Estudos Sociedade e Agricultura
Marivânia Conceição de Araujo
A linguagem segundo Berger, Luckmann e Castoriadis
Estudos Sociedade e Agricultura, 3, novembro 1994: 189-193.
Marivânia Conceição de Araujo é mestre pela UFRRJ/CPDA.
Ao discutirem temas como o pensamento, a vida cotidiana, a percepção e a expressão, Castoriadis, Berger e Luckmann evidenciam a relevância da linguagem na construção social da realidade, concebendo-a como o mais importante sistema de sinais da sociedade humana.
Em Castoriadis podemos entender porque a linguagem pode relacionar-se com a discussão de temas tão diferentes. Segundo ele, a reflexão da linguagem é simultaneamente "reflexão dos últimos e primeiros problemas da filosofia; não porque ela os reabsorve, mas, exatamente ao contrário, porque é a sua encruzilhada privilegiada que se espalha em todas as direções" (Castoriadis, 1978: 136).
Nos processos de socialização e individualização a linguagem é um fenômeno primeiro, anterior até mesmo ao pensamento, pois este só se faz possível através dela; não se podendo pensar sem uma estrutura lingüística que expresse sentimentos, dúvidas ou conceitos. Ao contrário de Husserl, que julgava haver um pensamento puro, anterior à linguagem, Castoriadis, seguindo a Merlau-Ponty, é categórico: "só se pode pensar se se recebe uma linguagem" (Castoriadis, 1978: 137). Neste sentido, a linguagem é conformadora da ação. É anterior e primordial para todas as atitudes.
A linguagem é um elemento da cultura. Este elo entre sociedade e linguagem é visto pelos autores de diferentes maneiras. Para Castoriadis, "toda organização da língua apóia-se na organização do mundo, pois ela se apóia necessariamente no invisível do visível" (Castoriadis, 1978: 141). A língua expressa o significado do visível, o valor simbólico que ele possui, sua relatividade, que varia de acordo com a cultura, assumindo diversos significados. Castoriadis observa ainda que a língua "não organiza somente um mundo natural, ou seja, perceptivo, mas faz existir um mundo histórico e faz os dois de uma só e mesma vez. Mesmo a possibilidade de tratar o mundo como junção de coisas ‘puras e simples’, desencantadas e manipuláveis à vontade, mesmo essa possibilidade só existe no mundo; mas ela não pode ser efetivamente sem uma dada organização do mundo social-histórico cujas figuras centrais são a racionalidade medíocre, a operação, a manipulação aplicadas simultaneamente aos homens e às suas relações, às coisas e evidentemente à própria língua, prática e na pretensa teoria. O que a língua como língua exprime, portanto, é também a socialidade-historicidade." (Castoriadis, 1978: 144).
No mesmo sentido, Berger e Luckmann sustentam que a linguagem "marca as coordenadas de minha vida na sociedade e enche esta vida de objetos dotados de significação." (Berger e Luckmann, 1980: 39).
A importância da linguagem também decorre do fato de que ela faz existir o mundo, organiza-o como mundo histórico, perceptivo e formado como "natural"; uma organização do mundo sociohistórico, cujas figuras centrais são a racionalidade, a operação, a manipulação aplicadas simultaneamente aos homens e às suas relações, às coisas, e, evidentemente, à própria língua.
Assim como o pensamento, a percepção só é possível se posterior às significações ligadas à linguagem; Castoriadis observa que: "a própria percepção é instituída, uma vez que a linguagem só pode deitar ‘raiz
num mundo sensível que já havia deixado de ser mundo privado’, uma vez que, clássica ou não, há sempre de uma forma qualquer, uma perspectiva e que esta não é uma lei de funcionamento da percepção, que ela depende da ordem da cultura, que ela é uma das maneiras inventadas pelo homem de projetar diante dele o mundo percebido e não o decalque desse mundo" (Castoriadis, 1978: 145).
Pode-se interpretar a percepção como a apreensão da realidade, seja objetivada ou subjetivada. Na percepção o que conta é a significação do objeto ou a das emoções. Ela é o elemento diferenciador no mundo dos objetos e no mundo das emoções. A percepção é um meio através do qual o homem pode entender o mundo e o faz baseado na linguagem. Neste sentido, a linguagem fala de um mundo social que permeia toda interpretação e percepção que se tem dos objetos e suas situações subjetivas. Em tal contexto, pensar, perceber e ter consciência tornam-se fenômenos interligados e existentes somente através da linguagem. O pensar pode ser visto como uma ação de perceber, entender ou ter uma consciência do mundo, que por sua vez (numa relação dialética) também se organiza, e, por vezes, se cria a partir da ação de pensá-lo.
Ao analisarem o conhecimento que dirige a conduta na vida cotidiana, mais precisamente, o conhecimento da realidade no senso comum, Berger e Luckmann também revelam a importância da linguagem, inclusive definindo o mundo da vida cotidiana como "um mundo que se origina no pensamento e na ação dos homens comuns, sendo afirmado como real por eles" (Berger e Luckmann, 1978: 36).
Na vida cotidiana, a linguagem mostra sua capacidade de comunicar significados que não são expressões diretas da subjetividade "aqui" (de meu corpo) e "agora" (do meu presente), quer dizer, da realidade da vida cotidiana. Pode-se também falar de assuntos que não fazem parte do "agora", que não foram experimentados ou sequer vistos. A linguagem tem a capacidade de guardar acumulações de significados e experiências, prevendo e transmitindo essas experiências às futuras gerações. Tal fato ocorre pela transcendência da linguagem que se destaca do presente, indo ao passado; ela pode "tornar presente uma grande variedade de objetos que estão espacial, temporal e socialmente ausentes do aqui e agora" (Berger e Luckmann, 1978: 60).
A linguagem fala ao outro, expressa inúmeros significados e torna acessível àquele que fala o seu próprio ser. No momento em que ele fala ao outro, a linguagem torna visível a sua subjetividade, não somente ao seu interlocutor, mas também a si próprio, sendo um instrumento de reflexão do sujeito sobre ele mesmo. A reflexão do indivíduo leva a uma diferente forma de transcendência; através do pensamento, da objetivação lingüística, torna possível experimentar um mundo, fantasioso ou não, contemporâneo ou não.
A linguagem compõe-se de campos semânticos que dizem respeito à significação das palavras, gestos, expressões, construídos a partir da experiência histórica e que podem ser objetivados, conservados e acumulados. Existem campos semânticos referidos à vida profissional, aos conhecimentos técnicos, artísticos, esportivos, brincadeiras etc.; campos que variam infinitamente de sujeito para sujeito. Acionados oportunamente na vida cotidiana explicitam a interação com os demais sujeitos; dão sentido à ação que está sendo desempenhada; esteja esta última ligada às relações propriamente sociais ou à reflexão isolada.
Assim, para Berger e Luckmann, o homem vive no mundo do senso comum da vida cotidiana equipado com corpos específicos de conhecimento que se expressam através do campos semânticos. Outros homens partilham desse conhecimento, de modo que assim a interação entre os indivíduos na vida cotidiana se vê afetada pelas suas participações comuns no acervo social disponível do conhecimento. Isto é, os homens interagem e partilham constantemente de um mesmo conhecimento.
Já os corpos específicos de conhecimento, inúmeros e distintos, formam uma linguagem própria, que é partilhada pelos indivíduos de cada grupo. Num exemplo simples: "não falo" sobre assuntos como a dança moderna americana ou dos avanços científicos realizados na área da reprodução de trutas no Brasil, visto que eles não fazem parte da minha vida cotidiana. Ou seja, não tenho conhecimento específico sobre estes temas; o que tenho é "um conhecimento receitado" (Berger e Luckmann, 1978: 63), que lhe é distinto e refere-se aos meus propósitos pragmáticos, presentes e futuros. Os conhecimentos ligados à dança moderna e à criação de trutas não estão armazenados em meus campos de conhecimento e à minha linguagem, embora, se me interessar, seja possível acumulá-los. Não possuo um interesse pragmático sobre eles, pois não estão inseridos no mundo em que atuo; o mundo em que trabalho, que vivencio e que tenho condições de transformar. "Não falo" sobre eles na medida em que não tenho conhecimento das expressões que fazem parte de seu corpo semântico.
É possível, através da análise do discurso de um grupo, inferir algumas características de sua estrutura social, uma vez que a linguagem constitui a identidade social enquanto grupo. A linguagem opera como um elemento primordial para o incremento da coesão dos indivíduos num grupo específico e para a sua delimitação com relação aos demais grupos. Delimitação que pode expressar-se através de mitos, hábitos, valores morais, organização familiar, divisão sexual e social do trabalho, ritos religiosos, etc. Expressões sociais que são legitimadas, reproduzidas e transmitidas.
Em suma: a linguagem é capaz de expressar infinitas idéias e informações, indo além da vida cotidiana, do "aqui e agora". É capaz de levar às novas gerações o que foi vivenciado pelas mais antigas, permitindo uma manutenção do que foi construído, ou criando as condições para possíveis transformações. Ela vai além do que é falado, organiza pensamentos; faz-se presente nos sentimentos e nas percepções. Se é possível sentir sem o auxílio das palavras, já a reflexão sobre este sentimento, no entanto, sempre se relaciona com a linguagem, que não se constitui isoladamente, mas contém elementos que envolvem a socialidade-historicidade do indivíduo e de seu grupo social; antecede não só aos sentimentos, percepção e ao pensamento; é próprio do indivíduo presente; chega a ele como uma herança de seus infinitos antepassados.
Bibliografia
Castoriadis, C. "O dizível e o indizível. Homenagem a Maurice Merleau-Ponty". As encruzilhadas do labirinto\1. Rio de Janeiro, Paz e Terra, l978.
Berger, P. e Luckmann, T. A construção social da realidade. Petrópolis, Vozes, l980.