Estudos Sociedade e Agricultura
Andréa Alves de Abreu
A interferência da técnica moderna na espontaneidade da vida
Estudos Sociedade e Agricultura, 3, novembro 1994: 144-154.
Andréa Alves de Abreu é mestre pela UFRRJ/CPDA.
Para o senso comum, a vida sempre apareceu no mundo através de si mesma e esse era seu caráter auto-evidente: o de aparecer, surgir, nascer. Seu curso natural - nascer, crescer e morrer - sempre ocorreu fundado na espontaneidade da natureza. No entanto, a técnica moderna com suas práticas de transferência de embriões, inseminação artificial e varredura genética, por exemplo, ingressa neste curso natural sobrepondo-se à espontaneidade na qual a vida sempre pareceu fundada.
A Zootecnia, ciência que estuda os animais domésticos sob o ponto de vista econômico, evidencia a união da técnica e da vida. Visando o aumento de produtividade animal, ou seja, o aumento da produção de leite, carne, ovos, lã e também de eqüinos para a reprodução e para os esportes, a Zootecnia se utiliza de estudos onde a biologia desses animais é quem fornece os conhecimentos necessários para que se realizem as práticas de aumento de produção. A seu serviço estão a bioquímica; as fisiologias da digestão, da lactação e da reprodução; a genética e os demais ramos da biologia.
Em toda a rotina das ciências biológicas, em seus laboratórios de análises, em suas pesquisas experimentais, em seus levantamentos de dados e nos institutos de Zootecnia - que podem se apresentar divididos em departamentos de produção, nutrição e reprodução animal, por exemplo - , está, em primeira instância, o material do qual a Zootecnia se ocupa e do qual se serve para seus trabalhos. Este material é a vida. Apoiada nas ciências biológicas, a Zootecnia busca o aumento da produção animal e, conseqüentemente, dos produtos de origem animal. Além de se ocupar em suprir as necessidades nutricionais, sanitárias e fornecer condições criatórias propícias para que o manejo reprodutivo se dê a contento, a Zootecnia também intervém no curso natural da vida animal. Além de conhecer e atender às necessidades zootécnicas das espécies animais, esta ciência tanto atua desencadeando processos que somente ocorreriam na natureza espontaneamente quanto atua desencadeando processos que, se não fosse pela intervenção do homem, jamais ocorreriam.
A vida, que sempre pareceu fundada na espontaneidade, recebe, a partir das práticas zootécnicas, uma interferência em seu curso natural. A prática de multiplicação de embriões, por exemplo, pode trazer ao mundo animais idênticos entre si. Se não fosse por esta técnica viria ao mundo apenas um animal, ou seja, o único embrião gestado inicialmente. Gestações gemelares, de acordo com a espécie animal, podem ocorrer, mas o que faz uma prática como a citada é desencadear na natureza um processo que, embora seja comum a ela, não ocorreria se não fosse a intervenção da técnica. Neste exemplo o que acontece, é que o homem, porque conhece o processo de produção de gêmeos (e nisto ele se auxilia nas ciências biológicas), pode desencadeá-lo na natureza.
Um exemplo de processo que a técnica moderna pode forjar na natureza, mas que se dependesse dela mesma jamais ocorreria, é a produção de animais transgênicos. Trata-se da implantação de segmentos de DNA de uma espécie em outra os quais tornam-se funcionais e transmissíveis à progênie. Assim, um suíno pode ter introduzido em seu mapa genético genes de um rato os quais garantirão a ele e à sua progênie resistência à influenza. Nos dois casos citados, ou seja, tanto a técnica ao copiar um processo que ocorre na natureza quanto ao criar o que nunca houve, é possível observar sua presença no curso natural da vida, alterando a espontaneidade sob a qual ela sempre pareceu fundada.
Parecer fundada sob a espontaneidade sempre foi a característica preponderante da vida. Surgir no mundo a partir de si mesma e a partir de um controle e mecanismo dados por ela a si mesma, sem a influência de nenhum outro agente que não a própria vida, era seu caráter espontâneo. O ingresso da técnica moderna em seu curso natural rompe, em alguma medida, com esta espontaneidade. Com a técnica, a vida passa a ser fabricada por um processo estranho a ela, passa a surgir no mundo através de um mecanismo que não lhe foi dado por ela mesma, como sempre foi comum. Diante disto um espanto afeta o pensamento: o que significa o ingresso da técnica moderna na espontaneidade da vida? O que é a vida para ser fabricada?
Como vida é uma palavra encontrada, a princípio, nos estudos acerca da natureza recorreu-se a obra de Robert Lenoble História da Idéia de Natureza[1], pensando-se responder à questão formulada. No entanto, Lenoble ao afirmar que a possibilidade de conhecer a natureza está no estudo das idéias que os homens fazem acerca dela e que estas idéias são socialmente construídas e historicamente datadas está também afirmando, que a possibilidade de conhecer alguma coisa é dada pela idéia que o homem, ao longo do tempo, faz de si mesmo e do mundo que o cerca, onde as coisas que existem no mundo são uma projeção daquilo que ele pensa acerca de si mesmo e do seu tempo histórico. Tanto o mundo, as condições sociais, políticas e econômicas condicionam o homem, quanto ele é condicionador delas. Assim, segundo este raciocínio, o que há no mundo é o produto deste homem às voltas consigo mesmo, onde as diferentes idéias de natureza são a projeção das diferentes idéias do homem acerca dele mesmo e de seu tempo histórico. O que parece interessante pensar, ao se estudar Lenoble, é que a possibilidade de conhecer a natureza remete ao homem, e não à natureza. Como se não existisse nada além do homem, ou ainda, como se não existisse a possibilidade de conhecer alguma coisa que não fosse ele ou que não fosse dada por ele.
Diante desta impossibilidade, ou seja, a de não se poder falar de alguma coisa que não seja o próprio homem, fica-se apenas com a possibilidade de se falar das representações que o homem faz e projeta acerca do mundo, como se suas representações fossem o próprio mundo - como se a idéia de natureza representada fosse a natureza possível. Assim, diante da impossibilidade de falar, por exemplo, no ser-gato do gato - posto que um homem não pode ser um gato, o que implica dizer que um homem só pode falar daquilo que ele pode ser - , resta a possibilidade de se falar no gato que cada homem concebe dentro de si, onde então um gato passa a ser a representação ou da confortabilidade, ou da agilidade, ou da feitiçaria, ou do roubo, ou de qualquer outra representação de gato que o homem traga dentro de si. O que se torna possível é fazer com que os vários gatos internos “passeiem” externamente a partir do momento em que cada homem fale de seu gato, o que, a rigor, somente remete ao dono do gato, nunca ao gato mesmo.
Em sendo o mundo - os fatos, as coisas, a verdade, a sexualidade, a afetividade, as revoluções, etc - , construído histórica e socialmente pelos homens a partir das projeções de suas representações internas, parece não haver nada que possa ser considerado como dado e a espontaneidade da vida é um exemplo disso. Tudo obedece a um processo de construção e por ser assim sempre há a possibilidade de se partir do fato presente e em um movimento descendente conhecer as etapas de seu processo de construção até que se retorne ao fato construído, justificando-o em sua existência. Ao lado deste método moderno de conhecer o que aparece como dado pode ser compreendido ou como um mito - uma compreensão mitologizada - , ou como uma aparência enganadora empenhada em esconder aquilo que realmente é, posto que há uma essência escondida e dissimulada por trás da aparência.
Decisivo para o pensamento moderno - essa “escola da suspeita”, segundo Nietzsche - , foi a certeza de que se mudava de um sistema geocêntrico para um sistema heliocêntrico. Esta certeza não foi conferida à humanidade nem pela razão, nem pela especulação, nem pela contemplação mas sim por um instrumento feito pela mão do homem, instrumento este que deixou para o passado a confiança de que o aparato sensorial, a razão e a fé, eram suficientes para que o homem vivesse no mundo e pudesse conhecer a realidade que o cercava. Mesmo após o telescópio ter flagrado - e não apenas descoberto - o movimento da Terra, o aparato sensorial continuava assistindo ao percurso do sol sobre a cabeça dos homens. Mesmo após o engano perceptivo ser corrigido por um instrumento, a aparição enganosa permanece de forma constante.
Descartes, procurando se resguardar dos enganos peculiares ao aparato sensorial e ainda com a certeza de que as aparências são enganosas - como no caso do movimento da Terra, as aparências enganam ao ponto de dar a entender o contrário daquilo que realmente é - desenvolve um método de raciocínio onde a certeza não dependa dos sentidos e que, sobretudo, possa ser demonstrável. Supondo que a verdade encontra-se sob o domínio de um Gênio Maligno - empenhado em dotar “o homem da noção de verdade apenas para conferir-lhe outras faculdades tais que ele jamais poderá alcançar qualquer verdade, jamais será capaz de estar certo de alguma coisa”[2] - , o filósofo alenta-se com a noção de que mesmo sem poder conhecer a verdade como algo dado e revelado - posto que os sentidos são inaptos para recebê-la e ainda, que as aparências são ativamente enganadoras - , ele pode, ao menos, conhecer as coisas que constrói.
Buscando o conhecimento “certo e indubitável”, Descartes reconhece que este conhecimento deve ser dado pelos processos da mente, pois de que ele pensa nem mesmo a indústria de um Deus Enganador poderá dissuadi-lo, e já que ele pensa - sobretudo pensa submetendo seu pensamento à regra da dúvida - a coisa pensada existe. Se a coisa pensada passa a existir após ser construída pelos processos da mente, pode ser conferida pela própria mente, independente do aparato sensorial, independente até da coisa mesma. Já que a verdade é fugidia, esconde-se por trás de aparências enganadoras e carece de aparato sensorial suficientemente apto para recebê-la, é preciso que, ativamente, o homem a construa. A verdade, assim construída, torna-se comunicável a partir do momento que um outro que deseje conhecê-la use o mesmo processo de raciocínio de quem a construiu.
A verdade construída pelo pensamento moderno pode ser inferida por aparelhos de medição. Por exemplo, é possível conhecer a vermelhidão do vermelho, à medida que a escala colorimétrica acusar a presença da cor vermelha. No entanto, as verdades que não podem ser medidas por aparelhos estão para sempre longe do alcance humano. Talvez, muito menos porque elas careçam de aparelhos de medição, e muito mais porque elas mesmas não existam. O que pode ser possível existir é o homem elaborando estas verdades na própria mente. Verdades estas que por serem construídas podem ser desconstruídas, e onde nada é em si pois depende de alguém para elaborá-las no pensamento e, assim, conferir-lhes a existência. Já que o homem só pode conhecer aquilo que ele mesmo faz, ele só pode saber aquilo que ele mesmo pensa ser, e já que um homem não pode ser um gato, então, ele só pode falar do que construiu em seu pensamento a respeito de um gato. Mas mesmo isto que ele construiu em seu pensamento acerca de um gato pode ser desconstruído, e passar por um novo processo de construção, posto que pertence ao homem a significação do gato.
As perguntas “o que é a vida para ser fabricada?” e “o que significa o ingresso da técnica moderna na espontaneidade da vida?” podem, segundo a compreensão que se fez até aqui, ter suas respostas mais ou menos esboçadas assim: a vida - tanto quanto um gato - é o que os homens concebem acerca de si mesmos e a fabricam porque fabricar é intrínseco ao processo de conhecimento. Os homens fabricam a vida, a verdade, a afetividade, a realidade e tudo mais. Usar a técnica para fabricar a vida é apenas mais um artifício que o homem utiliza para dar continuidade ao processo de conhecimento. Desta forma, pode-se pensar ainda que a vida é uma concepção dos homens, ou seja, que a vida é uma concepção construída na mente dos homens, ou ainda, que a vida é uma fabricação da mente humana. Mas, se é assim, por que o espanto diante do fato do homem fabricar a vida em laboratório utilizando-se da técnica moderna? O espanto não tem razão alguma para permanecer: a vida é uma concepção construída na mente dos homens e a técnica que constrói a vida é só mais um artifício de construção forjado pelo próprio homem com o fim de conhecer.
No entanto, apesar da resposta parecer dada, há muito o que se pensar. O pensamento duvidante de Descartes procura romper com toda forma anterior de acesso à verdade dando ao pensamento moderno a certeza de que o homem só pode conhecer aquilo que ele mesmo faz. Desta forma, mesmo o passado tem sido compreendido assim, a despeito de que esta forma de conhecer é, ela mesma, historicamente datada. Lenoble ao fazer uma história da idéia de natureza deixa implícito que a natureza sempre foi concebida como uma idéia sobre a qual os homens, nas diferentes épocas históricas, projetaram suas “necessidades e desejos”. Assim, ele afirma: “.... a Natureza que os gregos imaginaram e que nós lhe tomamos de empréstimo não era senão uma das idéias possíveis, não foi senão uma das idéias que efetivamente triunfaram”.[3] Coletar as diferentes idéias de natureza ao longo dos anos e alinhá-las sobre um mesmo pano-de-fundo permite ao autor fazer uma história delas onde, sobretudo, o que as une, ao ponto de poderem dispor-se lado a lado, é o fato de que são todas produtos da concepção dos homens que vivem projetando sobre o mundo suas representações acerca das coisas - de natureza, como é o exemplo. Em sendo assim, o próprio exercício que Lenoble faz é projecionista. Ele projeta sobre o passado o modo moderno de conhecer, ou seja, o modo que vai da introjeção do mundo na mente à representação que o homem faz do mundo introjetado à projeção desta representação do mundo onde, então, o que foi introjetado apresenta-se construído.
Como já foi visto, a verdade moderna é produzida pelos processos da mente. Sendo assim, mantém-se isenta dos enganos e, sobretudo, demonstrável e dotada de certeza. No entanto, por ser um produto da mente não remete àquele que conhece o mundo, mas sim a si mesmo. Produzindo o objeto de conhecimento em sua própria mente e submetendo este objeto às perguntas que sua mente formula, o homem produz um mundo de verdades demonstráveis e verificáveis. Nesta metodologia, ele produz os fatos em sua mente, da mesma forma elabora as hipóteses e a partir de suas hipóteses testa seus fatos. É como fala Arendt:[4] na modernidade a teoria virou hipótese e a confirmação da hipótese virou verdade. O que fica evidente, nesta situação, é que o homem está sempre lidando com uma realidade hipotética.
Ao testar suas hipóteses sobre seus próprios fatos a verdade aparece ao homem como adequação. Se o fato testado se adequa ao fato formulado em sua teoria então está produzida a verdade - e esta é, sobretudo, uma verdade demonstrável. Esta verdade produzida sobre uma realidade hipotética em nenhum momento é capaz de trazer a realidade em si mesma, muito embora esta realidade em si mesma não esteja sendo procurada pois ela foi deixada para trás - sob o domínio do Gênio Maligno - como uma impossibilidade, uma vez que não é dado ao homem conhecer aquilo que ele não faz, nem sequer o que ele não é.
No entanto, da mesma forma que uma realidade hipotética não é a realidade, uma idéia de natureza não é a natureza, assim como uma concepção pessoal de gato não é um gato e nem a vermelhidão do vermelho é o vermelho. Esta forma moderna de conhecer ao mesmo tempo em que se resguarda dos enganos promovidos pelo aparato sensorial e pela aparência das coisas, resguarda-se também do próprio mundo. Posto que, como pensa Merleau-Ponty “há um mundo”, o qual, segundo Arendt, antecede a chegada do homem e sucede à sua partida e onde a vida - esse “dom gratuito vindo do nada (secularmente falando)”[5] - apresenta-se em sua diversidade de espécies. Um mundo que não se mostra ao homem toda vez que ele apenas lida com a realidade hipotética, com o mundo introjetado na mente, submetido à regra da dúvida e livre dos enganos da percepção. Quanto a isto Arendt cita Merleau-Ponty: “reduzir a percepção ao pensamento de perceber ... é fazer um seguro contra a dúvida, cujos prêmios são mais onerosos do que a perda pela qual eles devem nos indenizar; pois é ... passar a um tipo de certeza que nunca nos trará de volta o há do mundo”.[6]
Mas diante de uma realidade hipotética como a única possível, como a única realidade que é dada ao homem conhecer em função do despreparo do aparato sensorial e do caráter ativamente enganador das aparências, como será procurar a realidade que não seja derivativa da impossibilidade de conhecer aquilo que o homem não fez e aquilo que ele não é? De toda forma, para se buscar esta realidade não construída pelo homem, é preciso que se admita que exista uma realidade que não seja produto de uma construção. É preciso que se admita, como Merleau-Ponty, que “há um mundo”. Ao caráter ativo de construir para conhecer, típico do pensamento moderno, existe uma outra forma de conhecer que, ao contrário, é passiva, não constrói para garantir confiabilidade, mas sim, assiste à revelação, o desocultamento que se dá na apresentação daquilo que vem ao mundo.
Na verdade, como adequação alguma coisa é aquilo que se ajusta a um enunciado sobre ela. O que dá a justeza entre a coisa e o enunciado acerca dela, no entanto, parece pertencer a um momento anterior à própria enunciação. O que permite a enunciação é algo anterior não só à própria enunciação como também à própria coisa enunciada. Sem este momento anterior, a verdade como adequação sequer poderia existir, pois para que a adequação aconteça é preciso que a coisa enunciada já tenha ocorrido - já tenha acontecido o momento anterior onde a coisa enunciada e o enunciado se dão, o que vale dizer, é preciso que já se conheça aquilo que por adequação se está, novamente, enunciando. Portanto, o que se enuncia assim ou é uma enunciação pretensamente corretiva ou modificadora. Em todo caso, porém, é sempre derivativa de algo que já ocorreu. Se, por exemplo, alguém fala de um gato que lhe aparece desta ou daquela forma e espera que seu interlocutor fale de como um gato possa, também, lhe aparecer, é porque aqueles que falam de seus gatos, em algum momento, já experimentaram o que é um gato, pois é a experiência que torna possível a eles fazerem a adequação do gato que há no mundo com o gato que eles construíram dentro deles mesmos.
O que há no mundo - um gato, por exemplo - , aparece em um lugar aberto, em um aberto que aquele que aparece traz consigo. Este aberto advém no ente, advém no que há no mundo.[7] No advento do aberto a verdade, a desocultação do ente, o vir à presença acontece. Esta desocultação, este acontecimento da verdade - ao contrário da verdade como adequação - não se dá ao máximo. Isto porque a ocultação ao mesmo tempo em que se oculta pode dissimular a si mesma no aberto em que advém; contudo a ocultação não é um negar-se à presença. Mesmo na ocultação o ente aparece, porém, em uma forma diferente do que ele é: “A ocultação pode ser um recusar-se ou apenas uma dissimulação. Nunca temos a certeza se é uma coisa ou outra. A ocultação oculta-se e dissimula-se a si mesma. Quer isso dizer: o lugar aberto no seio do ente, a clareira, nunca é um palco rígido, com o pano sempre levantado e sobre o qual o jogo do ente se representa. Antes, pelo contrário, a clareira acontece apenas sob a forma desta dupla reserva. A desocultação do ente nunca é um estado que está aí, mas sempre um acontecimento”.[8]
A verdade construída e que se dá por adequação não traz de volta o “há do mundo”, de outra forma, a verdade como revelação não resguarda o homem dos enganos dos sentidos. Sejam quais forem as características da verdade como adequação e da verdade como revelação, não se trata, de forma alguma aqui, de duas verdades. A verdade por adequação é derivativa de um acontecimento anterior, original, que se dá no aberto. Aberto, que como foi visto, advém no ente e instaura um mundo. Quanto à pergunta pelos critérios necessários para um diagnóstico de como se “localiza” o aberto, ou de quando se sabe se a verdade está ou não acontecendo, a resposta possível é que não há critérios. E não há porque buscar critérios de como se conhece é submeter aquilo que se quer conhecer a um método que elabora perguntas e espera respostas dentro do próprio padrão em que estas perguntas foram elaboradas e onde, novamente, a coisa que é como é não se mostra, ao contrário, o que assim se mostra é o método de elaborar perguntas e analisar respostas. Por não ser um “palco rígido”, a clareira em que advêm o ente, não está sempre à disposição para quem queira assisti-la. Ela se dá como um acontecimento, como revelação. A revelação, o vir à presença do ente, tanto pode recusar-se em seu ocultamento, como pode dissimular-se. O homem ao tentar proteger-se deste embate da ocultação, da dissimulação - onde o ente se dá de forma diferente do que é - e do acontecimento da verdade, cria, modernamente, seus próprios métodos de conhecê-la.
Ao criar seus próprios métodos de conhecer e, portanto, de construir a verdade, o homem recusa o que se procura compreender como dado. Recusa qualquer pensamento que se apóie na espontaneidade; recusa o que se denomina por curso “natural” da vida. No entanto, quando o pensamento, passivamente, entrega-se a si mesmo, ou seja, quando a atividade de pensar se exerce, o impensado do pensamento, que construiu para conhecer, surge. O impensado pode se desencadear por um espanto e aquilo que espanta o pensamento é mesmo o plausível, o ambiente familiar em que sempre se esteve de forma confortável. O impensado não mostra a falha, a incompetência de um pensamento, ao contrário, ele é a oportunidade que surge para o próprio pensamento exercitar-se. O impensado é um apelo ao pensamento que, por isso, o favorece. A afirmação que foi feita momentaneamente aqui, que o espanto que acometeu o pensamento diante do ingresso da técnica moderna na espontaneidade da vida estava diluído, se deu porque seguiu-se uma linha de raciocínio que o diluía, no entanto, este mesmo raciocínio foi quem apelou ao pensamento por uma nova consideração.
Esta nova consideração partiu da verdade como adequação e chegou à verdade como revelação. O espanto que desencadeou estas considerações feitas até aqui surge mais uma vez, não como um convidado a quem se repete o convite por se achar a presença dele agradável, mas sim porque na verdade nunca esteve ausente. Este espanto, a origem do pensamento destas considerações, se anuncia agora de uma forma ainda mais relevante, pois a espontaneidade da vida e seu curso natural vigoram para o pensamento que busca o mundo em sua espontaneidade e não a forma como o mundo aparece nos aparelhos de medição e nas representações que se fazem dele. A vida, que aparece e desaparece em um mundo que antecede à sua chegada e sucede à sua partida, apela ao pensamento ao parecer fundada sob o domínio da técnica que confere a ela características que lhe são totalmente estranhas. Nunca ocorreu a um ser vivo ter seu nascimento dado por “novas técnicas”, sejam elas, inseminação artificial ou multiplicação de embrião. Aliás, nunca ocorreu à vida ser dada por técnica alguma, seja ela nova ou antiga. A vida sempre apareceu no mundo a partir de si mesma, fundada em sua espontaneidade e, no entanto, isto não equivale a dizer que a vida possui uma “técnica natural”, pois seria o mesmo que já tomar por compreendidas tanto a vida como a técnica. Da mesma forma, seria o mesmo que apontar para uma diferença qualitativa entre duas coisas dadas por compreendidas - técnica natural e técnica artificial - e passíveis de comparação.
Sem que o pensamento se ocupe com as distinções feitas acima, torna-se possível dizer que a técnica moderna fabrica a vida onde os meios para tal fabricação são dados pela ciência. Mas, ao usar a técnica para fabricar a vida, a ciência moderna se empenha em saber como a vida é feita para poder copiá-la e introduzir-lhe novos elementos. No entanto, esta resposta, que conhece como a vida é feita e como ela pode ser reproduzida através da técnica, não responde à pergunta que apela ao pensamento: o que é a vida para ser fabricada pela técnica moderna?
Notas
[1] Lenoble, Robert. História da Idéia de Natureza. Lisboa, Ed.70, 1990.
[2] Arendt, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro, Forense Universitária,1989: 290.
[3] Lenoble, Robert, 1990: 54.
[4] Arendt, Hannah, 1989: 291.
[5] Arendt, Hannah, 1989: 10.
[6] Arendt, Hannah. A Vida do Espírito. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1992: 39.
[7] “Aberto”, para Heidegger, não é a utilização de uma palavra inusitada e que aparece em sua linguagem para que cada leitor faça uma compreensão subjetiva do que lê. Ao contrário, Heidegger nomeia por aberto um acontecimento. O inusitado do emprego desta expressão fica por conta de uma tentativa do filósofo em fugir à sedimentação de significados que a linguagem recebe ao longo do uso e que não auxilia a compreensão.
[8] Heidegger, Martin. A Origem da Obra de Arte. Lisboa, Ed.70, 1990: 43.