Estudos Sociedade e Agricultura
Antônio Carlos Nogueira
Multimídia na universidade
Estudos Sociedade e Agricultura, 3, novembro 1994: 72-77.
Antônio Carlos Nogueira é professor da UFRRJ/CPDA
1. Introdução
O oferecimento de um tópico especial para o mestrado em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade – CPDA/UFRRJ – sob o título “Multimídia e Comunicação”, por ousadia do coordenador da área de Sociedade e Agricultura, professor Roberto Moreira, trouxe algumas surpresas que me incentivam a convidar a comunidade universitária a uma reflexão sobre a dissonância entre a era da informação em que nos encontramos – queiramos ou não – e a educação da era industrial ou mesmo pré-industrial que praticamos. Para provocar: estamos educando para o nosso passado ou para o futuro dos estudantes? Não sabemos sequer quais serão as profissões do futuro, mas podemos saber que quase todas elas vão exigir intimidade do profissional com tecnologias que a humanidade desenvolveu e o fenômeno da globalização introduziu nas mais diversas partes do mundo. Mesmo em uma realidade cruel como a nossa, em que uma grande parte da população passa fome e a maioria não tem acesso aos bens culturais que garantam uma efetiva cidadania, a era da informação está plenamente presente. Temo que a universidade não esteja conseguindo sequer acompanhar as conquistas da sociedade junto à qual deveria exercer papel de vanguarda. O tema aqui discutido parece navegar em espaço diferente dos modismos acadêmicos da interminável galeria dos “aqui jaz” e não deve ser um ataque explícito de tecnotesão. Seu foco pode ser dado na construção do conhecimento do professor e do aluno como processos fundamentais e indissociáveis. O princípio defendido é que preparar melhor estudantes e professores, hoje, é dar a eles a habilidade para renovar continuamente a sua compreensão de um mundo em mudança. Para isso, é necessário torná-los aptos a descobrir e sistematizar conhecimentos por eles mesmos. Em tese defendida na USP em 1992 a multimídia é mostrada como uma tecnologia que pode ser internalizada por professores e estudantes como uma forma de pensar, organizar e recuperar um conteúdo, mesmo que os meios e tecnologias efetivamente disponíveis em sala de aula não permitam um trabalho interativo, ou seja: a tecnologia multimídia é um caminho para mudança de paradigma educacional, mas a questão é mais conceitual do que tecnológica (Nogueira, 1992).
2. Multimídia na construção do conhecimento
A multimídia é um dos recursos educacionais para permitir a construção do conhecimento de forma interativa e não-linear, combinando textos gráficos, animações, sons, imagens paradas e em movimento. Ela pode oferecer a estudantes e professores um espaço simples e aberto para estudo e criação, em busca de uma visão ampla a respeito do tema em estudo, com a possibilidade deles próprios controlarem seu ritmo de trabalho, a seqüência e os objetivos de seu aprendizado.
Importantes vertentes nas áreas da aprendizagem e do ensino apontam para a criação de sistemas educacionais abertos, que estimulem a organização do conhecimento de modo a permitir uma visão abrangente, integradora, do tema em estudo. São métodos de trabalho que valorizam a inovação e a descoberta no lugar de respostas “certas” e fortalecem a integração entre os alunos e com o professor. “O melhor ensino”, diz Seymour Papert, “não surgirá a partir de melhores meios para o professor instruir, mas dando ao estudante melhores oportunidades para construir” (Papert, 1990). Aqui Papert dá o enfoque correto no processo de aprendizagem, mas exagera na ênfase, ao fazer uma exclusão que nega o enorme potencial que representa para a educação também os “melhores meios para o professor instruir”.
Na era da informação, em que a sua quantidade e diversidade exigem muita racionalidade em termos de seu armazenamento, tratamento e recuperação, o conhecimento levado até a sala de aula ainda é predominantemente escasso e desorganizado. E as atividades das mais diversas disciplinas tratadas na universidade – sobretudo quando se busca o trabalho interdisciplinar – não podem, prescindir de uma visão mais integradora do que os limites de um tratamento linear de informações. Aprender a aprender passou a ser muito mais importante do que os fatos ou conceitos adquiridos pelo aluno. Assim como o surgimento da imprensa revolucionou as bases do ensino, a era da informação exige nova dimensão a seus métodos. Não se pode mais limitar a educação a um único veículo de comunicação – a linguagem escrita – em uma sociedade que se caracteriza, cada vez mais, pelo uso de diversos meios. Se cada mensagem cognitiva tem seu valor especial e elas se combinam, de formas muito variadas entre os indivíduos, seria um erro ficar preso às mensagens de um único meio. “os educadores, inclusive eu”, diz Greenfield, “tem uma tendência a serem esnobes, letrados, lastimando ter passado a época em que as pessoas realmente sabiam ler e escrever” (Greenfield, 1988). Pesquisa coordenada por Howard Gardner, da Universidade de Harvard mostrou que cada um de nós tem componentes de sete inteligências distintas, qualquer uma delas podendo ser nossa inteligência dominante (Gardner, 1983). Um sistema educacional que ensina a cada uma dessas inteligências respeita o estilo de pensamento de cada indivíduo. São elas: lingüística, lógico-matemática, intrapessoal, espacial, musical, corporal-cinestésica e interpessoal. Embora cada pessoa possa ter predominância em uma dessas inteligências, todos temos algum grau de capacidade nas outras seis. Pesquisa e técnicas de aprendizagem acelerada têm mostrado que os estudantes podem aprender novos temas a taxas extraordinárias, quando colocados em ambiente adequado. A diferença é justamente o ensino estar direcionado a todas as inteligências. Nossa tendência é ensinar para as inteligências lingüística, lógico-matemática e intrapessoal e ignorar as demais, com sérias conseqüências: desconsiderar as necessidades do aluno cuja inteligência dominante não é uma das três e perder a chance de validar e desenvolver as outras inteligências em todos os alunos. Inúmeras pesquisas reiteram a evidência: quanto maior a diversidade de meios em que um tema é apresentado, mais ele é aprendido e relembrado. Na construção do conhecimento devemos estar atentos, portanto, para a necessidade não só de haver uma multiplicidade de problemas que despertem os diversos interesses dos alunos, como também os meios devem ser suficientemente ricos para abrangerem as diversas cognições. A passagem à multimídia, às inferências sobre o conhecimento, toca diretamente ao que nos interessa em educação: o domínio do pensamento, do raciocínio e da aprendizagem. Ela nos obriga a retornar aos fundamentos da educação: o processo de ensino-aprendizagem deve propiciar aos alunos construírem originalmente suas soluções. Alguns pontos devem, portanto, estar presentes quando se leva em consideração essa proposta: a valorização, como base para o caminho a seguir, dos saberes, vivências e interesses dos alunos. Não há modelos de solução: a criatividade é a mola-mestra, o professor pode ser efetivamente “um guia ao lado, não um sábio no palco” e o aluno ser e se sentir o construtor de seu próprio conhecimento. O desenvolvimento do espírito crítico é a principal conseqüência dessa postura.
Dentre os recursos educacionais oferecidos pelas novas tecnologias de comunicação, a multimídia aparece como a forma mais completa de organizar as informações e combiná-las de forma não seqüencial. Sistemas assim construídos permitem criar e manter conjuntos de textos, fotografias, filmes, animação, voz ou música, conectados em forma de rede, na qual cada nó contém um trecho de informação e cada elo entre dois nós representa um relacionamento entre a informação neles contida. O monitoramento por computador de toda essa gama de materiais permite diferentes formas de organização dos documentos, representando as necessidades de distintos públicos a que se destinam. A grande vantagem em relação aos sistemas lineares de organização é a facilidade que tem o usuário de “folhear” os diversos documentos e “navegar” entre os elementos da rede. Usando as ligações de multimídia, podemos configurar nosso conhecimento em um conjunto coerente e conjugar idéias que melhor representem a realidade. Sabemos que o conhecimento humano não é linear e forma um entrelaçamento em diversos campos. Da mesma forma, ao tratarmos de um tema específico, podemos colocar à disposição de estudantes e professores todo um conjunto de textos, sons, imagens estáticas e em movimento, com possibilidades de ligações e associações em todas as direções e não apenas em uma seqüência unidimensional. Portanto, o termo multimídia significa mais que uma justaposição de meios – o monitoramento por computador permite que os diversos meios se interajam de forma dinâmica e instantânea. Usando multimídia, estudantes e professores poderão associar idéias e imagens de forma mais natural, por ser mais próxima ao modo como funcionam nossas mentes. A proposta é que o usuário veja além do que proporciona a leitura de um texto: use os recursos audiovisuais para aprofundar determinada seqüência de análise, proponha modificação de variáveis, recupere opiniões divergentes, interaja com elas, coloque sua própria opinião, isole e analise componentes, comente, simule processos e faça roteiro de estudos. Os estudantes podem ter, ao mesmo tempo, acesso a uma rica experiência de aprendizado: como lidar com situações criativas, onde nem sempre existem respostas “certas” ou “erradas”, o que deve contribuir para torná-los mais flexíveis, abertos, responsáveis e confiantes.
Mesmo para quem considera o processo de construção mais importante do que o produto, parece exagerada a ênfase de alguns educadores, que falam da inutilidade de materiais, de produtos para o ensino. Eles são fundamentais e quanto mais diversificada por sua oferta maiores chances teremos, em um ambiente de aprendizagem, de tomar decisões inteligentes de caminhos a seguir. Mas a simples produção de material didático e introdução de novas tecnologias não internalizadas pelos professores, tomando ares de produtos feitos para que os alunos prescindam dos guias a seu lado, estão, como sempre estiveram, fadadas ao fracasso no processo de ensino-aprendizagem. Exige-se do professor um papel inteiramente novo e isso pode gerar resistência. Mudança pode significar perigo ou um trabalho a mais, um desgaste a mais para uma categoria que foi notoriamente desprestigiada nas últimas décadas. Mas se mantivermos o propósito de preparar os estudantes para o seu futuro – e não o nosso passado --, devemos buscar educá-los para a era da informação e não será com os instrumentos educacionais pré-industriais que vamos atingir esses objetivos.
Devemos banir a falácia de que, dada a pobreza da nossa população, podemos rebaixar suas exigências e suas possibilidades, deixando a escola na era pré-industrial em que se encontra. O descaso da sociedade e dos poderes constituídos pela educação é escandaloso em nosso país e a realidade amedronta muitas pessoas que acham importante e urgente o trabalho em tecnologias de ponta “de primeiro mundo, longe da nossa realidade”, como afirmam muitos. Mas essa verdade é traiçoeira, por imobilizante. Nosso país é miserável em índices sociais. Mas não é por isso que devemos permanecer condenados ao imobilismo, à crença de que a educação deva permanecer com a qualidade e quantidade medíocres como largamente predomina da educação infantil aos cursos superiores. A educação, no Brasil, está atrasada em tudo e, como em toda a sociedade, são inúmeras as frentes que devem ser atacadas de forma simultânea, incluindo a tentativa de domesticação, de internalização e barateamento do acesso a tecnologias que a humanidade já desenvolveu e que estão permitindo uma visão mais holística do mundo, ao contrário da visão cartesiana que predominou nos últimos séculos. Devemos verificar como funcionam essas tecnologias com a nossa cara, tropicalizadas, adaptadas à nossa realidade, reconstruídas por estudantes e professores.
Aprendemos com Sócrates que o diálogo pode levar as pessoas a descobrir coisas profundas e sábias. No diálogo nasce o “homem libertando-se”, do qual nos fala Paulo Freire. É fundamental que professores e estudantes tenham claro que dispõem de formas de simplificar informações, criar novas proposições e aumentar a manuseabilidade de um conjunto de conhecimentos, podendo utilizar o saber gerado por diversas linhas de pensamento e chegando a uma visão mais abrangente, por superação. E que possam expressar-se, expressando o mundo, comunicando. Como fazer? É possível o professor preparar os seus sistemas multimídia adaptados para aquele semestre e aquela turma, mas é possível muito mais e melhor: o professor construir naquele semestre com aquela turma. De toda forma o professor é o elo inteiramente fundamental e insubstituível. Ele e seus alunos devem estar preparados para fazer uma leitura crítica da base de conhecimentos com a qual trabalham – e o processo de construção é o momento mais rico para essa leitura crítica. Levar o professor a se sensibilizar com novas possibilidades de ensino-aprendizagem e a se capacitar para construir com os alunos esses novos caminhos é o objetivo maior de se trabalhar multimídia na educação em todos os níveis, com destaque para a criação de ambientes adequados de aprendizagem onde a vastidão do universo de conhecimento exige: a universidade.
Bibliografia
Babin, Pierre e Kopuloumdjian, Marie-France. Os novos modos de compreender: a geração do audiovisual e do computador. São Paulo, Paulinas, 1989.
Freire, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985.
Gardner, Howard. Frames of mind. New York, Basic Books, 1983.
Greenfield, Patrícia M. O desenvolvimento do raciocínio na era da eletrônica – os efeitos da TV, computadores e videogames. São Paulo, Summus, 1988.
Nogueira, Antonio Carlos. Hipermídia na construção de um conhecimento: seres vivos e meio ambiente. Tese de doutorado apresentada à USP, São Paulo, 1992.
Papert, Seymour. Introduction. In Harel, Edit, ed., Constructionism Learning. Cambridge, The Media Laboratory, MIT, 1990.