Estudos Sociedade e Agricultura
Luiz Inácio Gaiger
As condições socioculturais do engajamento no MST
Estudos Sociedade e Agricultura, 13, outubro 1999: 70-92.
Resumo: (As condições socioculturais do engajamento no MST). Explorando dados do Rio Grande do Sul, o trabalho enfoca a adesão dos trabalhadores rurais ao MST. Primeiramente, a opção pelo MST é vista como um passo de uma trajetória social, na qual valores e convicções terminam por constituir objetivos de vida e um estilo de conduta, marcado pela insistente busca de oportunidades com a qual os sem-terra reagem à derrocada da economia parcelar. Uma segunda abordagem indica que o engajamento decorre de um estado de dissonância entre expectativas e a situação de vida, na esperança de suplantar esta última. Circunstâncias próprias da luta, como a exclusividade dos benefícios aos indivíduos mobilizados e a força de alinhamento do MST, explicam enfim porque o engajamento, uma vez assumido, tende a perdurar, sem no entanto garantir a unidade requerida pela reorganização coletiva da vida econômica e social.
Palavras-chave: MST; ethos de classe; engajamento
Abstract: (The Motives of Struggle: the Socio-cultural Factors behind Involvement in the MST). Exploring empirical evidence in Rio Grande do Sul, this work focuses upon the adhesion of rural workers to the MST. Firstly, joining the MST is viewed as part of a social trajectory in which values and fundamental convictions are seen to constitute objectives in life and a style of conduct, characterized by the constant search for opportunities with which the landless fight against the divided economy. A second approach shows that engagement attempts to equate a dissonance between expectations and the reality of life with the hope to change the latter. Circumstances of the struggle, such as the exclusivity of the benefits to the mobilized individuals and the force of alignment of the MST explain why the engagement, once assumed, serves to endure, without however guaranteeing the unity required for the collective reorganization of economic and social life.
Key words: landless movement; class ethos; political militancy.
Luiz Inácio Gaiger é professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e pesquisador do Cedope.
Entre os diversos ângulos pelos quais se pode entender o ascenso das lutas sociais no campo, nos últimos 15 anos, este trabalho focaliza um dos elementos decisivos da perdurância e do êxito do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra: a adesão contínua e consistente que obtém entre as camadas sociais mais empobrecidas do campo.
Referenciando-se em investigações empíricas, relativas às lutas pela terra no Sul do país, o texto desenvolve um conjunto de teses a esse respeito. Seu objetivo primordial, no entanto, não é propriamente demonstrá-las, mas evidenciar a pertinência do enfoque que propõe sobre o tema, em seus fundamentos teóricos e em suas possibilidades interpretativas. Mais exatamente, visa apontar o valor heurístico de uma linha de abordagem, apoiada em diferentes vertentes teóricas, que relaciona o engajamento no MST às condições culturais específicas dos sem-terra, atinentes à sua trajetória e à sua posição social.
Num primeiro momento, a opção pelo MST será analisada como um passo a mais no percurso trilhado pelos trabalhadores rurais, ao longo do qual valores e convicções fundantes vieram a constituir objetivos de vida e um estilo de conduta singular, perceptível na insistente busca de oportunidades com que os sem-terra reagem à derrocada da economia parcelar. A insuficiência de alternativas, nas condições próprias dessa categoria social, gera um descontentamento e uma receptividade à ação coletiva, em razão dos seus resultados efetivos e, por outro lado, da retórica persuasiva do MST. Numa segunda inflexão teórica, essa atitude será compreendida como um meio, para os sem-terra, de equacionar um estado de dissonância entre expectativas e situação de vida, num momento ímpar em que se acham movidos por uma esperança inabalável de suplantar sua realidade de privações. Na conclusão do texto, as circunstâncias próprias da luta, como o caráter irreversível do engajamento, a exclusividade das conquistas do MST aos indivíduos mobilizados e a força de alinhamento do movimento, serão consideradas para explicar porque o engajamento, uma vez assumido, tende a perdurar e a sustentar as táticas de ação pela conquista da terra.
Este artigo faz parte de um trabalho de teorização e de análise mais amplo. Ao abstrair vários outros aspectos, sem dúvida relevantes à compreensão do MST, o faz apenas por razões metodológicas, no sentido de alcançar maior clareza e profundidade na linha de problematização em vista. Pelo mesmo motivo, os dados empíricos trazidos ao texto o são a título ilustrativo, como apoio à argumentação. Eles permanecem, em seu conjunto, subjacentes à perspectiva de interpretação proposta.
O material empírico que fundamenta o trabalho provém principalmente de uma pesquisa de campo realizada no Rio Grande do Sul, em 1988; portanto, num tempo e num espaço social específicos [1] . Pesquisas ulteriores, entre 1993 e 1998, indicaram que as condições de recrutamento do MST não sofreram alterações que invalidassem as teses inicialmente levantadas. A evolução dos fatos redimensionou o peso de determinadas situações e deu destaque a novos atores, mas a opção pela luta supõe o acionamento dos mesmos mecanismos essenciais, ao menos quando se observa a realidade do MST a partir da sua base social. Este é ponto de partida e o fio condutor das considerações que seguem.
Os itinerários de vida, da roça ao acampamento
Muito embora o perfil social dos ingressantes no MST seja conhecido em linhas gerais, conviria caracterizar brevemente nossa base empírica de referência [2] , como forma de melhor identificar os caminhos percorridos pelos sem-terra, até sua chegada ao acampamento. Assim, será possível perceber como a posição social desses indivíduos, ao gerar disposições culturais próprias, mediadas por fatores como a etapa da vida e do ciclo familiar, lhes confere uma determinada capacidade de ação social, sobre a qual assentam seus passos e suas estratégias.
Considerando inicialmente a etapa de vida dos sem-terra, percebe-se que se trata de uma população jovem, com tendência a predominar a faixa etária inferior a 30 anos, especialmente entre a população há pouco ingressada nos acampamentos. O número de filhos cresce com a faixa etária dos pais, com um nítido incremento entre os casais jovens assentados, indicando que a opção pela luta coletiva coincide, via de regra, com a busca dos meios para a constituição de um novo núcleo familiar.
Os indicadores econômicos, como esperado, posicionam os sem-terra entre as camadas sociais mais pobres do campo. Comparando-se os dados dos informantes com aqueles dos seus pais, observa-se que o processo de expropriação intensifica-se de uma geração a outra: a condição de minifundiários, majoritária entre os progenitores, cede lugar, na geração seguinte, àquelas de pequeno arrendatário, meeiro ou assalariado rural. Trata-se, nitidamente, de um caso de mobilidade social descendente, agravado pelo fato de menos de 20% dos pais disporem de propriedades acima do módulo rural e, entre os sem-terra engajados no MST, de apenas 17% terem logrado adquirir um lote, geralmente ínfimo, em algum momento de sua vida. Essa cifra cai vertiginosamente com a diminuição da idade, enquanto aumenta a proporção daqueles que trabalham com os pais, portanto numa condição precária e forçosamente transitória. De um modo ou de outro, a curva de empobrecimento mostra-se irreversível através das estratégias habituais, o que significa, para a maioria, deparar-se, cedo ou tarde, com a miséria e a indigência. [3]
Colocando-se esses dados numa perspectiva diacrônica, pode-se inferir uma tendência à juvenilização e à pauperização dos ingressantes no MST, sem que fatos ulteriores levem a presumir por sua descontinuidade ou alteração de rumo. [4] Uma população jovem, almejando constituir um novo lar e garantir seu futuro como agricultores, privados, no entanto, da base material e dos recursos monetários indispensáveis, presos num circuito de empobrecimento e carecendo de conhecimentos formais e técnicos elementares, eis o perfil do agricultor meridional sem-terra, os traços que balizam sua longa caminhada até o protesto e a luta social.
A esse respeito, os relatos colhidos em campo exprimem, de diferentes formas, uma mesma busca de adaptação às condições sociais instáveis e uma mesma resistência aos obstáculos, cada vez maiores, que tais mudanças acarretam à sua sobrevivência e à sua reprodução social. Poucos entre eles não conheceram, desde sua infância ou juventude, a carência material, a insegurança e o assujeitamento, problemas que invariavelmente associam à insuficiência ou à privação da terra, de cujo cultivo –dizem eles– teriam retirado o necessário à subsistência e a uma vida menos dependente.
Salvo casos excepcionais, manifesta-se nessas narrativas que a reação dos agricultores à derrocada do seu sistema de vida operou-se, de início, segundo as regras do jogo. Não obstante a precariedade e a insuficiência de recursos para garantir seus interesses, durante anos acreditaram na possibilidade de beneficiarem-se de algum golpe de sorte, ou de soerguerem-se pelo contínuo e obstinado esforço pessoal. Ao mesmo tempo, confiaram nas promessas e nos programas oferecidos pelo Estado, dos tempos do populismo até a chegada ao poder, em 1985, dos antigos opositores ao regime militar. Por muito tempo, a opção adotada para vencer a privação, não obstante uma desconformidade latente, foi a lealdade [5] ao sistema social.
No entanto, os problemas apenas fizeram agravar-se: ou era chegado o momento de casar-se e constituir um novo lar, ou a prole aumentava com os anos e, com ela, o excedente de força de trabalho e as necessidades de consumo. Piorando as coisas, os contratos de meia e de arrendamento muitas vezes não se renovavam, ao passo que os proprietários de parcos hectares, não raro, tinham sua terra confiscada por dívidas e os empregos sazonais, por sua vez, escasseavam e remuneravam cada vez mais irrisoriamente. Aos casos de morte precoce ou de invalidez no grupo familiar, num quadro geral de penúria, somavam-se o aviltamento e a dureza impostos pela obrigação de trabalhar para outrem: nós passamos todo esse tempo gastando e trabalhando para os outros... a gente só fez para os outros.
Por outro lado, o agricultor ressente-se do abandono e da manipulação do poder público. A adesão aos projetos de colonização, nos anos 70 e 80, é exemplar (Santos, 1993): sonhando tornarem-se médios ou grandes proprietários, nas terras virgens do cerrado ou da Amazônia, tendo para isso investido suas economias, inúmeros colonos viram-se, alguns meses mais tarde, completamente abandonados, sem meios de garantir sua sobrevivência e sem outra escolha, muitas vezes, senão trocar seus títulos por uma passagem de regresso e retornar, cabisbaixos, aos seus municípios de origem.
Coagidos, humilhados, descrendo na vida no campo, muitos entre eles partiram para a cidade, ou saíram a correr mundo. Assim fazendo, deixaram a condição de agricultores familiares, optaram pelo abandono dessa forma de vida, ao menos temporariamente. Nas entrevistas, o êxodo rural é relatado como uma alternativa dramática, uma perda irreparável, difícil de aceitar como definitiva. A atração da cidade parece algo secundário em relação aos fatores objetivos que obrigaram os sem-terra a migrar. No entanto, ao culminar em novo fracasso, este ato termina aumentando a aversão ao mundo urbano, ao qual se associam a insegurança, a mendicância e a submissão: infelizmente, foi na cidade que eu me dei pior do que nunca! Porque eu não tinha sido nunca um pedreiro, um carpinteiro... eu não tinha nenhuma profissão.
Como, porém, no campo as coisas não vão melhor, cada um termina por compreender, mesmo sem aceitá-lo inteiramente, que nos dias atuais a sorte reservada ao trabalhador rural é a pobreza e a dependência. Volta-se então a uma estratégia de subsistência, ao pragmatismo. O agricultor pragmático desconfia das promessas de mudança das autoridades e das instituições que chegam à sua porta, recusa-se a assumir riscos e, tanto quanto possível, busca defender-se pelos únicos meios de que dispõe: a intensificação do trabalho e a abdicação gradativa de suas aspirações.
Os itinerários dos sem-terra constituem, desse ângulo, variantes de um percurso movido pelo descontentamento frente a sucessivas privações. A conduta que adotam revela, em proporções variadas, um misto de insatisfação e de assentimento, algo a contragosto, diante dos fatos. Na falta de escolha, eles se resignam, mas não se conformam. Após tantas esperas e tentativas –eu me virei do jeito que podia– guardam a convicção de se haverem batido e feito o que era possível: eu lutei e eu nada consegui na vida.
O pragmatismo da base social do MST não implica, portanto, a aceitação sem mais da pobreza, nem a passividade como norma de conduta. Ele indica, antes, uma carência de meios para contrapor-se, de modo eficaz, à marcha dos acontecimentos. A luta, individual e silenciosa, que precedeu a entrada num acampamento, gerou um sentimento de injusta privação e de reprovação da ordem social –de tanto ir pr’á cima e pr’á baixo, a gente se dá conta da enorme quantidade de terra que existe– causa de um estado de frustração compartido entre os agricultores sem terra, cada vez maior e potencialmente mobilizador.
Da análise dos depoimentos, depreende-se que é justamente esta frustração que provoca, no íntimo dos sem-terra, uma atitude de abertura aos discursos que tencionam motivá-los com outras formas de ação. Tal disponibilidade, mental e afetiva, constitui, assim, uma condição primordial para o êxito do trabalho de mobilização realizado pela militância do MST (Gaiger, 1997), pelos sindicatos e núcleos partidários com ele identificados, pela Pastoral da Terra (Gaiger, 1994a) e por outros grupos de intervenção. Atingindo indivíduos predispostos, receptivos a uma palavra e a um gesto de esperança, essas organizações teriam reerguido suas expectativas ao apontarem para a possibilidade de mudança, através da organização e da luta coletiva.
O que significa dizer, por outro lado, que os discursos ideológicos daquelas organizações, tendo uma matriz religiosa ou propriamente política [6] , ofereceram novas perspectivas de envolvimento pessoal e trouxeram justificativas para a luta, não sendo, contudo, a causa fundamental do engajamento da base do MST. A causa, desse ponto de vista, reside no estado anterior de frustração, dado pelo acúmulo de vivências em que se buscou preservar ou restabelecer –nas palavras dos sem-terra– condições dignas de vida, entendidas segundo uma matriz cultural que informa os valores e a forma de agir do agricultor parcelar meridional.
Dessa matriz, associada adiante ao conceito de ethos de posição, conviria de antemão destacar um aspecto, por sua incidência direta sobre a opção pela luta. Trata-se da valoração, como argumento e prova cabal, da experiência pessoal e do que se supõe estar demonstrado pelos fatos concretos: acontecimentos presenciados pelos sem-terra, ou dos quais tomam parte, assumem em seus relatos um papel de evidência dificilmente refutável, a explicar seus pontos de vista ou suas mudanças de opinião, além de valerem como antecipação do que é possível ou, pelo contrário, irrealista. Assim, as lutas anteriores e seus (mesmo parcos) resultados revestem-se de uma força de exemplo indiscutível, tanto mais que o discurso militante, especialmente das lideranças cercadas de carisma, os exploram habilmente como sinais de uma grande transformação redentora. Na raiz da adesão a tais elaborações discursivas, encontra-se um determinado senso prático, para o qual o protesto e o conflito configuram, em certa medida, o desdobramento natural de um caminho trilhado há mais tempo; simplesmente o de uma nova tentativa –a gente se deu conta que, indo acampar, arriscava ganhar um pedaço de terra– diante da falta de opções e da inutilidade de seguir indefinidamente resignando-se, no aguardo de soluções que muito provavelmente jamais virão.
O senso de adaptação
Esse senso prático é aqui compreendido como parte de um sistema de referências culturais e simbólicas, gerador de condutas, forjado e internalizado ao longo do tempo pelos indivíduos que compartilham posições e trajetórias sociais similares. Tendo uma elaboração teórica seminal em Bourdieu (1963; 1980), com o conceito de habitus, essa abordagem interpreta as condutas com base nas motivações subjacentes aos gestos intencionais, relacionando-as como dimensões praxeológicas do agir humano. As práticas são entendidas a partir de uma lógica de ação, assente num saber acumulado e difundido através da miríade de interações em que se trama a vida social. Preferindo as formulações que enfatizam o caráter dinâmico dessa estrutura disposicional (Rémy et al., 1978; Lalive d’Epinay, 1984; 1986), diria que as escolhas e iniciativas dos indivíduos de mesma categoria social, seja nas rotinas da vida cotidiana ou perante situações excepcionais, equacionam-se de acordo com o seu ethos de posição, pelo qual os fatos ganham valor e sentido e caucionam-se determinadas formas de agir, em detrimento de outras. [7]
O conceito oferece uma possibilidade explicativa da adesão dos sem-terra a uma prática militante caracterizada por grande determinação política. Para os propósitos deste texto, tenciona-se acentuar que, mais do que uma referência simplesmente à tradição, ou uma postura contra-ofensiva guiada por um atavismo identitário, o ethos do agricultor sem terra traz em seu cerne um senso de adaptação. A conduta que por ele se orienta desenrola-se, na prática, de forma ambivalente, como o resultado instável, seguidamente hesitante e desencontrado, entre uma consciência realista da vulnerabilidade de sua posição social e, por outro lado, uma permeabilidade –quando não uma adesão simplória– a perspectivas de mudança cujo rumo termina por escapar ao seu domínio. Por conseguinte, ela acarreta conseqüências distintas dos fins visados e obriga os agricultores a reajustarem seus próprios objetivos.
Esse ponto de vista poderia aclarar tanto a trajetória anterior à luta coletiva, quanto os fatos que se observam no interior dos acampamentos e assentamentos. [8] Aqui, importa tão-somente recordar algumas facetas da história social dos sem-terra, reveladoras desse senso de adaptação, precisamente para retornarmos em seguida ao argumento principal, ou seja, de que tanto a frustração dos sem-terra quanto a sua opção pelo conflito advêm das inúmeras experiências ditadas por essa lógica de ação.
Um primeiro aspecto a considerar refere-se aos efeitos da dependência material que marcam a história da produção parcelar. De um lado, os baixos índices de incorporação técnica a deixaram ao sabor das vicissitudes e do ciclo da natureza: esse determina o ritmo da atividade produtiva; aquelas, tornam seus frutos incertos. Por conseguinte, todo intento de melhora se vê condicionado por forças que deixam o agir humano preso a um jogo de probabilidades. De outro lado, os níveis insignificantes de acumulação dos produtores familiares limitam suas margens de manobra e as chances de tirarem proveito das oportunidades econômicas. O agricultor parcelar se vê acuado tanto pelos agentes econômicos quanto pela eventualidade de uma frustração de safra. Impossibilitado de prever, com alguma segurança, os resultados de suas iniciativas, resta-lhe agir de forma previdente, segundo um cálculo a curto prazo que exige, por vezes, pronta reação, além de obstinação e persistência. Sua arte está mais em saber responder às circunstâncias do que em criá-las. [9]
Assim, se os relatos dos sem-terra denotam uma percepção de suas vidas como uma história de imposições, expressam também o sentimento de que a mesma lhes ensinou a saírem de apuros e a suportarem as piores situações. Como trunfo decisivo, eles contam com sua capacidade de trabalho, pedra angular de uma identidade consagrada por uma sucessão de gerações, que desbravaram o território sulino e o transformaram numa fonte de riqueza e prosperidade. Idílica por certo, essa visão do passado sustenta sua auto-estima e reafirma a necessidade e justeza de lutar, como for possível, para reaver esse patrimônio vital: um pedaço de terra e a liberdade de nele trabalhar com autonomia e independência.
Vale salientar que a perda da terra não era, outrora, necessariamente irreversível, especialmente durante o processo de expansão da fronteira agrícola. Hoje, no entanto, os poucos hectares que separam os sem-terra dos agricultores que ainda detêm um minifúndio constituem uma barreira intransponível. A proximidade social entre uns e outros faz, porém, com que os segundos permaneçam como classe de referência, como o lugar autêntico dos sem-terra na sociedade. Mais do que um sonho longínquo, cuja espera levaria facilmente ao conformismo, a terra se manteve com uma expectativa real e como motivo de frustração para o agricultor parcelar meridional.
É de se notar, de outra parte, que os sem-terra reúnem os agricultores atingidos negativamente pelas transformações econômicas. São eles –ou as gerações precedentes– que não resistiram à disseminação da economia de mercado, que foram apenas marginalmente beneficiados pela difusão de novos saberes e das inovações técnicas, que mais sofreram os efeitos desiguais da modernização do campo. Daí porque, ao invés de interpretar suas reticências e dificuldades para incorporar inovações, inclusive as propostas pelo MST, como um apego sem mais a suas raízes culturais, parece pertinente entendê-las como obra de um senso prático que, precisamente ao ter querido integrar-se às mudanças, fez a experiência traumática de fracassos sucessivos e recolheu-se numa lógica de adaptação defensiva. [10]
Por sinal, quanto mais os sem-terra valorizam esses fatos e reafirmam seu modo de agir, menos mencionam um momento de ruptura ideológica, que teria separado um antes e um depois da opção pela luta. Seu engajamento atual é apresentado como uma seqüência lógica de convicções antigas, cujo efeito permanece ambíguo e, no caso da base social do MST, estão na origem da crítica ao sistema social e de sua atitude combativa e aguerrida. Assim, os valores típicos de sua cultura de classe, bem como o modo habitual de preservá-los, não são postos de imediato em xeque; ao contrário, constituem motivações primordiais de seu ingresso num movimento de contestação social.
A bem da verdade, a história de povoamento das colônias sulinas indica uma alternância entre momentos de audácia, nos quais a vontade de progredir justificava os riscos, e momentos de autopreservação e cautela. Já a migração para o novo continente representou uma enorme aventura para os colonos europeus, em sua maioria desprovidos de recursos. Na nova terra, onde tudo estava por fazer, tão logo o isolamento geográfico e lingüístico cedeu o passo ao intercâmbio crescente com a sociedade circundante, foi inevitável readaptar-se e assumir novos riscos, sob pena de desperdiçar as novas oportunidades econômicas. Talvez o exemplo mais eloqüente, a partir da década de 40, seja o da migração massiva para as terras, ainda acessíveis, do Centro-Oeste e Norte do país. O último capítulo dessa saga, por ocasião dos projetos de colonização dos anos 70, foi escrito por um bom número de integrantes das primeiras lutas pela terra no Sul do país.
São essas aparentes oscilações de comportamento que sugerem ter a história do agricultor parcelar meridional forjado um ethos orientado por um senso de adaptação, apto a assegurar os valores que lhe são próprios num ambiente social cambiante, no qual historicamente lhe foi reservada uma posição subalterna. Tais valores são referências relativamente estáveis que mobilizam e, haja vista as determinações contraditórias imputadas a essa categoria social, nisto situa-se sua ambivalência. A busca de meios de subsistência e de reprodução social evoca uma identidade histórica mas, dado o realismo do agricultor parcelar, não impede a atualização dessa referência de classe nem a aceitação de que as coisas, em algumas circunstâncias, devam resolver-se de outro modo. [11]
Frustração e mobilização
Esse outro modo, quando significa um rompimento com a conformidade ou a resignação, traduz uma modificação interna do sujeito. Para que uma mudança de atitude dessa natureza aconteça, não basta que as coisas piorem mais e mais, ou que haja um eficiente trabalho de esclarecimento intelectual [12] . Frente a um quadro cada vez mais sombrio e ao insucesso das estratégias anteriormente empreendidas, é preciso ser capaz de reafirmar convicções e propósitos, assignando-os a novas modalidades de ação; é preciso, ademais, enfrentar o problema dos riscos materiais e morais trazidos pela mudança de comportamento, especialmente quando se toma a via do conflito social. Em duas palavras, é preciso que os sentimentos de insatisfação (com a realidade vivida) e de esperança (em modificá-la) persistam, apesar da (ou graças à) marcha dos acontecimentos.
Esses termos, ao lado do conceitos de frustração, evocam a presença de mecanismos de natureza psíquica no processo de definição das atitudes e comportamentos. Considerá-los é inevitável, se desejamos entender como a mudança das condições sociais produz alterações na conduta dos indivíduos. Sem pretender falar em nome da psicologia social, mas buscando nas aquisições dessa ciência um substrato heuristicamente útil ao tratamento do problema em tela, convém então uma rápida incursão nesse campo, a fim de dar maior consistência às nossas primeiras conclusões sobre os fatores que impelem os sem-terra a se postarem nas fileiras do MST. Ter-se-á em vista, principalmente, os estudos sistemáticos de Bajoit (1992) acerca das teorias sobre a mobilização. [13]
O enfoque em questão parte de um fato de observação estabelecido pela psicologia: os indivíduos necessitam de consistência, isto é, de preservar alguma coerência entre seus comportamentos e suas atitudes. Quando se cria uma defasagem entre as expectativas –materiais ou simbólicas, vinculadas a necessidades e igualmente a uma hierarquia de valores– e a realidade percebida pelos indivíduos, um problema se coloca no sentido de restabelecer a consistência e evitar um estado de dissonância cognitiva. Não sendo isso possível, os indivíduos tornam-se frustrados, insatisfeitos com sua condição de vida e, por conseguinte, interessados e dispostos a tomar as medidas adequadas para modificá-la. É nesse sentido geral que se deve entender a hipótese de base dessa teoria: a mobilização, individual ou coletiva, supõe sempre a existência de um certo grau de frustração, incluindo-se aí desde as rebeliões sociais até os fatos mais anódinos, como a extenuante multiplicação dos vínculos de trabalho, comum a vários segmentos profissionais, como forma de preservar um padrão de vida julgado condigno.
Para escapar à dissonância, há três alternativas: tentar a qualquer preço melhorar as condições de vida e assumir os riscos e sacrifícios necessários; aceitar uma redução das expectativas, encontrando para isso justificativas aceitáveis; adotar uma solução intermediária, de modo a alcançar um novo ponto de equilíbrio A condição subalterna naturalmente torna difícil o primeiro caminho, principalmente quando as privações aumentam sem cessar e ampliam o gradiente das desigualdades. As demais opções chocam-se, por sua vez, com um problema fundamental: como abrir mão dos princípios e ideais, como suportar a privação e o sofrimento, de forma plausível, aceitável?
Neste ponto, estudos empreendidos pela psicologia a respeito demonstram que os indivíduos, fugindo ao sentimento doloroso da frustração, desenvolvem um mecanismo de racionalização. O processo consiste em supervalorizar as vantagens da situação presente e subestimar aquelas da situação desejada ou, no que vem ao mesmo, em maximizar os inconvenientes desta última e minorar as desvantagens de estar dela privado. Para tolerar o sofrimento, o indivíduo relativiza interiormente sua importância e, por conseguinte, diminui nele mesmo os efeitos reais da privação. Se necessário, prefere não ver, não saber a origem das suas carências, para que seu mal-estar não seja maior. Paradoxalmente, ele participa da sua submissão para não sofrê-la. [14]
Para que o círculo privação –racionalização– submissão seja rompido, é necessário que sobrevenha uma variação nas relações que os membros da categoria social mantêm com outras categorias situadas no mesmo sistema de interação ou que a mesma passe por uma inesperada diferenciação interna. Essas modificações devem atingir a identidade social dos indivíduos (suas qualidades, competências e retribuições), o lugar social que ocupam (seu valor e suas expectativas) ou ainda as estratégias pelas quais até o momento garantiam seus interesses. Incidindo de alguma forma sobre a desigualdade e a privação existentes, tais mudanças podem desencadear um sentimento de frustração, na medida em que suscitam uma comparação entre a situação atual e a anterior, ou entre a condição própria e aquela de outra categoria social, que passa a cumprir o papel de classe de referência.
No caso dos sem-terra, a classe de referência é dada pelos agricultores que ainda detêm sua parcela familiar; portanto, uma classe da qual os membros do MST são originários ou com a qual mantêm relações de proximidade. Para os filhos dos produtores familiares que acampam (e nos últimos anos, os familiares dos assentados), o temor de cair na mesma situação miserável daqueles que nada possuem torna esses últimos um grupo de referência negativo, que aumenta o que se poderia chamar de frustração antecipada, causadora de dissonância.
A comparação torna então aparentes as possibilidades de melhora das condições de vida ou as ameaças que pairam sobre elas, fazendo voltar à cena a defasagem entre expectativas e situação concreta. Reaparece a dissonância cognitiva e, ao menos momentaneamente, a perspectiva de eliminá-la orienta-se pela idéia de reverter a nova situação ou de conquistá-la, quando almejada; enquanto essa perspectiva se manter, fica inibido o processo de racionalização.
Não se objetiva aqui aplicar, passo a passo, esse corpo teórico, mas averiguar em que medida a realidade do MST valida essa linha de interpretação e a torna fecunda à exploração dos dados, sobre esse tema ou em situações similares. Diante do que foi apresentado, fica por certo patente que os trabalhadores sem terra têm razões de sobra para sentirem-se frustrados. As transformações que acarretaram seu empobrecimento atingem tanto suas qualificações e competências –o agricultor não vale mais nada, dizem eles–, quanto o seu lugar na sociedade –o colono compra hoje no mercado o que ele mesmo produzia antes, para si e para o pessoal da cidade, constatam escandalizados– e suas estratégias de reprodução social –o pequeno produtor está morrendo, tal é sua acabrunhante conclusão.
Entretanto, como explicar que certos indivíduos tenham determinadas expectativas e julguem que não correspondam à sua realidade de vida? O processo naturalmente é complexo mas, sem dúvida, depende dos recursos e das disposições socioculturais produzidos e acumulados ao longo das experiências de interação social, o que se procurou ter em vista com o conceito de ethos de posição. Seguindo o raciocínio a que o mesmo nos leva, é necessário considerar não somente as circunstâncias imediatas em que os indivíduos reagem, mas também as possibilidades e especificidadas ligadas a cada posição social. As determinações estruturais e os processos psíquicos se articulam e eventualmente se reforçam; geneticamente falando, a racionalização é um mecanismo, de defesa e de acomodação, num contexto de privação e de submissão já imposto.
A teoria da mobilização supõe, assim, determinadas condições sociais para que os processos psíquicos que anuncia coloquem-se em marcha. Ela torna inteligíveis os mecanismos que abafam ou despertam a frustração. A reação, em cada caso, depende do que é primordial para os indivíduos; sua sensibilidade à interpelação dos fatos varia conforme seu ethos de classe, com suas referências e seu modo de agir. Por isso, a ênfase dada, em primeiro lugar, a esses aspectos. De conhecimento de ambos os enfoques e de sua articulação teórica, é interessante agora rever, em grandes linhas, o processo de ruína da agricultura parcelar, para melhor perceber como o mesmo, ao fulminar as tentativas de reação nos moldes de uma adaptação defensiva, produz uma categoria social frustrada, passível de mudar radicalmente seu comportamento.
Crise social e insucesso das estratégias não-conflitantes
A crise que atinge a forma de produção parcelar, como se sabe, é resultado da expansão gradual da economia capitalista no espaço rural do Sul do Brasil. Tal processo provocou, ao mesmo tempo, a absorção de um segmento restrito de agricultores familiares, principalmente por via da integração à agroindústria, e a exclusão progressiva dos demais, sem recursos para incorporar os novos padrões técnicos e produtivos (Coradini, 1985; Dias, 1989).
No que concerne à estrutura fundiária do Rio Grande do Sul, houve com isso uma brusca valorização da terra e uma concentração da propriedade. A análise das cifras a respeito [15] indica dois processos concomitantes: a partilha sucessiva das propriedades com menos de 50ha e a concentração da terra em propriedades com mais de 100ha. De 1940 a 1970, as propriedades até um módulo rural crescem em número, a uma taxa inversa à de suas dimensões e a um ritmo inferior à superfície total ocupada. Após 1970, tendem a diminuir, num sinal de que a partição desses estabelecimentos esgota seus limites físicos e, por outro lado, a sua absorção pelos estabelecimentos maiores torna-se mais importante. Um dos efeitos notáveis dessa evolução econômica é o fluxo migratório, iniciado no Rio Grande do Sul nos anos 40 e ampliado nas últimas três décadas. No período mais crítico, entre 1970 e 1980, ao norte do Estado a taxa de emigração rural alcançou 32%.
Quanto às situações que precedem o abandono do campo, observa-se que o número de proprietários aumenta na zonas de expansão das empresas capitalistas e faz diminuir o percentual de pequenos arrendatários. Por sua vez, o regime de arrendamento cresce nas terras antes ocupadas por meeiros, posseiros e agregados, igualmente onde a produção capitalista se expande. As concentrações mais significativas de meeiros e ocupantes coincidem com as zonas de tensão social e dos conflitos pela terra, enquanto a baixa presença dessas categorias acompanha os índices mais elevados de redução da população rural. A meia e a posse são, portanto, a ante-sala da exclusão e –no que valida as conclusões iniciais sobre as estratégias dos sem-terra– constituem, em contrapartida, as situações onde se registra a maior resistência. [16]
Nesse ínterim, como evoluíram as alternativas que poderiam suprir a perda parcial ou total da condição de produtor autônomo? A inserção no mercado de trabalho, via assalariamento agrícola ou empregos sazonais, choca-se contra a diminuição global da demanda, à remuneração ínfima e às péssimas condições de trabalho. A migração para outras regiões encontra obstáculos no esgotamento da fronteira agrícola, no montante elevado de recursos necessários, decorrente da ampliação gradativa das distâncias e da desassistência do Estado; e, mais recentemente, no malogro indisfarçavel da maior parte dos projetos de colonização. Por fim, o êxodo rural, extremamente importante nos anos 70 e 80, dada a incapacidade crescente de aborção do mercado de trabalho urbano, cada vez mais passou a representar alta probabilidade de cair numa vida marginal e insegura, nas favelas e periferias das cidades. Por essa via, o sem-terra estaria bem mais próximo da luta pelo mínimo vital do que por condições dignas de vida, como reivindicam os membros do MST.
O êxodo rural, a migração para o norte, a chance de subsistir sobre uma gleba de terra, todas essas soluções desaparecem uma após outra. No começo dos anos 80, num quadro que se agrava na década seguinte, o agricultor sente-se acuado, inquieto por seu futuro, obrigado a vagar pelas estradas vicinais e ao redor das cidades, enquanto a propriedade da terra e a riqueza concentram-se a olhos vistos no outro extremo da pirâmide social. Os canais de mobilidade se fecham, uma variação efetiva e antecipada da privação se dissemina e assume um caráter amplo e coletivo, a perda da condição de agricultor parcelar mostra-se cada vez mais uma imposição social e não uma obra do azar.
Completando esse panorama, inúmeros estabelecimentos rurais permanecem improdutivos, inclusive alguns reservados pelo Estado para o assentamento –à época inconcluso– dos sem-terra no Rio Grande do Sul. Se a causa da morte do homem do campo não está clara, o beneficiário, na visão dos sem-terra, está lá, bem nítido. A insatisfação se propaga, frustram-se as expectativas e, dada a irreversibilidade dos fatos, se vê por fim solapada a pequena “margem de segurança” (Rémy et al., 1978) que ainda mantinha esse agricultores numa atitude resignada, defensiva e pragmática.
Vale ainda acrescentar que as ameaças contra a dignidade do agricultor familiar não se resumem ao plano econômico, pois estão ligadas à dissolução global do modo de vida no campo. A pretendida modernização econômica e cultural teve como efeito a desvalorização do modo de vida rural, com suas representações, normas e valores, bem como provocou uma alteração nos fundamentos do prestígio social e nas condutas a eles vinculados. As qualidades pessoais, por exemplo, características de um modelo de vida assente nas interações de proximidade, cederam lugar à lógica do mercado de bens materiais e simbólicos, com a qual se instaura um modelo de promoção individual, baseado na competição e em relações despersonalizadas. A mudança social tem, então, para o homem do campo essa dimensão trágica que alimenta uma tendência passadista, reticente à inovação e, por outro lado, amplifica os motivos de sua frustração e, assim fazendo, o alcance das ações que poderá empreender para –segundo costumam repetir os membros do MST– recuperar seus direitos.
Adesão ao MST e militância
Ingressar no MST, acampar, ocupar são gestos que supõem uma decisão, mesmo se inicialmente inopinada, de entrar em conflito com quem se imagina ser o responsável pela privação, de afrontar o poder e a estrutura social vigentes. Para tanto, é necessário que a diminuição da privação seja considerada meritória e o conflito, uma alternativa legítima e eficaz (Bajoit, 1988). Um passo que envolve, ao mesmo tempo, os próprios valores, a visão que se tem da realidade e a disposição para assumir as conseqüências da luta.
Fatores diversos intervêm nessa escolha. A importância do que está em jogo, a natureza inelástica do bem reivindicado e a descrença nas soluções individuais são alguns deles, conforme foi possível constatar. Considerando os processos atinentes à consciência, a opção pelo conflito é favorecida ao menos em três situações: quando os indivíduos atribuem à privação a uma causa alheia a eles próprios, real e visível, portanto suscetível à pressão social e supostamente em condições de atendê-la; quando possuem um sentimento de competência, a convicção de que o desenlace dos fatos depende deles próprios, da sua astúcia, organização e tenacidade; quando perdem a confiança na possibilidade de ascensão individual e rejeitam as visões justificadoras das desigualdades sociais, fato mais provável quando os canais de mobilidade se fecham e os indivíduos sofrem, na própria pele, os efeitos de uma curva social descendente.
Tais fatores, a rigor, não agem ampliando o descontentamento, mas reforçam a crença na eficácia do protesto e desacreditam outras opções. Ou seja, apenas a insatisfação não basta para o engajamento na luta; ela deve combinar-se com o sentimento de que a situação procurada é uma conquista possível pela via do conflito. Uma distinção importante a se fazer, quando se observa que o drama do ator popular é o de retirar poucos benefícios da sua condição social e, simultaneamente, ver-se altamente coagido e imobilizado. Racionalizando ou não, via de regra ele é perdedor. Como vimos nas primeiras páginas, os relatos dos sem-terra testemunham que o seu ingresso na luta dependia, não de maior insatisfação com sua sorte de deserdados, mas de um mínimo de confiança na ação coletiva e nas propostas do MST.
Com maior peso do que em outras formas de reação, o conflito apresenta vantagens e inconvenientes que os indivíduos, de algum modo, levam em conta no momento de fazer tal escolha. O temor de represálias e dos riscos inerentes a esse tipo de ação naturalmente leva muitos a descartá-la e, na falta de alternativas, a recair mais tarde na racionalização [17] . Sem meios que possam contrabalançar os riscos, a hipótese da luta pode sair de cogitação. No caso dos sem-terra, os custos dessa escolha são tão elevados, especialmente quando os obriga a deixar a gleba que cultivavam de favor ou mediante contratos temporários, que a ida para o MST constitui um caminho sem volta. O fato, por outro lado, permite identificar um motivo importante para permanecerem engajados, uma vez feita essa escolha: tendo rompido os laços que os prendiam à sua comunidade de origem, por ela havendo sido reprovados e discriminados, após anos em acampamentos sobre os quais pesa uma série de estigmas, como poderiam retornar ao ponto de partida, de mãos vazias, sem qualquer perspectiva?
A partir de certo patamar, o processo de expropriação imposto pelo capital libera o agricultor do medo de ousar: o que eu tinha para perder, eu já perdi quando pus o pé nesse acampamento. Sendo vítimas de situações que não escolheram, eles se dispõem a enfrentar novos riscos por sua própria conta, tanto mais que os resultados das primeiras lutas os convencem de suportar voluntariamente a incerteza do conflito resta, a solução mais razoável para recuperar um dia o direito a uma vida segura. Eles contam, além disso, com sua desenvoltura diante dos imprevistos, por terem sido empurrados de um lado para outro e, muitas vezes, obrigados a reduzir a satisfação de suas necessidades. Estão acostumados à instabilidade e à insegurança, sabem lidar com os agentes de sua dominação e de sua exploração cotidiana. É portanto, preferível suportar, por vontade própria, as más condições da luta e invocar a experiência passada para justificar o engajamento.
Um outro problema reside, porém, no fato de que os indivíduos frustrados não protestam enquanto não se estabelecem as condições coletivas capazes de agrupá-los e uni-los em torno de uma causa comum e de uma mesma estratégia de reação. O modo como eclodiram os conflitos no Rio Grande do Sul o ilustra com perfeição: os protestos iniciaram no momento em que uma comunidade de pequenos agricultores –os colonos de Nonoai– se viu repentinamente privada de suas terras e ameaçada em suas chances de subsistência, a tal ponto que os riscos da passividade é que então se elevaram a seu mais alto grau. Em seguida, a solidariedade providencial das igrejas, sindicatos e entidades civis, ao assegurar os recursos materiais e logísticos indispensáveis à continuidade das ações, além de garantir o apoio moral aos sem-terra sublevados, contribuiu para suscitar a esperança na luta coletiva e para manter o grupo mais renitente, fiel às suas exigências. [18]
Em tal contexto, seria tentador explicar a emergência dos conflitos a partir da conjunção, localizada e algo fortuita, de uma série de circunstâncias, no momento em que o embate apresentava-se ademais como uma última chance, desesperada e incerta, de reaver direitos e escapar à miséria e à insegurança. Todavia, os resultados modestos das primeiras lutas provocaram, como se sabe, uma reação em cadeia, ampliando-se e multiplicando-se rapidamente os grupos insurretos em todo o Sul do país. Se o protesto social aflorou como uma imposição do azar, não fez mais do que despertar, entre os sem-terra, a esperança de adquirir um pedaço de terra, dando livre curso a um sentimento de frustração contido há muito tempo.
Nos anos seguintes, a mobilização continuou em linha ascendente, visível no entusiasmo dos membros do recém-fundado MST e nas adesões em espiral, isto à medida que o Estado aquiescia às demandas dos sem-terra ou proclamava-se comprometido com seu atendimento. Se a frustração podia, neste instante, declinar, em razão do caráter temporário que assumia a privação, a expectativa de superar a condição de sem-terra apenas tinha motivos para intensificar-se. Nessa combinação de fatores encontra-se uma segunda forte razão para a permanência dos sem-terra no MST: por mais que tenha insistido em um discurso dissuasivo, o poder público termina cedo ou tarde por ceder ou procurar um acordo com o MST, principalmente ao inscrever seu contingente como beneficiários prioritários das desapropriações. Por conseguinte, grande parte dos assentamentos, senão a quase totalidade, constitui um saldo claro das pressões do MST, corroborando a tese sustentada por sua liderança de que essa é a única via para o atendimento das demandas e para a conquista da reforma agrária.
O apelo do MST à militância encontra uma evidência empírica altamente convincente nas estatísticas e se vale, ainda, do fato de que o bem procurado, na prática das ações do governo, é atribuído unicamente aos que participaram da luta. Não falta, tampouco, o recurso a exemplos das vitórias do MST, explorados como peças de propaganda, quanto aos benefícios da reforma agrária e ao êxito dos modelos organizativos preconizados nos assentamentos [19] . Pode-se admitir que a eficiência dessa argumentação, calcada numa crítica sem remissão ao status quo e, em sua elaboração corrente, numa visão facilmente maniqueísta e triunfalista, se deva também à modesta formação intelectual da base do MST (Navarro, 1996). Não obstante, é possível imputá-la, em sua raiz mais profunda, às disposições socioculturais dessa categoria social, das quais dependem a percepção da luta pela terra e a receptividade a um agir pautado pela radicalidade política. Sem esse substrato cultural, gerador entre os sem-terra engajados de uma consciência prática militante (Gaiger, 1997), estaria em risco a consistência e a perseverança do próprio movimento.
Valeria ainda frisar que o engajamento na luta, nessas circunstâncias, gera um compromisso moral de difícil renúncia, tanto mais que o ambiente de intensa mobilização e a emulação constante propiciada pelo MST ampliam o sentimento de se estar lutando por uma grande causa e, no campo das expectativas concretas, por novas condições de vida. Acampamentos e assentamentos funcionam como espaços sociais de reconhecimento e reintegração, legitimam outras formas de prestígio e viabilizam o acesso a recursos e bens suplementares –subprodutos da ação conflitual (Olson, 1978)– como créditos e serviços, inegavelmente atrativos e de pronto colocados em confluência com a perspectiva maior contida nas ações do MST de finalmente libertar o trabalhador do campo de sua condição de classe objeto (Bourdieu, 1977) e vir a ser sujeito de sua própria verdade.
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Notas[1] Além de inúmeras visitas e observações de campo, cerca de 250 indivíduos, acampados e assentados, foram submetidos a entrevistas e a um questionário semi-aberto.
[2] Quando possível, os dados de campo foram comparados com aqueles dos escassos recenseamentos disponíveis, especialmente os do Incra. Embora se tenha procedido a uma minuciosa quantificação, este texto normalmente fará abstração das cifras, atendo-se à sua análise.
[3] Valeria à pena mencionar, ainda, que a mecanização da lavoura é fato vivenciado por uma parcela minoritária dos informantes, normalmente no contexto de empregos temporários em granjas modernas ou em fazendas de gado. À essa exclusão do progresso técnico, soma-se a marginalização do sistema escolar, ao qual poucos tiveram algum acesso, especialmente restrito no caso das faixas etárias superiores.
[4] A afirmativa baseia-se no exame comparativo da situação de sem-terras acampados entre 1981 e 1988 e em pesquisas realizadas pelo autor em anos recentes, conforme se menciona na introdução deste artigo.
[5] No sentido de A. Hirschman. Cf. Bajoit (1988; 1989).
[6] É notório que a influência da Igreja, exercida outrora particularmente através da Pastoral da Terra, vem declinando nos últimos anos, enquanto cresce aquela do próprio MST, auxiliada pelos acontecimentos mais recentes, que o colocaram em destaque na mídia. A análise das respectivas estruturas discursivas, havendo interessado a alguns autores (Romano, 1992), foge ao espaço deste trabalho. Sobre o papel da religião nas lutas pela terra e as causas de sua perda de ressonância, ver ainda Gaiger (1993; 1995).
[7] Afirmar a existência de um ethos de posição próprio dos agricultores familiares do Sul do Brasil não significa desconhecer a heterogeneidade cultural interna dessa categoria social (Cf. Gaiger, 1994c). O ethos em questão, longe de apresentar-se de forma monolítica, constitui um quadro de referência, jamais assumido inteiramente por um indivíduo ou grupo particular, mas que, haja vista sua função de referência, permite interpretar a diferenciação cultural como variações de um modelo, no essencial partilhado e portanto comum.
[8] Quanto ao segundo aspecto, observa-se em Navarro (1995; 1996) considerações extremamente sugestivas, em vários pontos convergentes com essa linha de análise. Trabalhos como os de Antuniassi (s. d.) e Dias (1997) trazem elementos na mesma direção.
[9] Convergem com essa perspectiva Santos (1993), Woortmann (1995) e Wanderley (1996).
[10] A propósito, as raízes culturais nada mais são do que práticas consolidadas a seu tempo, cuja significação alcança o plano simbólico e por ele se difunde na memória coletiva. Suas transformações ulteriores recolocam, no entanto, incessantemente, o problema da recriação cultural, não apenas como um processo adaptativo, mas porque cada matriz cultural traz em si uma determinada força de ativação, segundo uma racionalidade específica que diferencia a reação de cada grupo à mudança das suas condições de existência. Sendo essa reação um fator constituinte das novas condições, em parte é a própria cultura que as explica. Um breve ensaio, nessa perspectiva, encontra-se em Gaiger (1994b).
[11] É provável que as frações mais aquinhoadas dos agricultores familiares, embora comunguem dos valores e da racionalidade geral do ethos aqui descrito, por sua experiência distinta de subalternidade (integração à agroindústria, pluriatividade), os tenham desenvolvido num sentido próprio, a que não se aplicaria o mesmo senso de adaptação.
[12] Sobre a desmobilização causada pela deterioração permanente dos níveis de vida, ou pelos repetidos fracassos na tentativa de evitá-la, ver Paez (1983, tomo II). Quanto ao voluntarismo iluminista, basta recordar os apontamentos de Gramsci sobre a necessidade de uma impulsão afetiva para que haja uma mobilização de classe.
[13] A síntese teórica de Bajoit tem o mérito de a) incorporar um número importante de trabalhos realizados nessa linha, em sociologia e em psicologia; b) apresentar um modelo de análise, com hipóteses gerais e indicadores ao alcance do sociólogo; c) situar esse nível de análise em suas relações com as sobredeterminações sociais. O enfoque é retomado principalmente de J. Beauvois & R. Joule (Soumission et idéologie), que se inspiram, por sua vez, nos trabalhos de L. Festinger (A Theory of Cognitive Dissonance) e C. Kiesler (The Psychology of Commitement).
[14] O que se realiza por uma série de mecanismos, como valorizar sua auto-imagem a partir da fidelidade e da virtude demonstradas na relação de subserviência àquele que constitui a causa objetiva da privação (O estado agêntico, de S. Milgram, em La soumission à l’autorité), ou desprezar sem mais os indivíduos que pertencem ao mesmo meio social ou rompem com as regras do jogo. Veja-se por exemplo que os sem-terra, em suas marchas à capital do Rio Grande do Sul, não raras vezes sentiram a maior hostilidade de parte dos produtores familiares, na zona das primeiras colônias alemãs e italianas.
[15] Cf. Follmann (1980), Heidrich (1984), Schuch (1985) e Dal’Moro & Rückert (1986).
[16] Importa observar, ainda, que o êxodo rural é mais freqüente nas regiões onde se desenvolve a monocultura capitalista e a pecuária, ao lado de unidades familiares pouco numerosas, e não, como se poderia imaginar, nas zonas em que essas últimas são preponderantes. Onde os estabelecimentos de 10 a 50ha predominam, seu número aumenta, embora sem reflexos na superfície total. Apesar das dificuldades crescentes, o produtor parcelar permanece no campo enquanto consiga guardar sua propriedade.
[17] O que justifica porque um bem, por valorizado que seja, não é causa de frustração e cobiça senão quando parece estar ao alcance de quem o almeja. A força dos discursos utópicos que se cruzam no cenário das lutas pela terra, nesse particular, está em afirmarem inconteste a capacidade de vencer do povo unido e, ao mesmo tempo, de atribuírem a cada pequena conquista o sentido da transcendência que anunciam.
[18] Para uma descrição pormenorizada, ver Gaiger (1987) e Santos (1993).
[19] No Rio Grande do Sul, sucederam-se como assentamentos de referência, pela ordem, Nova Ronda Alta, Granja do Holandez, Nova Ramada e as CPAs (cooperativas de produção agropecuária) em geral.