Estudos Sociedade e Agricultura
Maria Yedda Linhares
O livro de Alan Brinkley: the End of Reforms
Estudos Sociedade e Agricultura, 7, dezembro 1996: 181-184.
Maria Yedda Linhares é professora da UFRJ.
Historiador premiado e professor da Universidade de Columbia em Nova Iorque, Alan Brinkley apresenta, de forma erudita e precisa, um painel do período de recessão e, a seguir, de guerra nos Estados Unidos de Franklin Roosevelt, entre 1937 e 1945. É um período que, para o autor, corresponde ao fim da era da reforma que tivera início com a eleição de Roosevelt para o seu primeiro mandato, 1932-1936, em meio à depressão que se seguiu à crise de 1929 e suas seqüelas. Brinkley aponta de forma convincente para as metamorfoses do liberalismo reformista e inovador do início da década em virtude de novas conjunturas, nacional e internacional que se seguem à recessão de 1937. Tornavam-se, assim, necessários, em face da nova realidade, novos instrumentos de ação, através da redefinição do New Deal. Para Brinkley, a era das reformas chegara ao fim.
Trata-se de um livro atual que nos conduz a rever em certos aspectos o New Deal, o liberalismo de tipo americano e o pragmatismo de suas políticas, bem como o nosso conhecimento sobre as transformações por que passou esse liberalismo de múltiplas faces, ao longo do século. É fundamental lembrar aqui que o fim da era da reforma não resultou de qualquer declaração de intenções de Franklin Roosevelt, nem de qualquer outro político atuante em décadas posteriores. Nosso autor situa o seu tema dentro de conjunturas históricas precisas: a mudança política decorrente da recessão de 1937 e o terceiro mandato de Roosevelt diante da experiência internacional e militar da 2a Guerra Mundial, e a nova prosperidade daí resultante. Longe das doutrinações mobilizadoras, o país vai assumindo novas responsabilidades e seguindo os rumos ditados mais pela prática do que pelas intenções expressas, como se os pressupostos ideológicos sobre os quais se apoiara o New Deal, em meio à Grande Depressão, tivessem perdido a sua razão de ser.
No início dos anos 30, o país se encontrava perplexo frente às transformações que se vinham operando: rápida urbanização e transformação social no campo. Os baluartes da democracia jacksoniana se desmoronavam diante do desaparecimento cada dia mais evidente do pequeno comércio independente e da atividade agrícola fundada no trabalho familiar (family farmers). Tomava vulto o consumo de massa. No entanto, ainda era possível a mobilização do “homem comum”, trabalhadores e operários, agricultores independentes, consumidores urbanos, tão bem retratados nos inesquecíveis filmes de Capra, ao mesmo tempo mobilizadores e mobilizados do New Deal, como enfatiza Brinkley.
Para o nosso autor, a mudança ocorre quase imperceptivelmente, com a emergência do Novo Liberalismo, espécie de resposta ao mundo em tumulto no pós-depressão. Tal mundo era menos idealista no discurso, mais coerente e, por isso mesmo, menos politizado. A crítica social vai-se esmaecendo. Aos poucos, riscava-se do ideário político a crítica ao capitalismo concentrador, com seu gigantismo empresarial, crítica essa que fora uma constante no discurso popular e reformista dos tempos heróicos da industrialização e da expansão interna, desde as últimas décadas do século XIX. No entanto, e aí está o desafio assinalado por Brinkley, o New Deal permaneceu dominante no pensamento e na ação do liberalismo americano, até os anos 60.
A década de 30 foi, como sabemos, extremamente fértil em movimentos sociais, para o bem e para o mal. Parecia que o capitalismo tinha seus dias contados. Mesmo os que não viveram essa crise, tiveram dela conhecimento pela literatura fulgurante que daí resultou, de modo singular a norte-americana; pelas fotos extraordinárias de fotógrafos também americanos que percorreram o país, dia e noite, anos seguidos, registrando o desespero e a crise; pelas repercussões que desembocaram na 2a Guerra Mundial, dando asas ao nazi-fascismo, embora tivessem existido alguns interregnos de esperança – na França, front populaire; na Espanha, a experiência republicana, mesmo curta. O próprio Brasil não ficaria alheio a esse movimento social emergente com suas aspirações de transformação. Década complexa, difícil de ser sintetizada, quanto mais simplificada! Os nossos tempos presentes têm aí algumas raízes de seus males e também de suas esperanças.
Afinal de contas, o que tinha de tão sedutor o New Deal de modo a perdurar tanto tempo na base das aspirações progressistas dos americanos? A arrasadora vitória de Franklin Roosevelt sobre Herbert Hoover em 1932 deu aos democratas o respaldo necessário para serem tomadas de imediato medidas de impacto, tendo como leitmotiv três objetivos centrais: redução de tarifas, auxílio à agricultura e maior atenção do homem esquecido (the forgotten man). Ao assumir em março de 1933, anunciou como primeira medida, o fechamento dos bancos, a declaração de embargo do ouro com o objetivo de restaurar o poder de consumo de metade da população; para enfrentar os abusos do poder econômico e sanear a crise que atingia a agricultura, o sistema financeiro e o trabalho, não tardou a pôr em prática um programa de emergência, de largo efeito: a reabertura dos bancos, a restauração do crédito federal, o auxílio à pobreza como ação federal e o início de um programa de obras públicas. Como medidas de longo curso: a lei de auxílio aos agricultores (o AAA), a criação do TVA (Tennessee Valley Authority), imenso programa de desenvolvimento regional através da montagem da infra-estrutura de área superior a um milhão de km², decisão de abandonar o padrão ouro e realizar a reavaliação do dólar, com o objetivo de redistribuir rendas e riquezas, introduzindo-se medidas fiscais sobre herança, sobre os lucros das grandes empresas e sobre a renda em geral. Contou para tanto, com uma equipe competente: Vallace Arthur Morgam (TVA), Joseph Kennedy, Harry Hopkins.
Tais medidas, que mudaram a face dos Estados Unidos de forma duradoura, confundem-se com quase meio século de preocupação americana com o excessivo peso da industrialização sobre o país. Tratava-se, na realidade, de revisar e humanizar a estrutura institucional do capitalismo, cuja tendência era cada vez mais acentuada para a concentração. A partir do segundo mandato de Roosevelt (1937-1941), já numa conjuntura internacional diversa, as aspirações liberais mudam de rumo para se chegar a uma acomodação com o capitalismo, ou seja o Estado deixaria de interferir no funcionamento interno do Capital, evitando qualquer colisão de rota, para ter um papel “compensatório”, ou seja, suprir as “omissões” do Capital.
Dentro dessa nova estratégia, argumenta Brinkley, o novo liberal do pós-guerra passará a defender a face meramente econômica do New Deal que já teria eliminado os aspectos nocivos do grande Capital, para poder então assegurar o crescimento econômico, pressuposto essencial do progresso econômico. Nada mais avançado, portanto, para um novo liberal, do que incentivar o consumo, consumo esse também incentivado no auge de era das reformas. Retirava-se, assim, do liberalismo a ênfase inicial na reforma, findas que estavam suas preocupações com a luta de classes, com a relação entre democracia e independência econômica, como também desaparecera a velha hostilidade ao poder econômico. Concluiu o nosso historiador: assim, redefinia-se a cidadania para esmaecer o papel de homens e mulheres como produtores e elevar o seu papel como consumidores.
Ao começar o século e até meados do mesmo, o liberalismo que emergiu em contrapartida ao laissez-faire desvairado, passa a ser encarado como progressista na medida em que pregava a defesa do indivíduo, das comunidades e do Governo contra o poder econômico. O cidadão, para ter assegurada a sua subsistência e usufruir com dignidade a sua cidadania, necessitava de um Estado capaz de intervir na vida econômica. Assim, o New Deal e a idéia de que o Governo deve desempenhar um papel ativo na economia vinha de encontro a essa tradição liberal, embora Brinkley prefira identificar o New Deal a uma terceira vertente de liberalismo. Esse novo liberalismo estaria mais voltado para garantir os direitos e as liberdades. Esse o movimento que empolgará as gerações de tradição liberal no pós-guerra: a luta pelos direitos civis, pelo reconhecimento da extensão desses direitos às minorias, como também a garantia dos programas de seguridade social e bem-estar público.
O New Deal foi a expressão do grande liberalismo reformador da política americana. Foi ao mesmo tempo síntese de aspirações historicamente assentadas no rebate ao liberalismo do laissez-faire e, ainda, ao mesmo tempo, apogeu e fim dessa tradição de reforma e justiça social. Tornou-se também o ponto de partida de nova e diferente era liberal.