi mantida, apesar da informação de que se tratava de colono em dia com os cofres públicos. O outro exemplo é dado pelo Ofício n. 73, de 24/9/1909, que faz referência à “ladroeira geral de madeiras” em toda a região: responsabiliza o filho de um dos grandes comerciantes de Brusque pela operação de uma serraria clandestina, com madeira roubada nas terras devolutas e em áreas já requeridas por colonos, que aguardavam deferimento de suas petições ao governador. O ofício registra, ainda, a existência de vários lotes abandonados e solicita um despacho urgente sobre as terras já ocupadas para evitar a especulação.
Situações como esta são relatadas com certa freqüência, existindo algumas evidências de retorno de colonos expulsos aos seus lotes, como neste parecer do Agente Interino datado de 1902:
Alegando ter-lhe sido distribuído em 1891 o lote n. 17 da Linha Braço, do distrito de Ribeirão do Lageado Grande, e tê-lo abandonado, propõe comprá-lo mediante o pagamento em prestações no prazo de 5 anos, sendo o primeiro à vista. Cumpre-me informar que o referido lote foi distribuído ao requerente, que o abandonou diante da perseguição e dificuldades e incômodos que o cidadão Simão Werner desenvolvia nesse tempo aos colonos dessa linha para mais a gosto apropriar-se e explorar as madeiras de lei existente nessa localidade... São esses os serviços prestados pelos exportadores de madeiras os quais além de furtarem nas matas do Estado dificultam o povoamento do solo.
A pretensão do requerente (um colono imigrante polonês) recebeu parecer favorável, desde que fosse assumida a dívida existente (a soma do preço da terra mais os juros, contados desde o abandono do lote), e realizada nova demarcação. O retorno ao lote, abandonado devido à pressão de um dono de serrarias operando clandestinamente, só foi possível quando terminou a extração da madeira de lei na linha mencionada.
Este fato remete às estratégias utilizadas pelos donos de serrarias: invadir uma área ocupada ou não por colonos, sem requerer a posse, e retirar a madeira,; requerer uma concessão como colono e fazer do lote uma base para explorar toda a área próxima; ou simplesmente requerer uma área devoluta maior, sempre com o pretexto de desenvolver atividades agrícolas. A documentação, porém, deixa em evidência que esta foi, sobretudo, uma atividade de rapinagem, que prejudicou bastante o assentamento de colonos em toda a região. O indeferimento de muitos requerimentos de indivíduos pertencentes à classe dominante local, sob o argumento da presença de “intrusos” e colonos legalmente estabelecidos, não impediu que tivessem acesso às terras pleiteadas.
A pressão política e o arremate de lotes em hasta pública (que, como mostramos, exigia pagamento em prazo máximo de dois meses) foram ações corriqueiras empreendidas pelos interessados na exploração de calcário e madeira. Apesar dos eventuais pareceres contrários a estas pretensões, emitidos pelos agentes locais, concessões superiores a 1.000 hectares foram obtidas, apesar das restrições impostas pela legislação e constantes nos títulos provisórios. A vantagem de uma concessão legal deste tipo: o preço da terra era relativamente baixo – uma vez que ela se destinava, supostamente, à exploração agrícola familiar – e a imediata expedição do título provisório permitia uma rápida exploração do recurso natural mais importante, as madeiras de lei. As terras com jazidas de calcário se tornaram objeto de especulação visando uma futura valorização, já que sua exploração econômica era inviável naquele momento, dada a precariedade das estradas. Existem, ainda, evidências de que parte daqueles que exploraram serrarias requeriam a terra, retiravam a madeira e depois abandonavam a concessão sem pagar aos cofres públicos. Parte destes indivíduos eram imigrantes italianos e alemães que se estabeleceram como colonos de fachada, e cujas famílias residiam na vila; alguns deles enriqueceram nesta atividade, explorando ilegalmente terras devolutas e lotes de seus compatriotas.
O constante movimento de colonos e donos de serrarias, os cadastramentos e medições malfeitas das linhas e lotes, e a própria dificuldade de controle dos assentamentos por parte do órgão encarregado, contribuíram para facilitar as invasões. A documentação é clara em relação a esta situação e mostra a constância da mobilidade espacial.
Resta fazer referência às estratégias de ocupação de lotes usadas pelos colonos (fossem ou não imigrantes recém-chegados). O procedimento mais comum, sobre o qual existem documentos significativos, era a ocupação individual de um lote. Ocupações coletivas como aquelas analisadas por Hobsbawm (1974), ou promovidas pelos atuais movimentos dos Sem-Terra no sul do Brasil (cf. Lima Júnior, 1988; Lisboa, 1988), não ocorreram no caso aqui analisado. Há registro de linhas inteiras ocupadas por “intrusos” e as listas nominais sugerem que se trata de imigrantes de uma mesma procedência nacional. Houve, portanto, invasões em grupos de famílias, possivelmente procedentes de uma mesma região (especialmente no caso de colonos italianos), mas a documentação não permite a reconstituição dos procedimentos e a organização da ocupação.
A formação mais comum, que também constitui um registro exemplar da mobilidade dos colonos, foi a ocupação individual de lotes que haviam sido abandonados pelos primeiros concessionários – quase sempre precedida de uma formalidade com aparência de legalidade, num acordo entre o que vai abandonar e o invasor, à revelia das autoridades responsáveis pelo assentamento. Assim, existem alguns títulos provisórios preservados na documentação, que contém declarações de transferência de benfeitorias, como as que se seguem:
Declaro eu - ... – que nesta data vendo ou cedo as benfeitorias existentes no lote n. 13 do Distrito de Porto Franco, margem direita do Ribeirão do Porto Franco, ao Sr. ... ficando o mesmo senhor obrigado a requerer ao Exmo. Sr. Dr. Presidente a aprovação deste mesmo ato. E para clareza, mandei passar a presente declaração.
Ou como neste modelo mais simples:
Fica pertencente ao Sr. ... todo o direito e posse que tenho no lote constante deste título ficando o mesmo sujeito ao ônus nele pendido.
Tais declarações obviamente foram orientadas por indivíduos que conheciam, no mínimo, um jargão jurídico, não sendo, portanto, produzidas pelos colonos (alguns deles analfabetos). Vendiam-se as “benfeitorias” para alguém que irá ocupar o lote como “intruso”, para então requerê-lo à autoridade, assumindo a dívida do primeiro ocupante. O que à primeira vista pode parecer ingenuidade, na verdade constitui uma estratégia de ocupação que, em muitos casos, foi bem-sucedida. De fato, era mais difícil expulsar os posseiros quando o lote já continha uma casa e plantações, sinais reconhecidos de uma ocupação efetiva, exigida a todos os que pretendiam a propriedade da terra. Conforme registra a documentação, o posseiro garantia a terra desde que pudesse assumir legalmente a dívida colonial. Isto podia ocorrer automaticamente, através de parecer do agente em requerimento ao governador, com cumprimento das cláusulas contratuais, legalizando-se a ocupação; ou através da compra em hasta pública, com pagamento imediato, quando o lote já estava listado em Aviso de Leilão. A forma mais comum de legalização da posse ocorreu através de requerimento; mas isto não garantia o parcelamento da dívida, recalculada pelo agente, que arbitrava novo prazo – quase sempre inferior a um ano, dependendo do tempo decorrido desde a primeira concessão.
A dívida, de qualquer modo, aparece como problema maior porque a dificuldade de pagá-la retardava o acesso à propriedade da terra e a inadimplência prolongada podia resultar em perda do lote. O preço da terra não era muito alto, mas o acréscimo dos juros por vários anos tinha efeito multiplicador que os colonos não conseguiam acompanhar.
Na verdade, a colonização realizou-se numa região onde a maior parte das terras era inadequada para a agricultura. Além dos problemas com a pratica agrícola e com a distância do mercado consumidor, os colonos tiveram de enfrentar a rapina dos donos de serrarias e comerciantes de madeira. Com isto, perderam o bem de maior valor, cuja comercialização seria suficiente para saldar a dívida. Aliás, as áreas despojadas das madeiras de lei e abandonadas tinham preço menor por metro quadrado nas reavaliações constantes de requerimentos dos “intrusos”. Os livros que registram as dívidas e seu abatimento em parcelas também revelam que parte daqueles que conseguiram pagá-la o fizeram prestando serviços na construção de estradas “ao tempo da Colônia”. Como a Colônia oficialmente se extinguiu em 1881, verifica-se que os valores não pagos por serviços prestados antes deste ano vão ser usados para abatimento de parcelas das dívidas décadas depois (cf. livros para Conta-corrente de Arrecadação da Dívida Colonial, anos de 1900 e 1907).
A situação fundiária, passado meio século desde a fundação da Colônia, estava longe de refletir o modelo idealizado de colonização. A “confusão legal” (conforme expressão usada em alguns documentos) não estava relacionada ao fluxo imigratório (que diminuiu bastante na segunda fase da ocupação) – isto é, não houve excesso de imigrantes como ocorreu entre 1860 e 1881. A demanda maior por terras vinha da 2a e 3a gerações de colonos, que também usaram o recurso da invasão para chegar à prioridade. A concessão de lotes era vedada a filhos menores ou a solteiros, mas não a famílias; a prioridade dos assentamentos, contudo, era para os imigrantes recém-chegados.
Finalmente, o abandono de lotes, com ou sem “venda” das benfeitorias, remete aos deslocamentos de imigrantes e colonos para outras regiões de colonização. Muitos se dirigiram para as “colônias novas” no oeste do Paraná, atraídos pela propaganda que falava de terrenos mais férteis e lotes maiores – num sistema dominado por companhias particulares de colonização. Afinal, o abandono sem pagamento da dívida era impedimento para obter outra concessão na mesma área. Outros procuraram o mercado de trabalho urbano, principalmente nas indústrias têxteis, que aumentaram a oferta de emprego a partir de 1914.
V
A relação causal entre dívida colonial e mobilidade tem a ver com a própria natureza dos projetos de colonização implementados pelo Estado: visavam o povoamento de terras devolutas, numa ocupação progressiva em regiões nem sempre apropriadas ao desenvolvimento da atividade agrícola. No caso analisado, as terras mais férteis, próximas ao Rio Itajaí-mirim no seu curso médio, foram ocupadas antes de 1880. No segundo momento da ocupação, os imigrantes receberam lotes em região montanhosa, enfrentando a concorrência das famílias de filhos e netos dos colonos “pioneiros”. Até mesmo o tamanho dos lotes diminuiu à medida que se intensificou a ocupação. A baixa fertilidade dos terrenos e o uso do sistema legal de concessões por especuladores que se apropriaram de parte da área demarcada para colonização, foram as principais causas da dificuldade de saldar a dívida com o Estado e, por extensão, da mobilidade. A idéia de mobilidade empregada neste caso diz respeito ao constante deslocamento de imigrantes e colonos dentro da região demarcada para a antiga Colônia Itajaí, num primeiro momento, e para outras regiões de colonização, especialmente o oeste do Paraná, mais tarde; sempre com o propósito de chegar à propriedade da terra e salvaguardar a condição camponesa.
A invasão foi uma forma de acesso à terra bastante comum na área, motivada tanto pela insatisfação com o lote concedido pelo Estado, como pela dificuldade de saldar a dívida ou, para imigrantes recém-chegados, pela demora da concessão relacionada ao problema crônico da falta de verbas para demarcação. Por outro lado, muitos colonos, que ainda não haviam terminado de pagar a dívida, já precisavam de terras para os filhos – e os requerimentos indeferidos possivelmente levaram à ocupação ilegal. O argumento usado nestes requerimentos remete, sem dúvida, à questão da reprodução social e econômica deste campesinato: a terra solicitada como meio básico de subsistência, sob o argumento de que um lote só permitia a sobrevivência de uma família.
Os funcionários do Estado encarregados de administrar a expansão da fronteira agrícola no Vale do Itajaí não usaram o termo invasão. Mas as categorias empregadas para fazer referência aos colonos em situação irregular são significativas: “intruso” e “posseiro criminoso” são termos que remetem à invasão de lotes e linhas coloniais por indivíduos pertencentes a determinado segmento da população local – os colonos (identidade oficial dos pequenos produtores camponeses assentados em projetos de colonização). Apesar da impossibilidade de apresentar estatísticas precisas, as evidências disponíveis na documentação mostram que as invasões não podem ser consideradas como numericamente inexpressivas e nem como casos isolados num oásis de tranqüilidade. A inexistência de estatísticas, em parte, decorre da própria ignorância dos agentes acerca do número total de colonos em situação irregular de “intruso”. A invasão foi considerada uma forma legítima de ocupação de terras e a idéia de legitimidade está presente nas declarações contidas em títulos provisórios que transferem a posse de benfeitorias – o que sugere, por outro lado, a existência de uma organização externa, pelo menos em alguns casos de invasões individuais. O formato destas declarações indica a intermediação de terceiros, estranhos ao meio camponês, mas não foi possível identificá-los, nem constatar quaisquer referências na documentação a uma provável “indústria” de invasões. A listas de intrusos disponíveis, algumas com mais de uma centena de nomes, permitem observar que, pelo menos no período histórico considerado e numa região de colonização oficial, a ocupação ilegal de lotes não foi exceção. Por outro lado, é significativo que, apesar da legislação ser bem específica quanto à sistemática de concessão, os membros da classe dominante local identificados com a especulação fundiária, em nenhum momento são chamados de “intrusos” ou posseiros, apesar dos pareceres negativos a algumas de suas pretensões expedidos pela Agência local. Os exploradores de madeira podiam até ser acusados de roubo, mas são chamados de cidadãos.
Os dados apresentados mostram que a invasão, como estratégia de ocupação de lotes e linhas coloniais, existiu em algumas áreas de colonização mais antigas, apesar das diferenças em relação às invasões que hoje mobilizam colonos sem terra (grande parte dos quais descendentes de imigrantes europeus) em todo o sul do Brasil. Entre as diferenças, certamente a mais expressiva está no fato das invasões na antiga Colônia Itajaí terem ocorrido em terras públicas destinadas à colonização, numa situação em que colonos e empresários urbanos disputavam lotes vendidos pelo Estado.
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Notas
[1] O objetivo inicial da implantação da Colônia Itajaí era o povoamento da margem esquerda do Rio Itajaí-mirim com colonos de origem alemã. A Colônia Príncipe D. Pedro, estabelecida na margem direita, pretendia, inicialmente, assentar imigrantes irlandeses vindos dos Estados Unidos – um empreendimento que fracassou, fato determinante da sua anexação à Colônia Itajaí em 1869. Assim, a partir desse ano, a área mencionada constituía um único projeto oficial de colonização, em contraponto com a Colônia particular do Dr. Blumenau, no Itajaí-açu.
[2] A legislação referente à concessão de terras em áreas coloniais mudou bastante desde os primeiros assentamentos em São Leopoldo em 1824, quando a dimensão dos lotes chegou a 75 hectares. A partir da segunda metade do século XIX os lotes raramente tinham mais do que 30 hectares, dificultando o estabelecimento da segunda geração na mesma área.
[3] A ignorância da legislação por parte dos colonos – principalmente daquela que rege a transmissão da propriedade – é ressaltada também por outros autores, como Wagemann (1944) e foi transportada para a ficção literária no livro Canãa, de Graça Aranha.
[4] Na maior parte dos casos, os colonos não tinham possibilidade de escolher seus lotes, sobretudo quando o assentamento era administrado pelo Estado. Um dos objetivos mais freqüentes por traz das trocas de concessões era ficar próximo à parentela (Cf. Flores, 1983) ou de conhecidos/amigos/vizinhos de uma mesma localidade de origem na Europa, ou, ainda, para agrupar numa mesma linha famílias que viajaram juntas para o Brasil.
[5] Deve ser ressaltado que, apesar da homogeneidade sugerida pelas denominações étnicas, as colônias receberam imigrantes de diferentes nacionalidades européias e alguns brasileiros. As denominações “italiana” e “alemã” denotam, sobretudo, a etnia predominante, especialmente no período pioneiro dos assentamentos. O Vale do Itajaí, por exemplo, embora conhecido como região de colonização alemã, recebeu grande número de italianos e também poloneses.
[6] A maioria dos colonos, até 1874, procedia de estados alemães, irlandeses e norte-americanos que chegaram entre 1865 e 1869 não permaneceram na área; após 1874, além dos alemães, entraram também italianos, poloneses e franceses; uma parte dos poloneses e a maioria dos franceses também deixaram a área (cf. Seyferth, 1988). De acordo com as autoridades, muitos alemães e italianos que abandonaram seus lotes (sempre em grupos) se dirigiram para a Argentina ou para outras regiões coloniais do sul.
[7] São fontes escritas oficiais, cujos originais se encontram nos arquivos do Museu Histórico do Vale do Itajaí-mirim. Os registros cobrem todo o período histórico acima referido, mas não completos (parte dos livros se perderam), o que inviabiliza qualquer estudo de natureza puramente estatística.
[8] São raros os registros que indicam pagamento dos lotes à vista. A maioria dos colonos assumiu a dívida com o prazo máximo, e um grande número ultrapassou este prazo sem quitar as prestações. Os subsídios foram mais freqüentes antes de 1881, quando o período de espera pela concessão podia durar até um ano. No período mais recente ficaram mais raros. Sua finalidade, nos termos da política de colonização: permitir a subsistência até a primeira colheita, expectativa sistematicamente frustrada pela demora na demarcação dos lotes.
[9] Nessa concepção foram ignorados tanto os indígenas como os posseiros caboclos – populações que ficaram à margem da colonização. Na região de Venâncio Aires (RS), ao final do Império, houve o assentamento de colonos numa grande propriedade loteada por seu proprietário. Mas esta não foi a norma, antes uma exceção. Cf. Flores, 1983. As companhias particulares que colonizaram o oeste de Santa Catarina, por exemplo, a partir dos anos 20, obtiveram vastas concessões do Estado, que estavam em parte ocupadas por posseiros caboclos, sistematicamente expulsos à medida que os lotes iam sendo vendidos para colonos de origem européia (cf. Renk, 1990). Na área enfocada por este trabalho não existem registros acerca da presença de caboclos em terras demarcadas para colonização; mas são mencionados alguns confrontos com pequenos grupos de índios nas duas primeiras décadas da ocupação do território.
[10] Esta categoria está sendo usada para designar o colono que ocupa um lote à revelia do poder público, representado no local pelo agente do órgão encarregado dos assentamentos. Ela raramente aparece na documentação, pois tal tipo de ocupação não é reconhecida e os termos legais empregados são “intruso” e “ocupante ilegal”.
[11] Existem indícios na documentação referente ao Vale do Itajaí que apontam para a ocorrência de casos de invasão e presença de colonos em situação irregular nas linhas coloniais de outras regiões de colonização do Estado.
[12] A população regional luso-brasileira foi excluída (a não ser como exceção) dos projetos de colonização. No passado, como hoje, tem sido chamada pelos colonos de “cabocla”, e “luso-brasileiro” tornou-se uma categoria de identificação estigmatizante. Os termos “luso” e “luso-brasileiro” servem para identificar os brasileiros em geral de ascendência lusa ou açoriana. Já o termo “pioneiro” só se aplica aos imigrantes da primeira fase de ocupação. Ver Seyferth (1992).
[13] Ao que tudo indica, a justiça não foi eficaz na execução das dívidas e cancelamentos das concessões, sistematicamente solicitadas pela Agência. Há diversos documentos reclamando a falta de providências da Promotoria Pública para coibir invasões e solucionar a questão das dívidas.
[14] O preconceito das autoridades em relação aos brasileiros que requeriam lotes coloniais pode ser observado em alguns documentos, como no Ofício n. 220, de 27/4/1888, do Inspetor Oficial da Inspetoria de Terras e Colonização, que recomenda prudência ao Chefe da Comissão de Medições quando da concessão de terras a “nacionais”, aos quais devem ser exigidos “atestado de casamento, bom comportamento e que podem aproveitar as terras que desejam, devendo também provar não terem tido terras para trabalho”. E continua: “recomendo-lhe muito escrúpulo nessas concessões e que sejam feitas de acordo com o Aviso de 7/6/1988, isto é, os lotes concedidos sejam intercalados.
[15] Alguns comerciantes e industriais do município de Brusque (de 1a e 2a geração de imigrantes alemães), ao ingressarem na atividade política, obtiveram o título de Coronel da Guarda Nacional.