Estudos Sociedade e Agricultura

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John Wilkinson

Mercosul e globalização: novos padrões de concorrência agroalimentar


Estudos Sociedade e Agricultura, 7, dezembro 1996: 90-112.

Resumo: (Mercosul e globalização: novos padrões de concorrência agroalimentar). Este artigo examina o impacto da abertura comercial e da integração regional na organização das distintas cadeias agroindustriais no contexto do Mercosul. A discussão se inicia com uma breve consideração sobre investimentos diretos e comércio, e segue mediante uma análise de tendências recentes na comunidade européia. Na segunda metade do artigo estes argumentos são avaliados a partir de um estudo de caso da avicultura nos países do Mercosul.

Palavras-chave: Agroindústria; Mercosul; competitividade.

Abstract: (Mercosul and Globalisation: the new Institutional context of Agrofood Competition). This article examines the impact of trade liberalisation and regionalization on the organization of different agrofood chains within the context of the Mercosul. The argument begins with a brief presentation of the literature on trade versus direct investment, followed by a discussion of recent tendencies in the European community. In the second half of the article these considerations are explored through a case study of the reorganization of the poultry complex in the Mercosul.

Key words: Agroindustry; Mercosul; competitiveness.

John Wilkinson é professor da UFRRJ/CPDA.

Estudos Sociedade e Agricultura, 7, dezembro 1996: 90-112.


Introdução

Nas análise de competitividade e comércio, a noção de intercâmbio a partir de vantagens comparativas baseadas em dotações privilegiadas de fatores e em um padrão de especialização e complementaridade, está cedendo lugar ao conceito de vantagens competitivas e de um comércio no qual predomina a concorrência intra-setorial. A literatura que se ocupa das vantagens competitivas enfoca crescentemente a concorrência com base em inovação, cuja origem seria uma capacitação tecnológica diferenciada (Dosi e Soete, 1988, Krugman, 1980, passim).

Uma primeira questão seria portanto a de examinar em que medida esse conceito de competitividade pode ser aplicado ao sistema agroindustrial. Por um lado, pode-se pensar que nesse setor ainda predomina a competitividade com base em vantagens comparativas tradicionais. Nessa ótica, a tecnologia seria fundamentalmente madura e/ou de fácil acesso na forma de bens de capital e equipamento no mercado mundial e/ou do setor público, e as vantagens seriam uma combinação de mão-de-obra barata e recursos naturais privilegiados.

Outras análises, a partir da visão da economia industrial, também, dariam menos importância à questão tecnológica que ficaria subordinada à capacidade de lidar com as peculiaridades da demanda alimentar. Nesta visão, a inovação tecnológica cede lugar à inovação organizacional na negociação da demanda como eixo principal da competitividade. Capacitação logística e mercadológica seriam os elementos de competitividade a nível da firma, enquanto a tecnologia estaria, regra geral, disponível ao conjunto dos atores dos setores (Green, 1991).

De pontos de vista opostos – o peso da agricultura como insumo, por um lado, e a dinâmica da demanda, por outro – estas análises colocam em questão a centralidade da competitividade tecnológica nas suas abordagens do sistema agroalimentar.

Um segundo elemento que caracteriza as vantagens competitivas na literatura de inovação tecnológica seria a forma de articulação dos atores – entre fornecedor e cliente e entre o produtor e o consumidor final. De acordo com esta visão, um ambiente que combina ao mesmo tempo exigência em relação ao produto e cooperação entre os atores estimula a inovação e a busca de qualidade que são transformadas em vantagens competitivas. Neste cenário, a dinâmica da oferta e demanda domésticas seria também a base de competitividade internacional (Lundvall, 1988). No caso da agricultura, a rigidez na oferta da matéria-prima (mais acentuada em alguns produtos do que outros) coloca dificuldades para a consolidação deste estilo de inter-relação entre os atores, bem como a pouca exigência da demanda final no mercado doméstico.

Mais importante nesse sentido talvez sejam as formas de regulação que predominaram em algumas cadeias agroindustriais, onde uma combinação de intervenção interna e protecionismo contra a concorrência externa estabeleceu relações de interdependências na base da imposição. Assim, nenhum ator na cadeia precisava levar em conta os interesses do outro, dificultando a transformação subseqüente destas cadeias tecno-econômicas em redes de cooperação produtiva (Perez, 1991).

Uma terceira questão colocada nessa literatura seria a importância de uma visão sistêmica e sobretudo a importância do “sistema nacional de inovação” para a competitividade setorial e empresarial. Esta noção de sistema nacional não se reduz às instituições de P&D, mas remete também ao entorno econômico-sócio-cultural consolidado historicamente no âmbito do Estado-nação (Pavitt, 1984; Freeman, 1988). No caso de nosso estudo, a noção sistêmica de competitividade teria que levar em conta não apenas a “sensibilidade” de certas cadeias do ponto de vista nacional, mas o potencial de elaborar estratégias de competitividade visando uma restruturação regional de tais cadeias.

Antes de descer ao nível de um estudo de caso, exploraremos esses três aspectos de competitividade em relação à dinâmica geral da agroindústria da região.

 

A natureza de competitividade na agroindústria e no sistema agroalimentar

Qual é a importância de capacitação tecnológica para a competitividade no setor agroalimentar? Esta questão precisa ser considerada tanto a nível da empresa, quanto da cadeia e no ambiente do sistema nacional de inovação. Na literatura, uma tipologia industrial baseada na dinâmica tecnológica tem sido utilizada para traçar o processo de evolução industrial e também para distinguir trajetórias diferenciadas entre setores industriais. Neste sentido Pavitt (1984) elaborou quatro tipos de indústria segundo a sua dinâmica tecnológica – a indústria dominada por fornecedores de tecnologia; as indústrias que se caracterizam por economias de escala decorrentes de aprendizagem tecnológica “tácita” e inovação incremental; as indústrias intensivas em ciência; e os fornecedores especializados de tecnologia.

Se consideramos isoladamente a agricultura, trata-se claramente de um setor dominado pelos fornecedores, com algumas especificidades. Em primeiro lugar, as dotações naturais representam uma alternativa competitiva (em graus diferenciados) à tecnologia do fornecedor tanto em termos de qualidade como de preço. Assim, um uso menor da oferta tecnológica pode não representar a “resistência” ou “atraso”, mas uma vantagem competitiva, a pampa úmida sendo um caso exemplar.

Em segundo lugar, o acesso à tecnologia, por imperfeições informacionais e/ou por peculiaridades do ciclo produtivo e do seu impacto sobre a liquidez do setor, tem exigido a intermediação do poder público (crédito, comercialização, assistência técnica, pesquisa). A dinâmica de adoção, por sua vez, impõe economias de escala que não exigem o desenvolvimento de importantes níveis de conhecimento tácito em torno da adaptação desta tecnologia dada a rigidez e a indivisibilidade dos equipamentos (tratores, colhedeiras, etc.). As barreiras neste caso são dadas pela estrutura fundiária e pelo sistema de crédito. O conhecimento tácito torna-se um fator importante, porém no domínio do uso de insumos biológicos e químicos, envolvendo uma combinação de conhecimentos tradicionais e do “pacote tecnológico”. Enquanto a estrutura produtiva é dominada pela oferta (típica do pós-guerra até os anos 70), a competitividade na agricultura se define em torno da adoção deste pacote tecnológico, em combinações variadas com a “tecnologia tradicional”, em função de trade-offs entre custos e produtividade.

O quadro vai se complexificando quando inserimos a agricultura como um elo num encadeamento agroindustrial. Neste cenário, a agricultura se encaixa a jusante de uma indústria de insumos e maquinaria e a montante de uma indústria de primeiro processamento, uma indústria de alimentos finais e uma estrutura de grande distribuição e “serviços-alimentos”. Cada um dos elos da cadeia situa-se numa forma diferente na tipologia proposta por Pavitt (1984). A indústria de insumos é nitidamente science-based, enquanto a de máquinas combina a lógica de economias de escala com níveis diferenciados de intensidade em P&D.

A indústria de primeiro processamento caracteriza-se também por economias de escala, mas a importância de aprendizagem tácita e inovação tecnológica incremental como base de competitividade (acelerando o learning curve) não parece ser tão importante. A indústria alimentar, por outro lado, enquadra-se mais na tipologia agrícola de dominação por fornecedores. A estrutura é tipicamente multiplanta, determinada mais por proximidade com a matéria-prima e/ou mercados que por economias de escala. Por outro lado, a base tecnológica advém de empresas especializadas, cuja estratégia visa vendas na forma de embodied capital (maquinaria, equipamentos, turnkey instalações). Embora haja mais espaço para aprendizagem tácita como arma competitiva, isto parece estar subordinado a estratégias de marketing e controle de canais de distribuição para produtos basicamente similares entre as empresas concorrentes (gastos em marketing gira em torno de 10% do faturamento enquanto P&D gira em torno de 1-3% nas empresas-líderes).

Quando chegamos à grande distribuição, trata-se de novo de um setor cuja base tecnológica é dominada por fornecedores. Aqui a informatização impõe-se como condicionante de competitividade, mas, da mesma forma de outros setores, o hardware é disponível através de um setor especializado de fornecedores. A competitividade passa pela logística (física e financeira) e pela negociação da demanda.

A noção de cadeia, portanto, permite captar a heterogeneidade do setor, definindo distintos padrões de competitividade e como conseqüência distintas necessidades de política, com cada elo sendo o objeto de um tratamento diferenciado. Esta visão da cadeia como composta apenas de distintas etapas num processo de desdobramentos técnico-econômicos de produtos específicos é típico de uma estrutura produtiva dominada pela oferta. Agora esta lógica cede lugar a um sistema agroalimentar organizado pela demanda, o que leva a uma dinâmica tecnológica vertical, retroativa do setor de distribuição e/ou “serviços-alimentos” ao longo da cadeia, e não apenas relações horizontais a nível de cada etapa. À medida que esta tendência é apenas parcial no contexto do Mercosul, enfrentamos uma mistura entre as duas tendências que varia de cadeia para cadeia e da etapa em cada cadeia.

Na literatura, esta mudança é analisada em termos de uma transição de produtos homogêneos dominados pela concorrência de preço para a diferenciação em que noções de qualidade ou da especificação do produto combinam com ou até substituem, o critério de preço. Com a ênfase em qualidade, as relações entre os atores econômicos deslocam-se de produtos para o conjunto das atividades que envolve a transação, um elemento que será analisado abaixo. A competitividade tecnológica deixa de ser limitada à concorrência em cada mercado específico, sendo crescentemente induzida pela demanda diferenciada dos setores a jusante até chegar no usuário final. Os padrões de concorrência em cada etapa, portanto, são determinados simultaneamente pelo best practice do setor em termos de eficiência e pela capacidade de resposta aos clientes a jusante na cadeia.

A noção da natureza do user-producer relation como fator decisivo na competitividade oferece uma perspectiva importante para analisar tanto a especificidade do setor agroalimentar quanto a dinâmica concreta da agroindústria no Mercosul. Dois elementos desta visão são fundamentais aqui: i) a idéia de que a competitividade consolida-se fundamentalmente na dinâmica do mercado doméstico (as relações fornecedor-produtor-cliente); e ii) a idéia não menos importante de que a competitividade internacional seria uma extrapolação desta dinâmica doméstica. Neste sentido, as trocas internacionais tornam-se crescentemente intra-setoriais e concentradas entre os países com padrões produtivos similares.

No sistema agroalimentar este processo é reproduzido à medida que o comércio desloca-se de insumos agrícolas para produtos agroindustriais cada vez mais elaborados. Um processo deste tipo encontra-se em fase avançada no Mercado Comum Europeu. Entre os países do Norte e os países do Sul da Europa predomina um comércio tradicional  de produtos agrícolas, refletindo vantagens absolutas de tipo edafoclimático.  Estas  trocas são pouco dinâmicas e situam-se nas noções tradicionais de especialização e complementaridade do comércio. Por outro lado, o comércio entre os países do Norte da Europa é composto de produtos agroindustriais cada vez mais elaborados das mesmas cadeias, um processo que se acelera com a unificação do mercado e a homogeneização das normas físicas, fiscais e sanitárias (Chevassus Lozza e Gallezot, 1994). Esta dinâmica pode ser descritas assim:

 

Padrões de comércio agroalimentar no Mercado Comum Europeu

Relações Norte-sul

Relações Norte-norte

complementaridade

especialização

produtos agrícolas

dinâmica da oferta

(recursos)

estagnação

concorrência

comércio intra-setorial

produtos da indústria alimentar

dinâmica de demanda

(mercado)

em crescimento

 

Este processo reflete a evolução do comércio agroalimentar sob o impacto da unificação do espaço econômico entre blocos de países com distintos níveis de homogeneidade e como tal é rico em lições para as tendências de restruturação do Mercosul. No entanto, o comércio agrícola e agroindustrial tem se destacado historicamente por uma crescente bifurcação entre o comércio internacional e a dinâmica dos mercados domésticos. Por um lado, permanece um forte componente de especialização dada a dotação desigual de recursos naturais não eliminada pelo progresso técnico. Por outro, o comércio internacional tem sido dominado crescentemente pela concorrência entre produtos agrícolas excedentários nos mercados domésticos dos países industrializados decorrente da evolução do consumo em direção aos produtos mais elaborados da agroindústria. A internacionalização deste último segmento passa não tanto pelo comércio mas por estratégias de investimento direto, consolidando a liderança das empresas multidomésticas. Estratégias protecionistas evidentemente acentuaram esta tendência, mas a proximidade ao mercado parece ser um fator mais importante no caso de produtos alimentares elaborados (perecibilidade, predominância de produtos frescos e ultrafrescos, a consolidação e a manutenção de marcas).

Na década de 80 os investimentos diretos no estrangeiro por parte do setor agroalimentar mundial cresceram de um índice de 100 para 380, enquanto o crescimento do comércio internacional não passou de 100 para 150. Nesta década houve um forte processo de restruturação com as 100 maiores empresas mundiais envolvidas em pelo menos cinco aquisições por ano. Houve um enfraquecimento da posição das empresas norte-americanas (de 50 para 29 das 100 maiores mundiais) favorecendo a Europa. Na França, uma média de três a cinco empresas dominam 80% de cada mercado, deixando 20% para as PME. A nível global porém as primeiras 10 empresas são responsáveis por apenas 32% da produção da indústria alimentar, abaixo da média de outros setores industriais. Projetando os ritmos atuais de crescimento das empresas-líderes pode-se prever que esta cifra subirá para 50% até o ano 2000. Os investimentos das empresas-líderes concentram-se cada vez mais a jusante nos segmentos industriais mais sofisticados e nos “serviços-alimentos” (Rastoin, 1992).

À luz destas considerações sobre o comércio internacional versus investimentos diretos no estrangeiro cabe indagar sobre a relação entre competitividade e a ação das transnacionais. Medidos em termos da sua participação no comércio internacional global, os EUA perdem competitividade no transcorrer dos anos 80, mas as empresas transnacionais americanas, incluindo as suas filiais, mantêm a sua posição estável (Chudnovsky, 1990). O conceito de competitividade abrange a capacidade não apenas de ocupar, manter e expandir parcelas do comércio internacional, mas também de defender o espaço do mercado doméstico. Neste sentido a presença de filiais das transnacionais é problemática para a noção de competitividade. Por um lado, a sua relação com a matriz afeta o sistema nacional de inovação na medida em que prejudique o desenvolvimento de P&D e dos recursos humanos a ela associados. Por outro, introduz uma forte heterogeneidade nas cadeias onde atua, o que, junto ao seu maior grau de auto-suficiência, pode inibir a organização do setor.

No contexto atual de liberalização, estratégias de global sourcing podem complicar ainda mais as noções tradicionais de competitividade como no exemplo da filial brasileira Bongrain, uma multinacional francesa que importa queijos da sua outra filial nos EUA para completar a sua produção “doméstica”. A Sadia, por sua vez, também começa complementar a sua produção doméstica com linhas complementares encomendadas na Europa (queijos para acompanhar a sua linha de presuntos). Assim, talvez, mais do que uma polarização entre capitais nacionais e transnacionais, é o próprio processo de globalização que redefine o conceito de competitividade.

O comércio agroalimentar internacional tem sido concentrado nos insumos da cadeia agroindustrial, com menor valor agregado e tendências pouco dinâmicas. À medida que o valor de cada cadeia aumente, o mercado torna-se cada vez mais doméstico. A liberalização modifica mas não muda fundamentalmente esta tendência. (O que talvez sejam novos é a combinação de liberalização e o papel dominante da grande distribuição que começa a adotar uma estratégia de “genéricos” baseada em importações). Um reflexo disto é a importância atual de novos investimentos estrangeiros no Mercosul e a retomada de estratégias de investimentos das filiais de grandes grupos localizados nesta região.

Esta realidade, porém, precisa ser avaliada contra a dinâmica do mercado doméstico que as empresas agroindustriais enfrentam no contexto do Mercosul. Nesta situação, a relação virtuosa entre “fornecedor-produtor-usuário”, identificada como a fonte principal de competitividade nos países industrializados é invertida. O mercado doméstico do Mercosul encontra-se fracionado entre um segmento reduzido de consumidores tipo “primeiro mundo”, um segmento de consumo moderno massificado e um segmento sem títulos de acesso que gira em torno de produtos básicos não-processados e o setor clandestino da agroindústria.

Pela falta de densidade dos mercados mais sofisticados, as empresas-líderes tendem a operar no conjunto destes mercados (reproduzindo setorialmente o fenômeno do conglomerado típico dos países em desenvolvimento) que as tornam vulneráveis em todos os segmentos em face de empresas mais especializadas ou de maior capacidade financeira.

Dada a falta de exigências de qualidade do mercado doméstico, a participação no comércio internacional, inclusive de produtos agrícolas básicos e/ou pouco processados, pode exigir maiores níveis de capacitação tecnológica. Isto seria especialmente o caso do setor de carne bovina no qual a participação no comércio internacional exigiu cuidados sanitários que estabeleceram uma ruptura tecnológica com o padrão “competitivo” do mercado doméstico, fazendo estas empresas vulneráveis no seu próprio mercado doméstico à concorrência de um setor menos tecnificado embora talvez mais competitivo no sentido de “adequação ao mercado”. Uma modernização a reboque das exigências do mercado internacional sem respaldo nas condições do mercado doméstico representa um dos perfis agroindustriais no Mercosul que trava a competitividade do setor.

Em outras cadeias, a falta de sinergias virtuosas entre “fornecedor-produtor-cliente” decorre de políticas protecionistas e de formas extremas de regulação (controle de preços, quotas, garantia de compra, etc.). No contexto de liberalização, esta falta de entrosamento e o conflito entre os atores favorece o predomínio de estratégias determinadas pela posição de cada um na cadeia. Assim, em setores como trigo, leite, algodão, estratégias de curto prazo de importação (seja de matéria-prima, produtos de primeiro processamento, ou do produto final, dependendo do ator) substituíram esforços de reconstrução da cadeia seguindo as exigências do mercado. Tais esforços, por exigirem atividades com fortes externalidades, tendem a ser caracterizados por uma falta do investimento necessário, sobretudo nas condições adversas que prevalecem hoje para a consolidação destas cadeias.

Estes fatores agem sobre a competitividade do conjunto da cadeia e representam o impacto combinado de liberalização e integração regional. Num primeiro momento, os efeitos têm sido nitidamente desagregadores, tanto como resultado de desequilíbrios macroeconômicos regionais (lácteos em 87/8, gado em 94/5) quanto de disparidades competitivas gritantes (trigo), ou de uma abertura sem critérios (algodão, arroz?, milho?).

Deve-se pensar em políticas de reorganização competitiva das cadeias a nível regional, substituindo a sua desarticulação em âmbito nacional? Ou trata-se mais, da elaboração de estratégias regionais a nível de firma, construindo redes de acordo com as opções específicas de inserção nos mercados? Em que medida a competitividade micro pode prescindir de uma competitividade estrutural a nível do conjunto da cadeia? Estas questões serão ilustradas a seguir a partir do exemplo de avicultura tomando como ponto de partida a ótica do parque avícola argentino.

 

O complexo avícola no contexto da integração regional

A Argentina, além da sua destacada vantagem natural na agricultura, exibe escalas competitivas nos principais setores agroindustriais (embora apresente desvantagens estruturais em relação a custos de mão-de-obra e energia). Como país médio, porém, ela sofre de falta de escala e eficiência nas “indústrias correlatas” (equipamento, embalagens) o que dificulta ajustes rápidos nestes setores. Por outro lado, um país pequeno pode resolver estas questões com mais agilidade e eficiência através de importações. Isto, contudo, depende dos termos dos acordos de integração para cada setor. Pode ser inclusive que a sensibilidade diga mais a respeito dos setores “correlatos” que as próprias cadeias.

À primeira vista, os problemas de competitividade do setor de aves na região de Entre Rios, onde concentra-se grande parte da produção avícola argentina, não são tão evidentes. A sua produção de aves aumentou de um índice de 114 (1986 = 100) em 1987 para 262 em 1994.

Neste processo fulminante de  expansão, a participação do parque avícola de Entre Rios na produção nacional aumentou 30% para 47%. Em termos absolutos a produção nacional aumentou de 403 mil toneladas para 623 mil toneladas no mesmo período e o consumo per capita de frango mais do que dobrou nos últimos quatro anos, subindo de 10 para 21,6 kg (Castillo e Omar, 1995).

O elemento de atrito neste processo e o foco do debate é o papel desempenhado pelas importações brasileiras. Fora de anos excepcionais (1980-81 e 1986-87), as importações de aves da Argentina eram insignificantes até 1992 quando pularam abruptamente para 42 mil toneladas, equivalentes a 7,4% do consumo ou 8% da produção nacional. Elas ficaram neste patamar (e em alguns meses representaram até 13,8% do consumo total) durante três anos até baixarem para uma taxa projetada 5,46% em 1995 (Proyecto Comisec, 1994).

Os preços do frango no varejo baixaram de US$3,31 o quilo no segundo semestre de 1991 para US$2,71 no mesmo período no ano seguinte, chegando a US$2,25 em 1993. Nesse mesmo período houve um forte aumento de consumo que subiu de 220.000 toneladas em 1991, para 317.800 no ano seguinte. Esta seqüência apontaria para a importância das importações em romper com o acoplamento do preço do frango ao preço da carne bovina. Historicamente o preço do frango acompanhava aumentos no preço do boi, permitindo, segundo alguns analistas, uma maior lucratividade para o setor de aves aos custos de uma expansão da produção com base em maiores níveis de eficiência e preços menores. Outros analistas argumentam ao contrário que o aumento de consumo e a melhoria na eficiência do setor antecedeu as importações que serviram para ameaçar os níveis de rentabilidade e, portanto, prejudicaram a sustentabilidade deste processo (Proyecto Comisec, 1994).

De qualquer forma, a evolução dos indicadores de eficiência aponta para uma impressionante transformação do desempenho do setor, (embora ainda atrás dos coeficientes brasileiros). Entre 1988 e 1993 a taxa de conversão baixou de 2,62 para 2,29, a idade de abate de 66 para 53,7 dias e o peso do frango vivo aumentou de 2,42 kg para 2,58. No lado negativo, a taxa de mortandade aumentou de 6,5 para 10% (Castillo e Omar, 1995).

Apesar das evidências de um reposicionamento competitivo do setor avícola argentino, a Câmara Entrerriana de Frigoríficos Avícolas enviou uma carta ao Presidente da Comissão Nacional do Comércio Exterior em julho de 1994, pedindo o fim imediato das importações brasileiras. Tanto o documento, quanto a demonstração de custos nos seus anexos demonstram a maior competitividade do frango brasileiro. Alguns dados são especialmente notáveis. A taxa de conversão utilizada é 2,4 kg, longe dos indicadores apresentados acima que apontaram para uma taxa de 2,2 kg. Ao mesmo tempo, o maior tamanho e, portanto, tempo de abate no caso argentino faz com que o número de lotes por ano oscile entre três e quatro, enquanto no Brasil a norma é cinco.

Deixando de lado os detalhes da polêmica queremos enfocar o cerne do argumento. Os produtores argentinos reconhecem a maior competitividade conjuntural da produção brasileira, mas argumentam que os problemas de reconversão são fundamentalmente tecnológicos. Assim sendo, um período curto de controle de importações (utilizando o mecanismo talvez de salvaguardas), combinado com uma política ativa de apoio a investimentos, restabeleceria a competitividade do parque avícola argentino.

Muitas vezes o enfoque tecnológico de competitividade, porém, perde de vista aspectos estruturais e sistêmicos que determinam a dinâmica do setor. Nas palavras do dirigente da Frangosul no Brasil, Hector José Muller: “Não temos concorrência nessa questão tecnológica, sanitária e de produção. Nossa concorrência começa da porta da fábrica para fora, quando começa a guerra mesmo...”. Por um lado, o acesso à tecnologia na conjuntura atual enfrenta o problema do custo de capital doméstico vis-à-vis a taxa de juros a nível internacional. Pode-se pensar aqui em linhas de crédito de fomento baseadas na captação de recursos externos e intermediadas por bancos de fomento (estilo BNDES no Brasil). De fato, essas fontes foram e continuam sendo decisivas na consolidação das cadeias de oleaginosos e carnes no Brasil. As empresas argentinas ficam mais vulneráveis ainda ao custo de dinheiro, à medida que esgotam a sua capacidade ociosa e precisam investir em novas unidades para acompanhar a demanda.

Mas, há um fator novo no caso brasileiro. A organização oligopólica do mercado de aves e oleaginosos durante os anos 80 produziu um conjunto de empresas-líderes, cujo faturamento gira em torno de US$2-3 bilhões. Essas empresas têm uma forte inserção internacional a nível comercial e começam a implantar filiais e desenvolver joint-ventures nos mercados industrializados. Como resultado, elas têm acesso próprio a fontes externas, tanto para as atividades de comércio quanto de investimento, e podem utilizar essas vantagens na abertura de novos mercados, seja para dominar canais de distribuição, seja para comprar unidades produtivas.

A Sadia e a Perdigão detêm em torno de 25% do mercado brasileiro (que é mais de cinco vezes o mercado argentino, chegando a 3,42 milhões de toneladas em 1994) e mais de 60% das exportações. Se acrescentamos a Ceval, que recentemente comprou as atividades avícolas de Agroeliane e as empresas Chapecó, Frangosul, Avipal, Minuano, Pena Branca e a Cooperativa Central de Chapecó, estamos falando em algo aproximado à metade do mercado doméstico e da tonalidade das exportações. Diferentemente da carne bovina, a cadeia avícola destaca-se nos Estados do Sul e as empresas regionais mais fortes localizam-se precisamente no Estado do Rio Grande do Sul (Wilkinson, 1994).

Portanto, a desproporção entre os complexos avícolas da Argentina e do Brasil não reside tanto numa comparação estática de coeficientes tecnológicos (nos quais as vantagens brasileiras são nítidas), mas no porte das suas empresas-líderes e na dinâmica do complexo como um todo, ponto que examinaremos em seguida.

As estratégias das empresas-líderes brasileiras têm sido determinadas pelo seguinte conjunto de fatores: i) as dificuldades nos mercados externos – exportações subsidiadas da União Européia (UE) e dos EUA, crescente auto-suficiência na região dinâmica do sudeste da Ásia (Tailândia e China para o mercado japonês); ii) as peculiaridades do mercado doméstico onde existe uma forte segmentação entre os mercados de baixa renda (dinâmicos mas de pouca sofisticação, baixo perfil de marca, maior concorrência e menor lucratividade) e os de mais alta renda (mesmo ainda exíguos e limitados pela persistência de formas tradicionais de cozinha doméstica); iii) longos períodos de estagnação no mercado doméstico que favoreceram estratégias de crescimento externo e oligopolização (estimuladas também pela política industrial de fomento – BNDES, Bancos Regionais, Fundos Constitucionais, Políticas Estaduais de deferimento de impostos).

Nesse contexto, ao invés de adotar uma estratégia de especialização, as empresas-líderes mantêm a sua presença no conjunto desses mercados, embora com uma tendência de aumentar a participação das exportações e da faixa de maior valor agregado do mercado doméstico. No caso da Sadia, a rubrica de industrializados, que não existia no início dos anos 80, agora conta por mais de 20% do seu faturamento, e as exportações também giram em torno de 25-30%. No entanto, no horário nobre de propaganda na televisão (abertura das notícias das oito da Globo) a Sadia tenta impor uma diferenciação de marca nos mercados básicos de frango inteiro e salsichas.

Tudo indica, porém, que aqueles produtos são mais sensíveis a preços, e que a “banalização” da base técnica da produção de frangos permite a competitividade de estruturas produtivas mais leves nesse segmento. No Rio de Janeiro uma empresa de porte médio (a Rica) com produção própria e sem integração abastece um terço do mercado carioca de frango. Em São Paulo, os chamados “oportunistas” (pequenas empresas de produção própria que surgem em conjunturas favoráveis) ocupam uma boa fatia do mercado paulista com frango resfriado.

Nesse quadro de consolidação da estrutura industrial do setor avícola no Brasil (que se caracteriza por grandes dificuldades no mercado externo e maior competitividade nos segmentos de commodities da cadeia), não é de surpreender que o mercado argentino vire um alvo privilegiado das estratégias de expansão das empresas-líderes brasileiras. Para essas empresas, o mercado argentino, a despeito das suas especificidades, é visto como uma extensão do mercado brasileiro. Nas suas declarações na imprensa e no seu comportamento, elas começam a agir no contexto de um espaço regional. Além de acordos comerciais, a Sadia já se associou à empresa Granja Três Arroyos (a quarta maior empresa da Argentina) e a Ceval recentemente comprou uma usina de processamento de soja. O que está em jogo, portanto, é a organização oligopólica do mercado avícola da região como um todo.

Nesse sentido, devemos esperar, na segunda metade desta década, um processo de compras e fusões visando sobretudo a Argentina, pelo tamanho do seu mercado e pela sua exclusão do mercado uruguaio, protegido por barreiras sanitárias devido à não-incidência da doença de Newcastle naquele país. Para as empresas brasileiras, mais importante do que as exportações são as 600 mil toneladas de frango produzidas pelo parque argentino, com um ritmo de crescimento de mais de 10% ao ano, num país onde o peso muito importante da classe média favorece a expansão do consumo de produtos de maior valor agregado. Não se trata, portanto, apenas de uma questão do parque avícola de Entre Rios, mas de tendências apontando para uma restruturação do conjunto do setor avícola argentino.

Assim, a questão de competitividade vai mais além de eficiência a nível de uma unidade produtiva. O setor avícola mundial caracteriza-se pela ampla disponibilidade do seu pacote técnico, evidenciada na rápida conquista de competitividade em custos de países como a China, a Tailândia e a Hungria. Decisivo, neste sentido, é a falta de controle da base genética por parte das grandes empresas produtoras – Cargill e Tyson nos EUA, Arrivé e Douce na França, Sadia e Perdigão no Brasil. O setor genético é altamente oligopolizado a nível mundial e o Brasil, por exemplo, agora o segundo maior produtor mundial de aves, importa a sua base genética, por não dispor de linhagens próprias. No entanto, esse setor é composto por empresas especializadas com as estratégias próprias de vendas, transferência de tecnologia e associações que têm garantido a ampla difusão de material genético competitivo. (A natureza dos acordos envolvendo transferência de tecnologia e a forma de controle das linhagens entre tais empresas, mereceriam porém um estudo próprio).

Os fatores cruciais de competitividade localizam-se em três elementos básicos: i) o perfil das empresas-líderes; ii) as formas de abastecimento de matéria-prima; e iii) a densidade e a dinâmica das relações intra-setoriais da cadeia como um todo.

i) Em relação ao primeiro aspecto, o tamanho das empresas-líderes brasileiras, o seu acesso privilegiado ao financiamento externo, a sua experiência nos mercados internacionais, a abrangência dos seus canais de distribuição, as suas associações tecnológicas e as suas sinergias, com a densa malha de atores da cadeia avícola brasileira, tudo isto implica que, em condições de abertura e integração regional, a consolidação dessas empresas brasileiras, em condições de liderança na avicultura argentina, torna-se uma questão apenas de decisão empresarial.

Uma alternativa possível a tal estratégia seria uma rápida internacionalização das empresas-líderes norte-americanas ou francesas e/ou a diversificação de outras transnacionais (a Bunge y Borne interessou-se pela compra da Perdigão) em direção ao Mercosul. De fato, durante os anos 80, a tendência foi ao contrário, com a saída de Cargill desta atividade tanto na Argentina, quanto no Brasil. Em geral os investimentos das transnacionais, neste período, têm se realizado preferencialmente nos produtos mais elaborados (biscoitos, massas, temperos), no setor de distribuição e sobretudo de fast-food. (Uma exceção seria o investimento de Parmalat em leite longa vida, um produto de fraca fidelidade de marca e que exige um envolvimento direto na concorrência da captação da matéria-prima).

Na introdução deste texto, discutimos a questão de competitividade sob a forma de investimentos diretos e não de comércio, e mostrarmos que o primeiro tem sido mais importante na reorganização dos mercados alimentares. A nível da política macroeconômica, a necessidade de investimentos estrangeiros é colocada em primeiro lugar, com a qualificação de que estes investimentos deveriam estar preferencialmente localizados na estrutura produtiva e não apenas operações de curto prazo nas bolsas. No Brasil, uma emenda à Constituição acaba de eliminar o conceito de empresa brasileira, colocando as transnacionais com filiais no país em pé de igualdade diante das fontes de financiamento e das políticas dirigidas ao setor. Tudo isto, num contexto de estabilidade macroeconômica, deve acelerar investimentos diretos no setor agroalimentar sobretudo se se leva em conta a estagnação nos países ocidentais industrializados. A Cargill acaba de anunciar investimentos no Brasil na ordem de US$ 300 bilhões nos próximos cinco anos e a Nestlé também está acelerando os seus investimentos.

Argumentamos na introdução deste trabalho que a transnacionalização, embora uma conseqüência desejada da política de abertura, pode trazer problemas que afetam a competitividade do conjunto do setor alvo. Isto, pela maior auto-suficiência – financeira, tecnológica, logística e gerencial – destas transnacionais, que pode agravar a heterogeneidade do setor e dificultar as formas de auto-organização que identificamos como cruciais para a competitividade estrutural à medida que o Governo se retire do seu papel de tutela.

Nesse cenário devemos pensar não apenas na entrada de empresas brasileiras, mas na possível presença de transnacionais também, e para estas últimas, as empresas argentinas poderiam se apresentar como alvos privilegiados para o seu ingresso no mercado regional. Por outro lado, a ação agressiva das empresas brasileiras pode bloquear uma estratégia deste tipo. O mercado brasileiro não está imune aos efeitos de abertura e, devido ao forte aumento de demanda da implementação do Plano Real, o Governo brasileiro acena com a possibilidade de importações, zerando as tarifas.

Além do seu tamanho e da sua atuação de longa data nos mercados internacionais, as empresas-líderes brasileiras dispõem de outras vantagens oriundas da sua diversificação horizontal para suínos (um componente crucial de competitividade nos mercados dos industrializados) e para o complexo de soja, que permite maior controle sobre as rações e ao mesmo tempo tem sido um caminho de acesso ao financiamento externo através dos contratos de adiantamento de crédito.

ii) As formas de abastecimento de matéria-prima têm sido um outro fator importante de competitividade na cadeia de aves. O modelo de integração com a produção familiar (que prevalece também nos Estados Unidos e na Europa) tem se mostrado muito eficaz em pelo menos nos seguintes aspectos: a) ela combina a capacidade de planejar a oferta de matéria-prima com a flexibilidade de resposta às oscilações na demanda; b) a forma de remuneração permite uma transferência permanente do dinamismo dos coeficientes técnicos; c) a integração permite que a empresa poupe investimento à medida que as instalações são por conta do integrado (os investimentos destes podem igualar os custos de uma unidade frigorífica); d) ela permite também que a empresa pressione sempre para baixo a remuneração da matéria-prima, dado que o integrado pode se apoiar na renda de outras culturas, ou, no limite, nas suas atividades de subsistência.

A avicultura de Entre Rios na Argentina baseia-se fortemente na relação de integração e talvez por isto a sua resposta ao aumento da demanda tenha sido tão notável. Dois fatores porém, são dignos de nota.

Em primeiro lugar, as áreas médias dos integrados são diminutas, em torno de cinco hectares (correspondendo mais aos produtores de fumo no caso brasileiro), o que dificulta a geração de renda de outras culturas ou atividades pecuárias. Pelo lado da empresa integradora isto dificulta uma flexibilidade em torno do preço e pode afetar o ritmo de progresso técnico. Pelo lado do integrado, fica difícil de entender como ele consegue amortizar os investimentos.

Em segundo lugar, os dados de desempenho (Castillo e Omar, 1995) mostram economias de escala quase unilineares à medida que o tamanho do módulo aumente – de 25 para 50 para 100 e para 150 metros. Isto não corresponde tão claramente à situação brasileira, na qual inexistem diferenças significativas nos índices técnicos de produção por tipo de módulo – com as vantagens de tamanho sendo localizados na esfera da logística. Neste sentido é interessante que tanto a Sadia como a Souza Cruz optam por módulos menores (25 ou 50 metros) nas suas propostas de um modelo de policultura familiar viável para o ano 2000. Assim, talvez o padrão de integração na avicultura de Entre Rios precise de um nível de readequação (Wilkinson, 1994).

iii) Em relação à densidade e a dinâmica das relações intra-setoriais da cadeia como fator decisivo para a competitividade, a Argentina teria muito a perder se adotasse uma perspectiva de defesa do espaço nacional. Embora a base tecnológica da avicultura esteja disponível como conseqüência da estrutura de fornecedores especializados, tanto para equipamento, quanto para a base genética, ela é altamente dinâmica e o progresso técnico incremental torna-se permanente e afeta igualmente todos os subsetores.

A cadeia avícola passa a ser cada vez mais complexa e interdependente, com avanços contínuos nas áreas de rações (sobretudo aditivos e vitamínicos), nos produtos veterinários, na base genética, em equipamentos e embalagens. Pelo tamanho do seu mercado, o Brasil está atraindo as empresas-líderes mundiais destes setores que adotam uma estratégia regional, se não continental, de sourcing a partir das suas filiais.

A competitividade exige que as empresas integradoras estejam em contato permanente com os fluxos de informação gerados nesta malha de relações intra-setoriais. Assim, a própria organização dos atores estratégicos a montante dessa cadeia, exige que as empresas integradoras da Argentina aprofundem a sua inserção na dinâmica regional do complexo. E que ouçam as palavras de Furlan, Presidente do Conselho de Administração da Sadia: “Nossos objetivos são de fazer no Mercosul o que fizemos no Brasil ao longo de 50 anos de existência”.

 

Conclusões

Ressaltamos agora alguns fatores comuns à nova conjuntura que determina a dinâmica do sistema agroalimentar, com a finalidade de orientar a definição de políticas no ambiente do Gatt e do Mercosul.

Em primeiro lugar, o comércio, no contexto da integração regional e abertura global em mercados cada vez mais segmentados, assume características crescentemente intra-setoriais. Isto enfraquece perspectivas de competitividade com base na busca de auto-suficiência. Mais importante ainda, tal tendência representa também o fim de uma visão nas estrutural do complexo em termos de um encadeamento linear por etapas. Cada etapa agora sofre um processo de flexibilização de acordo com as estratégias dos atores. ”Vocações estruturais”, decorrentes da posição na cadeia cedem lugar às relações construídas voluntaristicamente entre fornecedores, clientes e consumidores finais. Neste contexto, a noção de rede substitui o conceito de cadeia e os atores terão que construir ou inserir-se num conjunto de redes para lidar com distintas estratégias de mercado.

Complementar a essa percepção é o reconhecimento de que a competitividade do sistema agroalimentar passa cada vez menos pelas vantagens tecnológicas ao nível da unidade produtiva, sendo determinada fundamentalmente a jusante da atividade estritamente industrial. (Trataremos da especificidade da agricultura mais adiante). Embora as exigências de qualidade aumentem e sejam pré-condição de competitividade no sistema agroalimentar, a criação de barreiras tecnológicas não representa uma estratégia importante de concorrência. Existe um deslocamento da competitividade para a esfera logística e mercadológica, combinado com uma homogeneização das características intrínsecas do produto.

Portanto os fatores organizacionais tornam-se decisivos tanto para dirimir conflitos quanto para assegurar os contatos interpessoais e os fluxos de informação necessários para a consolidação das relações de mercado e parceria. Organizações do primeiro tipo são cruciais para assegurar níveis de auto-regulação, mas apresentam o perigo de refortalecer uma imagem “estruturalista” da cadeia e de se transformarem defensivamente em lobbies. A promoção de organizações do segundo tipo portanto é crucial na passagem de cadeias para redes.

Este novo cenário de agroindústria implica em conseqüências importantes para a agricultura. Por um lado, para cada produto a agricultura é mais rígida do que a indústria em relação às vantagens competitivas – o trigo no Brasil é o produto exemplar neste aspecto. Ao mesmo tempo, dado o nível atual de modernização e a predominância de insumos e equipamentos genéricos, a agricultura é extremamente “reversível”. Mais ainda, no contexto atual de valorização de produtos in natura , de criação de novos mercados e de novos canais de distribuição e consumo, a agricultura assume maior autonomia em relação à cadeia agroindustrial. Ao mesmo tempo, a evolução tecnológica exibe uma tendência à miniaturização, permitindo que em algumas cadeias a agricultura reintegre atividades que tinham sido apropriadas pela agroindústria. Portanto, políticas de apoio à agricultura só deveriam visar produtos individuais em casos excepcionais.

O modelo atual de organização dos mercados agrícolas e agroindustriais exibe um viés a favor de uma agricultura especializada e de uma estrutura agroindustrial por produto.  Os cálculos de custos e de produtividade, usados para nortear prioridades de política, também refortalecem esta tendência. Em todas as propostas políticas o produtor marginal confunde-se com a produção familiar. Por trás da eliminação do produtor “marginal” está a ameaça do desaparecimento de um modelo produtivo que tem sido um dos eixos históricos da agroindústria no Mercosul. A produção diversificada pode representar um uso eficiente de recursos naturais e humanos, mas é prejudicada por um aparato institucional – desde a pesquisa agrícola, até a educação, a organização dos canais de comercialização e o modelo agro-industrial – que favorece a especialização. Um enfoque que vise a internalização dos efeitos ambientais e sociais da especialização, bem como a promoção da pesquisa agrícola e inovações organizacionais dirigidas a aumentar a eficiência da produção familiar diversificada, talvez poderia transformar grande parte deste setor numa opção de competitividade, ao invés de ser apenas um objeto de políticas sociais.

O elo mais frágil dessa nova dinâmica de competitividade é a falta de densidade e a polarização do mercado doméstico. Sem uma retomada sustentada de crescimento não existem condições para uma segmentação dinâmica do mercado, e, sem um viés redistributivo, a competitividade de setores da agroindústria passa a ser minada pelo setor informal.

A nossa apreciação dos determinantes atuais da competitividade apresenta alguns pontos de convergência com o tipo de política de ajuda que ora está cogitado no âmbito do Gatt e do Mercosul (Proyecto de Acuerdo, 1994). Tanto na nossa introdução, quanto nas análise por cadeia, tentamos mostrar que o eixo de competitividade desloca-se progressivamente da esfera específica da produção para as atividades a jusante nas áreas de marketing, de acesso aos fluxos de informação e de articulação do processo produtivo entre os atores. No caso específico de agricultura, atividades de pesquisa não disponíveis em embodied technology também representam um componente decisivo de competitividade. Nos programas governamentais aprovados ou em discussão dentro das novas regras institucionais de competitividade, todos estes elementos decisivos estão contemplados – pesquisa agrícola, serviços de formação, serviços de difusão e assessoria, serviços de comercialização e promoção. Ao mesmo tempo, ações sistêmicas para promover a competitividade também estão sendo previstas. Assim, em muitos aspectos, as novas regras de intervenção pública permitem políticas ativas precisamente em áreas não tradicionais que se tornam cada vez mais críticas para a consolidação de competitividade.

 

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