Estudos Sociedade e Agricultura

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Sérgio Pereira Leite

Liberalização comercial e internacionalização: condicionantes à agricultura brasileira


Estudos Sociedade e Agricultura, 7, dezembro 1996: 113-133.

Resumo: (Liberalização comercial e internacionalização: condicionantes à agricultura brasileira). Este trabalho tem como objetivo sistematizar um conjunto de medidas, e suas respectivas análises de impacto sobre os países em desenvolvimento, derivadas do Acordo Agrícola da Rodada Uruguai do Gatt. Mais precisamente o artigo volta-se para o caso brasileiro, contextualizando o processo de liberalização comercial frente às estratégias de integração regional e ao manejo de políticas macroeconômicas e setoriais, sobretudo a partir da segunda metade da década de 80. Nesse sentido é realizado um balanço do desempenho do setor e das políticas agrícolas, referenciando-o às principais deliberações do acordo comercial internacional para o setor rural. Ao final são tentadas algumas especulações sobre os alcances e limites do modelo de inserção internacional da agricultura brasileira.

Palavras-chave: liberalização comercial; internacionalização; agricultura brasileira.

Abstract: (Trade liberalisation and the internationalisation of the economy: key determinants of Brazilian agriculture). These woks aims to provide a systematic presentation of a set of measures originated in the Agricultural Agreement of the Uruguay Round of the Gatt and analyse the effects of each of these measures on developing countries. More specifically, this articles turns to the Brazilian case, situating the process of trade liberalisation in the context regional integration strategies and macroeconomic and sectorial policies, particularly from the second half of the eighties on. We make an assessment of the sector’s performance and the agricultural policies, which were adopted, relating these to the main decision of the international agreement for the rural sector. In the final part of this work, we develop some considerations about the scope and the limits of the model of international insertion, which was adopted in the case of Brazilian agriculture.

Key words: Trade liberalisation; internationalisation; Brazilian agriculture.

Sérgio Leite é professor da UFRRJ/CPDA


1. Introdução

A liberalização comercial, especialmente do setor agrícola, observada em boa parte dos países em desenvolvimento, sobretudo no caso das sociedades latino-americanas, tem sido interpretada como resultado de dois movimentos distintos (mas não necessariamente excludentes): a) o primeiro dado pela falência do modelo nacional-desenvolvimentista, calcado no processo de industrialização via substituição de importações; b) em segundo lugar, pela premência da globalização econômica e sua capacidade de redirecionar o rol das políticas domésticas (Abreu e Loyo, 1994).

Com relação ao primeiro aspecto, são destacadas como principais características desse esgotamento, a interrupção do fluxo de investimentos externos ao país a partir do início da década de 80 [1] e a conseqüente crise fiscal do Estado, com aumento abusivo dos custos referentes ao serviço da dívida externa. Para os nossos propósitos, este diagnóstico identificava, nesse processo, o término da adoção de políticas externas (e também domésticas) prejudiciais ao setor agrícola, tendo em vista o alto grau de protecionismo da indústria nacional e o contínuo mecanismo de transferência de renda do setor agroexportador para o restante da economia, quer através da política cambial, quer através da política tributária (Abreu e Loyo, 1994; Lopes e Rezende, 1994).

Quanto ao segundo movimento, a crescente interpenetração dos mercados e internacionalização da economia, rebatendo no aumento mais acelerado de variáveis internacionais do que nacionais e na dinâmica tecnológica entre os diversos centros industriais, redefiniram o ambiente micro e macroeconômico de atuação empresarial e do setor público. Países com razoável orientação exportadora e complexidade do parque industrial, como o Brasil, não poderiam passar ao largo dessas transformações, submetendo-se à nova ordem internacional. Nesta, como é sabido, a liberalização comercial e a desregulamentação da economia são preceitos óbvios.

Frente a este “estado de coisas”, a posição externa da economia, e mais especificamente da agricultura brasileira, tendo em vista o acentuado drive exportador dos anos 80, oscilava, nos primeiros anos da década atual, entre apostar fundo no regionalismo, através da constituição do Mercado Comum do Sul (Mercosul), ou fortalecer sua performance de global trader. Nas palavras de Abreu e Loyo (1993: 94-5) “para o Brasil, a escolha entre globalização e regionalização não se coloca da mesma forma que para países que têm interesses menos diversificados em termos de produtos e parceiros – tais como o México – ou para países que, pelo tamanho de suas economias, têm poder de barganha muito maior – como os EUA. A vocação brasileira está essencialmente em políticas multilaterais, podendo desempenhar papel importante mas subsidiário na política econômica externa. O interesse na integração regional decorre em medida nada desprezível de argumentos políticos que se somam a uma motivação econômica relativamente limitada. Num plano mais geral, encontravam-se vozes que defendiam, ainda, uma aliança integral aos interesses norte-americanos, em detrimento do comércio regional (Bresser Pereira e Thorstensen, 1993).

O diagnóstico acima implica em qualificações adicionais e um exame mais detalhado dos seus determinantes, sobretudo no plano econômico ao qual se prende nosso artigo. A aceitação, sem maiores cuidados, da inexorabilidade desses movimentos (e seus “pressupostos”) poderia levar a crer que, de um lado, a “argentinização” da economia brasileira é única possibilidade de disputar as franjas da nova economia global; e, de outro, que a adoção das regras do comércio internacional e das receitas de ajuste estrutural, implicariam, necessariamente, em reciprocidades e conquista de novos mercados.

Dentro das possibilidades permitidas num ensaio com esse escopo, nossa tentativa direciona-se, em primeiro lugar, para o resgate das condições que levaram à derrocada o exercício das políticas de desenvolvimento (em especial as políticas setoriais) e o impulso ao export drive da agricultura nacional. Frente a essa determinação caberia um detalhamento maior das condições estabelecidas pelo processo de globalização econômica e os limites impostos às economias em desenvolvimento. Por fim, dada a finalização da Rodada Uruguai do Gatt e a criação da Organização Mundial de Comércio (OMC) e sua importância para o setor agrícola, comentar as perspectivas sobre o impacto das novas regras sobre o quadro da produção e das políticas domésticas.

 

2. O legado da crise econômica e o processo de globalização

Como resposta à crise da dívida externa, o setor agrícola foi levado a participar do esforço exportador, condizente com a estratégia de ajuste do balanço de pagamentos no início dos anos 80, ao mesmo tempo em que assistia à escassez dos recursos destinados ao Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR), conhecidamente a mola-mestra da modernização da base técnica dos estabelecimentos rurais. Paralelamente às iniciativas de retomar o potencial do mercado agropecuário doméstico (sobretudo através do reforço da Política de Garantia de Preços Mínimos), a agricultura brasileira assistiu uma expansão no front externo, especialmente se considerarmos os produtos de primeiro e segundo processamento agroindustrial, derivados da intensificação das cadeias e complexos agroindustriais no país (Graziano da Silva, 1993). Nesse sentido, o peso na pauta de exportações do “macrosetor agrícola” registrava em 1980 uma participação de 56,38% com relação ao valor total de transações. Em 1995, apesar de todas as previsões em contrário (diversificação da pauta, importância do mercado doméstico, etc.), o macrosetor implicava ainda (e com trajetória ascendente) em 41,57% do montante global de produtos exportados. Em termos absolutos, assistiu-se a um salto de US$ 11.351.696 mil (em US$ FOB correntes) em 1980 para US$ 19.331.730 mil em 1995 (Leite, 1996).

 

Transformações no quadro doméstico

Para além das descontinuidades de escala e idiossincrasias do processo de industrialização pesada tardia do caso brasileiro, rebatendo decisivamente na dinâmica tecnológica e capacidade de criação de novos mercados (Canuto, 1993 b), a estagnação da economia nacional ao longo dos anos 80 refletiu, nas palavras de Carneiro (1993), um indesejável paradoxo: se para continuar crescendo era fundamental ampliar os horizontes exportadores, para consolidar a frente externa era também fundamental direcionar recursos a esses setores em detrimento de uma postura mais endogeneizante (capitaneada pelo investimento autônomo). Assim, imprensado pela crise recessiva internacional dos primórdios da década passada, o padrão de desenvolvimento nacional deixava à mostra parte de sua herança obscura: a incapacidade de internalizar um sistema de intermediação financeira privado consistente e a busca feroz pela industrialização, ao preço de um desmantelamento do tecido social, em curso. A resposta à crise veio, além do ajuste externo, na transferência da dívida, do setor privado para o setor público e, sobretudo a partir de 1988, no aumento incontrolável do deficit fiscal, sobretudo a parcela contaminada pela esfera financeira (com juros altos e prazos curtos). A crise fiscal do Estado abateu-se dramaticamente na sua capacidade de implementar/desenvolver políticas de corte setorial, agora subordinadas ao conjunto das políticas macroeconômicas, por sua vez relacionadas ao instável quadro externo e interno. Diante dessas mudanças, o setor agrícola viu-se induzido a ampliar os espaços internacionais (sobretudo nos ramos e cadeias ascendentes ao longo dos anos 70) e a “dialogar” com o Estado em função de um conjunto alternativo de medidas e mecanismos de política econômica: subsídios e transferências diretas ao setor agroindustrial, sobretudo; política cambial amparada no processo contínuo de desvalorizações da moeda nacional; especulação financeira com “ativos reais” e estoques reguladores; etc. Da parte das entidades representativas do setor privado empresarial rural, chegou-se a ouvir que a fonte e continuidade do dinamismo da economia brasileira residiam na capacidade, cada vez maior, do agribusiness em alargar essas barreiras externas.

Assim, longe de rechaçar o regime de financiamento vigente na pré-falência do nacional-desenvolvimentismo, [2] o setor rural chegava mesmo a reivindicar o retorno de uma política setorial mais agressiva. Na incapacidade do Estado continuar a bancar tal proposta, o empresariado agrícola modificou sensivelmente sua estratégia de ação, reforçada agora por um grau de industrialização mais elevado dos produtos de origem agropecuária.

Nesse sentido a busca por uma liberalização maior do comércio agrícola refletia, para além do estado crítico do capitalismo nacional, uma determinada orientação de política econômica, vis-à-vis a incapacidade de gestar um modelo de desenvolvimento alternativo ao ajuste estrutural imposto à América Latina e à posição de escanteio em que acabou sendo colocado o parque doméstico. Na realidade o abertura comercial no setor agrícola, para alguns produtos exportados e importados, já pode ser sentida bem antes da definição do Tratado de Assunção, mais precisamente pela Resolução do Conselho Nacional de Comércio Exterior (Concex), n. 155, de maio de 1988 (Henz, 1995).

Características do processo de internacionalização da economia

No que tange à inevitabilidade da globalização econômica é preciso distinguir exatamente quais argumentos referem-se à retórica de um discurso ideológico-liberal, e quais argumentos prendem-se à observação de processos realmente novos. Antes, porém, é necessário precisar melhor seu significado econômico, tendo em vista a utilização indiscriminada do termo globalização. Para Baumann (1996: 34 e segs.), por exemplo, estão presentes diversas perspectivas, considerando-se sua dimensão econômica: financeira (aumento do volume e velocidade dos recursos e seu impacto sobre as diversas economias); comercial (alteração do eixo focal da competição de concorrência em termos de produtos para competição em tecnologia de processos); produtiva (convergência das características do processo produtivo nas diversas economias); institucional (semelhanças crescentes na configuração dos diversos sistemas nacionais e convergência dos requisitos de regulação em diversas áreas); e de política econômica (perda de diversos atributos de soberania econômica e política).

Opondo-se à idéia de que o processo de intensificação das relações econômicas internacionais reflita, pura e simplesmente, a eliminação das barreiras para o livre trânsito de bens e serviços entre as diversas economias, [3] Coutinho (1996) elenca alguns pontos, que, a seu ver, definiriam processos efetivamente inovadores, com fôlego suficiente para transformar o curso das relações econômicas internacionais: a. “aceleração intensa e desigual da mudança tecnológica entre as economias centrais; b. reorganização dos padrões de gestão e de produção de tal forma a combinar os movimentos de globalização e regionalização; c. difusão desigual da revolução tecnológica, reiterando os desequilíbrios comerciais e de balanço de pagamentos, resultando em um policentrismo econômico que substitui a bipolaridade nuclear do pós-guerra e se expressa na fragilização do dólar vis-à-vis o fortalecimento do iene e do marco; d. significativo aumento do número de oligopólios globais, dos fluxos de capitais e da interpenetração patrimonial (investimentos “cruzados” e aplicações financeiras por não-residentes) dentro da tríade; e. ausência de um padrão monetário mundial estável, no contexto de taxas cambiais flutuantes, magnifica a especulação e os mecanismos de neutralização (derivativos) não são, entretanto, capazes de prevenir a possibilidade de rupturas sistêmicas” (Coutinho, 1996:224-5).

Especificamente no que se refere à internacionalização da produção agrícola, Bonanno et al. (1994) argumentam que essas transformações têm sido marcadas por um processo de diferenciação e segmentação de produtos e mercados. Para os autores o emprego do termo “fordismo” da agricultura como corolário do entendimento da forma de inserção da produção agrícola e agroalimentar na regulação do capitalismo pós-guerra, frente às inovações em curso perdeu sua propriedade explicativa, podendo ser substituído por sloanismo (em alusão a Alfred Sloan), identificado a um processo produtivo mais flexível.

De forma geral, pelas observações de Coutinho (1996), pode-se notar o caráter concentrado (sobretudo dos benefícios) do processo de globalização. [4] Nesse contexto, longe de integrar-se precipitadamente à “esfera global” e acreditar nas regras do comércio administrado (Dias, 1996), é preciso examinar, para tanto, como concorrem as regras do jogo internacional para alanvancar/obstruir o exercício do manejo de políticas agrícolas domésticas e redefinir os “espaços” internacionais da produção agropecuária/agroindustrial. Nesse último aspecto, como já havia sido colocado por Abreu e Loyo (1993), é importante, ainda, observar as estratégias de integração regional e de posições multilaterais.

 

3. Integração regional e comércio agrícola mundial

Como apontamos acima o setor agrícola nacional (entendido aqui como um conjunto de relações econômicas que ultrapassam a atividade agropecuária stricto sensu [5] ), apesar das poucas inovações em produtos, postou-se decisivamente no cenário internacional a partir da década de 80. A consolidação de cadeias agrícolas e agroindustriais e sua orientação exportadora articularam-se, em maior ou menor grau, aos desígnios das políticas macroeconômicas domésticas. Mais especificamente a emergência dessas novas cadeias dava-se num contexto que buscava compatibilizar o crescimento do setor com três objetivos de política macroeconômica: a) maiores níveis de auto-suficiência em recursos estratégicos e de poupança de divisas; b) aumento das receitas provenientes de exportação; c) controle da inflação. No primeiro caso, estimulou-se a expansão do complexo sucro-alcooleiro, do complexo tritícola e a produção de culturas de clima temperado (maçã e olericultura). No segundo aspecto, conformando uma dinâmica agroalimentar internacional, o vertiginoso aumento da produção de soja e derivados, suco de laranja e carne branca, que garante e consolida a internacionalização da agricultura brasileira. E, finalmente, o terceiro ponto embute uma modernização mais tênue da pecuária leiteira e bovina, e, em menor grau, do segmento trigo/ massas (Wilkinson, 1995). Vale ressaltar, no entanto, que no caso brasileiro, sobretudo nos anos 80, a competitividade da produção nacional tem se caracterizado pelo uso intensivo de produtos com forte consumo de produtos naturais e energia (Coutinho, 1996), além das já conhecidas dimensões “espúrias” da produção doméstica (constrangimento da demanda interna, compressão dos salários, desvalorização real da taxa de câmbio etc.). [6]

É interessante observar, ainda, que medidas de liberalização comercial da agricultura nacional iniciaram-se, como havíamos dito, já em 1988; e intensificaram-se significativamente com o acordo que selou a integração regional entre Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, a partir de 1991. Para a efetivação de uma união aduaneira, foram propostos limites da Tarifa Externa Comum (TEC) que giravam, para o conjunto dos produtos importados, em 35%. Convêm notar, portanto, que a estratégia de liberalização antecede à formalização da constituição do mercado comum regional e à conclusão da Rodada Uruguai do Gatt (onde o Brasil, para além da cifra supracitada, apresentou para produtos agrícolas sensíveis valores ao redor de 55%). [7]

Seguindo o raciocínio acima, cumpre explorar um pouco mais, as interfaces entre as estratégias voltadas ao mercado regional e ao relacionamento comercial com os Estados Unidos e União Européia.

 

Globalização e regionalização

O citado trabalho de Coutinho (1996), entre outros, registra a complementaridade entre as esferas de atuação econômico-empresarial global e regional. Para o autor “embora tenham sido e continuem sendo agentes-chave do processo de internacionalização, as grandes empresas transnacionais são, simultaneamente, líderes dos processos de formação de blocos comerciais. Neste sentido não existe contradição e sim complementaridade entre os movimentos de globalização e regionalização da economia mundial” (Coutinho, 1996: 220).

No caso do comércio e estrutura produtiva agrícola mundial o fortalecimento do mercado intra-regional, tem sido uma característica importante da “internacionalização rural”. A Tabela 1, a seguir, apresenta, sucintamente, os valores encontrados para as transações comerciais intra e extra-regionais, nas diferentes regiões, para o ano de 1990.

Constata-se o peso significativo do movimento comercial intra-regional para o caso da União Européia, no valor de 117, 1 bilhões de dólares. Valor que supera, inclusive, o total de transações (exportações e importações) dos demais mercados regionais (Josling, 1995). Pela mesma tabela observa-se, ainda, a participação majoritária dos mercados europeu e asiático no total de aquisições de produtos agropecuários/agroalimentares (pouco mais de 65 bilhões de dólares para cada um). No campo oposto, três grandes blocos lideram a ofensiva da exportação mundial: Estados Unidos/ Canadá (US$ 63,1 bilhões), União Européia (US$ 42,8 bilhões) e os países em desenvolvimento da América Latina (US$ 35,5 bilhões).

 

Tabela 1. Fluxos comerciais agrícolas intra-regional e extra-regional - 1990 (em US$ bilhões).

Regiões

Exportações

Importações

 

Total

Intra-regional

Extra- regional

Total

Intra- regional

Extra- regional

UE

159,9

117,1

42,8

182,5

117,1

65,4

EFTA

17,8

2,2

15,6

16,1

2,2

13,9

USA/Canadá

79,7

16,6

63,1

42,9

16,6

26,3

América - LDC

40,3

4,8

35,5

17,2

4,8

12,5

Austrália/ N. Zel

16,0

0,7

15,4

2,8

0,7

2,1

África - LDC

11,6

1,4

10,1

15,3

1,4

13,9

Ásia

46,4

27,2

19,2

92,3

27,2

65,1

Europa Oriental

20,5

5,1

15,5

23,1

5,1

18,0

Fonte: UN Direction of Trade Statistics apud Josling (1995). Inclui Matérias-primas agrícolas e alimentos.

Assim, concordando com Josling (1995: 4): “but the overall picture is clear: intra regional trade is a large part of world trade, and the conditions under which that trade takes place is therefore of interest to all countries engaged in trade”. Segundo o autor, o comércio intra-bloco aumentou, nos anos 80, aproximadamente três vezes mais do que o comércio off-regions (6,2 % a.a. contra 2,3% a.a., respectivamente). Josling (1995) conclui, ainda, que o patamar de comércio intra-regional (45% do total de transações em 1990 contra 33,5% em 1970) situa-se num patamar muito elevado. Nesse sentido, apesar da concomitância entre os processos de regionalização e globalização, o autor questiona a possibilidade de uma total liberalização dos mercados, como previsto pela Rodada Uruguai, mantendo-se as cifras enumeradas acima. Em defesa do livre-comércio, o autor deposita no papel das associações internacionais/ multilaterais de livre-comércio um papel intra e supra regional: a) no plano interno, no sentido de fazer valer, tal como na CEE, um efetivo livre-trânsito de bens e serviços, suplanto acordos bilaterais de países-chave com outras regiões/ países; b) no plano supra-regional, no sentido de fazer fluir melhor o fluxo de investimentos/comércio entre os blocos, amenizando eventuais hostilidades. Para tanto é fundamental reforçar o papel da OMC, bem como eliminar as posições de hub & spoke [8] que prevalece em determinados acordos.

Apesar da advertência acima, os acordos regionais, em diversos casos, tiveram o “mérito” de aparar arestas comerciais e antecipar o ajuste comercial.

Como salienta Henz (1995), propondo uma saída ao impasse apontado por Abreu e Loyo (1993) no início deste trabalho, o Mercosul complementa o rumo dos acordos comerciais observados no Gatt e aponta um crescimento significativo das transações comerciais entre os, então, quatro países membros (cf. Tabela 2). Assim, “o Mercosul não tem um fim em si mesmo, mas é parte do processo de inserção num mercado mundial globalizado, ao procurar a eficiência econômica para enfrentar a concorrência internacional. Nesse sentido, diferencia-se e contrapõe-se ao conceito de integração, que apenas visa a mercados cativos. Para o Brasil, não faria sentido se assim não o fosse, uma vez que seu comércio internacional tem características de um global trader, com mercados e produtos bastante diversificados, com os membros do Mercosul representando apenas cerca de 10% do total desse comércio. É em função dessa estratégia que a estrutura tarifária do Mercosul, a Tarifa Externa Comum (TEC), é relativamente ‘leve’, com uma tarifa máxima prevista de 20%, significando um mercado regional bem mais aberto [9] do que os mercados individuais existentes previamente à integração” (Henz, 1995: 53). O autor exemplifica sua análise citando que a proposta do SGT-8 do Mercosul quanto à medida global de ajuda às políticas agrícolas vai no sentido de ajustar-se ao de minimis do Acordo Agrícola do Gatt, enquanto que na própria negociação da Rodada preconizou-se uma redução do apoio, não necessariamente seu ajuste ao patamar mínimo.

 

Tabela 2. Intercâmbio comercial Brasil-Mercosul (em US$ milhões).

Anos

Exportações

Importações

Saldo

Corrente de

Comércio

1991

 2.309

 2.268

 41

 4.577

1992

 4.097

 2.250

 1.847

 6.347

1993

 5.395

 3.378

 2.017

 8.773

1994

 5.921

 4.581

 1.340

 10.502

Fonte: SECEX/MICT. Intercâmbio comercial Brasil x Mercosul. 1995.

No entanto é necessário guardar-se certa reserva quanto ao caráter otimista do Mercosul, tendo em vista, sobretudo, sua face eminentemente comercial e extremamente subordinada às oscilações das políticas macroeconômicas domésticas de curto prazo dos países-membros. A harmonização das políticas macro e setoriais persiste como um sério problema à constituição do mercado comum (Jank, 1994) e a definição dos produtos sensíveis e/ou participantes da lista de exclusão obedece à determinações de ordem conjuntural. Além disso, é bom lembrar o efeito nocivo à capacidade de regulação do Estado e aos custos administrativos e financeiros propriamente ditos, que a prática de draw-back sobre produtos agropecuários por países-membros tem proporcionado à operacioanalização de uma política de preços doméstica e à manutenção de estoques reguladores e estratégicos (Delgado, 1995).

 

O acordo agrícola da Rodada Uruguai

No contexto do acordo assinado em Marrakesh, [10] em 15 de abril de 1994, foi firmado o Acordo Agrícola, constitutivo do terceiro capítulo do apêndice 1A da parte do documento que institui a OMC (cf. Apêndice 1 de Anania e De Filippis, 1996). Nestes termos o Acordo Agrícola prevê: a. redução do nível de sustentação e apoio interno; b. maior abertura do mercado interno às importações; c. redução da política de subsídio às exportações.

Para os países em desenvolvimento foi estabelecido uma proporção de 2/3 das metas e um período 66% superior para sua concretização, se comparado aos objetivos fixados para os países desenvolvidos (Anania, 1996b). No entanto, mesmo com condições diferenciadas, o Acordo preserva o tratamento desigual que marcou o Gatt desde o seu início, ao direcionar para o mesmo vetor estratégico, nações produtoras com porte e capacidade de negociação explicitamente discrepantes. Não há garantia de fato de que os superpowers respeitem as regras que eles próprios ajudaram a consolidar. Mas, com certeza, estes países se esforçarão para fazer valer o tratado em contenciosos com nações mais fracas. Esta desigualdade de intenções e tratamento, pode ser exemplificada pelo “alargamento” da green box ao contemplar os pagamentos diretos como políticas domésticas não-distorcivas do comércio global (Buntzel, 1993). [11]

Grosso modo, seguindo a exposição de Valdés e McCalla (1996), o leque de determinações sobre o comércio e a produção agropecuária dos países em desenvolvimento, pode ser apresentado esquematicamente, como abaixo:

 

compromissos de acesso aos mercados

a. realizar o processo de tarificação, observando não ultrapassar o equivalente tarifário prevalecente no período-base (1986-1988).

b. redução das tarifas em 24% durante 10 anos, com redução mínima de 5% por linha de tarifa.

c. provisão de acesso mínimo ao mercado doméstico, através de quotas-tarifas, com percentual elevando-se de 2 para 4%.

d. provisão de salvaguarda especial para importações, com recrutamento das obrigações adicionais quando o volume de importações exceder a média dos três últimos anos ou seu valor cair demasiadamente.

 

subsídios à exportação

a. eliminação de novos subsídios à exportação.

b.   redução dos valores gastos com subsídios em 24% e redução do volume das exportações subsidiadas em 14%, durante 10 anos, com base no período 1986-90.

 

suporte doméstico

a. redução dos apoios distorcivos de 14% em 10 anos, exceto políticas da green box (cf. Quadro 1).

b. a medida agregada de suporte poderá ser excluída do cálculo de políticas compatíveis com a green box, voltadas a produtos específicos, se o apoio em questão não exceder 10% do valor dos mesmos.

c. os pagamentos diretos não estão suscetíveis à redução caso estejam baseados em áreas (ou número de cabeças, para a produção pecuária) fixas e volume produzido; efetuados a partir de produção base de, no mínimo, 85%.

 

Quadro 1. Acordo agrícola do Gatt – definição de políticas permitidas.

 

Ambar Box

Green Box

D

E

S

E

N

V

O

L

V

I

D

O

a. sustentação ao preço

b. subsídios para comercialização da exportação

c. subsídio ao transporte de produtos exportados

d. subsídios de produtos exportados financiados pelo produtor

e. subsídios aos insumos

f. exportação de estoques subsidiados

g. pagamento em espécie

a. serviços gerais (pesquisa, extensão, treinamento, etc.)

b. estoques estratégicos

c. ajuda alimentar interna

d. suporte a renda desacoplada

e. programas de seguro

f. apoio no caso de intempéries

g. programas de reembolso e auxílio aos investimentos

h. programas ambientais/conservação

i. programas regionais

j. pagamentos diretos

E

M

D

E

S

o mesmo que acima, exceto para as políticas objeto da caixa verde.

idem ao caso acima, mais:

a. subsídio ao transporte interno e à comercialização

b. subsídios aos investimentos

c. subsídios à diversificação

d. subsídios aos insumos agrícolas

Fonte: Valdés e McCalla (1996).

 

Os autores estimam ainda que o impacto na elevação dos preços mundiais das commodities agrícolas não ultrapassará 5% e que o impacto do Acordo sobre os países em desenvolvimento é muito reduzido. “A conclusão básica deste trabalho é que o acordo agrícola do Gatt pouco provavelmente, exceto em alguns casos, irá apresentar países em desenvolvimento com grandes problemas de ajuste das políticas. Na América Latina, as reformas unilaterais foram muito mais longe do que as exigências do Gatt, e em muitas instâncias as reformas ocorreram antes do advento de acordos comerciais regionais” (Valdés e McCalla, 1996).

Porém, nem todas as análises convergem para o diagnóstico acima. Cufaro (1996), por exemplo, chama a atenção para as projeções negativas sobre a balança comercial dos países em desenvolvimento decorrentes da implementação de medidas negociadas no Gatt. A exceção, neste caso, tanto para produtos básicos como para o restante dos produtos agrícolas/ agroalimentares, caberia aos países em desenvolvimento da América Latina, que teriam um acréscimo de 2 milhões de dólares, comparando-se o cenário que inclui o Gatt daquele que em os acordos não estão contemplados (cf. Cufaro, 1996: 374 e segs.).

Lopes (1994 e 1996) argumenta adicionalmente o pouco grau de manobra dos países em desenvolvimento na utilização de instrumentos como os direitos compensatórios, prejuízo grave e o painel de especialistas, após o término da Rodada Uruguai.

 

4. À guisa de conclusão: como ficamos?

Boa parte das análises converge para o baixo impacto das medidas do Gatt sobre a produção e a comercialização agropecuária brasileira. São destacadas a maior diversificação da pauta de exportações do Brasil e a menor abertura externa se comparado a outras nações latino-americanas ou aos países do Mercosul (Buxedas, 1995). No entanto, a título conclusivo, vale examinar alguns rebatimentos possíveis no rol de políticas domésticas, sobretudo se considerarmos a possibilidade de arquitetar um mínimo de mecanismos de política voltados ao setor, rechaçando uma visão de “Estado-neutro” como em Lopes e Rezende (1994).

Resumidamente, no que tange ao acesso ao mercado interno, o dispositivo principal recairia sobre o controle e defesa comercial contra práticas desleais de comércio (medidas anti-dumping) e a fixação de uma “banda de preços” para commodities com preços transparentes no mercado internacional (Henz, 1995). No entanto esta postura está submetida ao maior ou menor grau de “liberalização comercial” da “política agrícola” em vigor, no sentido que problemas de abastecimento interno tendem a ser resolvidos pelo acréscimo nas importações. Políticas de apoio interno implicam necessariamente numa diminuição da eficácia da PGPM e na elevação do custo de manutenção dos estoques (reguladores e estratégicos), com rebatimento no grau de segurança alimentar (Delgado, 1995; Henz, 1995). O combalido SNCR encontraria argumentos para garantir sua vigência nos moldes da green box. No entanto o problema parece situar-se acima do cenário das políticas setoriais. Mais diretamente trata-se da ausência de recursos (ou da priorização) de recursos voltados ao exercício de políticas de desenvolvimento e apoio rural, mesmo que as estas se encontrem, paradoxalmente, com permissão garantida pelo Acordo Agrícola. Finalmente, no tocante às exportações, o Brasil não apresenta condições prévias à aplicação das regras. O setor empresarial tem defendido insistentemente uma redução da carga tributária, compatível com o acordo. No entanto, subordinadas ao plano de estabilização (Real), as exportações têm assistido altos e baixos para sua viabilização: de um lado, a apreciação da moeda tem reduzido a competitividade internacional; de outro, políticas alternativas, como o adiantamento dos ACC’s têm possibilitado contornar as restrições da política cambial (Coutinho, 1996).

Finalmente, valem aqui as observações proferidas por Fonseca e Buainain (1996), que passamos a reproduzir: “o desenho das políticas agrícolas, que não só gozou, no passado, de certa autonomia em relação às políticas macroeconômicas mas ficou, também, imune a mecanismos de avaliação de seus impactos econômicos, sociais e ambientais, vem sendo crescentemente condicionado não apenas pela disponibilidade de caixa dos Tesouros Nacionais como também pela necessidade de responder a critérios de transparência política, eficiência e racionalidade econômica, assim como aos critérios de bem estar social, os quais vem ganhando força e importância na formulação de políticas públicas a partir do amplo processo de democratização política pelo qual atravessa a região. Embora ainda não se possa falar de uma nova política agrícola, estas restrições vêm balizando o rumo e o perfil das políticas agrícolas implementadas na região no período recente, forçando o desenho de políticas agrícolas menos abrangentes e melhor focalizadas em certos grupos de produtores e/ou produtos, uma redefinição de tarefas e maior articulação entre os setores públicos e privados, assim como uma maior transparência no processo de definição e avaliação das políticas públicas, o que só é possível com a integração efetiva dos grupos organizados nesse processo” (Fonseca e Buainain, 1996: 39-40).

 

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Notas

[1] Sobretudo após a moratória mexicana de 1982, reduz-se drasticamente a entrada de capital no país, expressando um movimento de concentração dos fluxos de investimentos diretos dentro do círculo fechado do países desenvolvidos, exceção feita à algumas economias do leste asiático (Canuto, 1993 a; Turner, 1991). No entanto , após novo boom econômico e aumento relativo do grau de liquidez internacional, esses investimentos retornam à esfera local, porém vinculados à aplicações financeiras de curto prazo e à alianças estratégicas empresariais (Coutinho, 1996).

[2] Em contrapartida ao maior fechamento da economia vigente no modelo de substituição de importações, o setor rural foi pródigo, sobretudo a partir de meados dos anos 60, em tornar elástica a fonte de distribuição dos recursos destinados à produção e à comercialização, que, na linguagem pós-Rodada Uruguai, poderia ser lida como medidas de subsídios aos insumos, e, portanto, distorcedoras das regras de comércio fixadas pelo Acordo.

[3] Perspectiva que, aliás, informa boa parte das teorias de comércio internacional, sobretudo entre os pesquisadores do setor agrícola (Josling, 1995). Para uma crítica à esta postura de equilíbrio ver Guillochon (1976, 1993).

[4] Nesse sentido vale a transcrição de uma longa passagem de Furtado (1993), para quem “aumentar o esforço para aprofundar a inserção externa da economia - o que atualmente se apresenta como requisito para a modernização - somente se justifica se esse esforço for realizado no quadro de uma autêntica política de desenvolvimento socioeconômico, o que não é o caso se o aumento das exportações tem como contrapartida contração do mercado interno. (...) Se temos em conta que nossa economia dificilmente pode recuperar seu dinamismo apoiando-se basicamente nas relações externas, cabe indagar se não terá sido erro abandonar a estratégia de construção do mercado interno como ‘motor de crescimento’. (...) Portanto o primeiro desafio que deve enfrentar o Brasil é o de aumentar sua capacidade de autofinanciamento, o que requer maior esforço de poupança pública e privada e maior disciplina e transparência no uso das divisas geradas pelas exportações (Furtado, 1993: 7-10).

[5] Uma delimitação mais rigorosa do “macro-setor agrícola”, bem como seu efetivo impacto na pauta de exportações brasileiras no período 1980/95, pode ser encontrada em nosso trabalho anterior. Cf. Leite (1996).

[6] Para uma definição de competitividade ver Araújo Jr. (1996) e Chudnovsky e Porta (1990). Baumann (1996) tem ressaltado o peso dos custos de transação, em detrimento dos custos produtivos, na determinação da competitividade. Sobre o caráter espúrio da modernização produtiva e inserção internacional da agricultura brasileira na década de 80, ver Graziano da Silva (1993).

[7] É o caso, por exemplo, dos produtos agrícolas notoriamente subsidiados no mercado internacional. Cf. Henz (1995).

[8] A principal característica dessas posições refere-se ao papel hegemônico de determinadas nações em processos de acordos regionais específicos, onde o fluxo econômico se dá bilateralmente com cada uma das nações subordinadas, e não entre estas últimas.

[9] Para uma posição ainda crítica dos níveis tarifários brasileiro e dos países do Mercosul, ver Valdés e McCalla (1996).

[10] Não pretendemos aqui uma exposição exaustiva dos resultados da Rodada Uruguai do Gatt, nem tampouco sobre os princípios que regem o Acordo. Sobre este último aspecto consultar Dias (1996) e Mello (1992). Para um exame detalhado das novas regras de comércio e suas implicações genéricas sobre a agricultura ver Anania (1996a, 1996b), Anania et al. (1994). Tendo em vista o paralelismo do Acordo com as reformas das políticas agrícolas dos países desenvolvidos, sobretudo Estados Unidos e Europa, um resumo destas últimas poderá ser encontrado em Fonseca (1995). Dados os limites do texto tais reformas não serão objeto de apreciação.

[11] O autor coloca, ainda, a pouca “elasticidade” na definição dos países excluídos do cumprimento das regras, eliminando qualquer possibilidade dos países considerados “em desenvolvimento” de pleitearem uma inserção comercial diferenciada. Cf. Buntzel (1993).