Estudos Sociedade e Agricultura

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Renata Menasche

Gauchismo: tradição inventada


Estudos Sociedade e Agricultura, 1, novembro 1993: 22-30.

Palavras-chave: gauchismo; Rio Grande do Sul; 

Renata Menashe é mestre pela UFRRJ/CPDA.


I. Introdução

O tema "gauchismo" desperta hoje interesse e curiosidade por causa do reaparecimento na cena política nacional da proposta separatista do Sul do País.

"A onda separatista cresce": esta a manchete de capa da revista IstoÉ de 2 de junho de 1993. Os dados de uma pesquisa realizada nos Estados do Sul (Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo), apresentados pela revista, são surpreendentes: 43,1% dos "sulistas" (os dados incluem São Paulo) votariam pela separação de seus Estados do resto do País, sendo que nos Estados do extremo sul (Rio Grande do Sul e Santa Catarina) o separatismo já seria vitorioso agora.

Não me proponho aqui a analisar o Movimento Separatista e suas causas,[1] mas algo que entendo como um componente ideológico em sua conformação: o "gauchismo".

Seriam várias as abordagens possíveis: poderia, dentre elas, dar peso à discussão da relação regional/nacional, ou pensar o processo de construção social da identidade "gaúcho", ou dar ênfase à história do Rio Grande do Sul, ou ainda resgatar a trajetória do Movimento Tradicionalista Gaúcho. Buscarei aqui, passando por elementos de cada uma dessas abordagens, enfatizar o que Hobsbawm e Ranger (1984) chamaram de "invenção das tradições".

II. Gauchismo

Situando a origem do culto às tradições gaúchas, Oliven (1991, p. 40) destaca o ano de 1868, quando "... um grupo de intelectuais e escritores fundou em Porto Alegre o Partenon Literário, sociedade de letrados e escritores que, através da exaltação da temática regional, tentou juntar os modelos culturais vigentes na Europa e a visão positivista[2] da oligarquia rio-grandense", bem como a data de 1898, quando é fundado o Grêmio Gaúcho de Porto Alegre, primeira agremiação tradicionalista.[3]

Esse autor aponta para o fato de que quando tem início esse culto às tradições gaúchas, perpassado sempre, mesmo que a partir de perspectivas diversas, por dois aspectos comuns, a "presença do campo" e a "figura do gaúcho",[4] já "... não existia mais a figura marginal desse gaúcho do passado, gradativamente transformado em peão de estância", relacionando seu desaparecimento às modificações econômicas experimentadas pelo Rio Grande por volta de 1870 e que atingiram a região da Campanha, modernizando e simplificando sua pecuária e expulsando dos campos grande número de posteiros[5] e agregados (Oliven, 1991, p. 40).

Ao analisar o Tradicionalismo Gaúcho, Oliven (1984, p. 57) aponta como datas-chave 1948, quando foi criado por um grupo de estudantes secundários de Porto Alegre, vindos em sua quase totalidade do interior do Estado, mais especificamente da zona da Campanha, o primeiro (depois das entidades pioneiras) Centro de Tradições Gaúchas (o 35 CTG[6]), e 1954, ano em que os vários centros de tradições que se proliferaram a partir de 1948 se reúnem pela primeira vez num congresso, realizado em Santa Maria, para discutir o que passaria a ser a tese-matriz do Movimento Tradicionalista Gaúcho. E chama atenção para o fato do MTG ter-se originado em Porto Alegre, quando o Rio Grande do Sul "... já apresentava um considerável nível de industrialização e urbanização e num período em que vinha ocorrendo há algum tempo uma progressiva mecanização das fazendas, que, ao exigir um número cada vez menor de peões, ocasiona o êxodo rural, despovoando a campanha e criando setores marginalizados nas cidades".

Os fundadores do Movimento eram, em sua maioria, estudantes descendentes de pequenos proprietários rurais de região onde predominava o latifúndio ou de estancieiros em processo de descenso social. Assim, "embora cultuassem valores ligados ao latifúndio, não pertenciam à oligarquia rural". Eram jovens do interior em quem a cidade despertava "... a vontade de buscar no campo e no passado um refúgio seguro e claro" (Oliven, 1991, p. 43).

"Os jovens - todos homens - passaram a se reunir nas tardes de sábado num galpão improvisado, na casa do pai de um deles. Tomavam mate e imitavam os hábitos do interior, entre eles o da charla que os peões costumam manter nos galpões das estâncias." "Queriam... recriar o que imaginavam ser os costumes do campo e o ambiente das estâncias" (Oliven, 1991, p. 43-44).

Lembrando a associação entre passado e presente como uma constante em projetos modernizadores ligados à criação de estados nacionais, na Europa e nas Américas, Oliven (1991, p. 41-42) destaca como característica do processo de constituição do gauchismo "essa dialética entre velho e novo, passado e presente, tradição e modernidade..."

III. Tradição inventada

"... os membros da Sociedade comprometeram-se ... a se encontrarem ... 'vestidos com aqueles trajes tão famosos por terem sido a vestimenta de seus ancestrais... e, nas reuniões, pelo menos, falar a linguagem enfática, ouvir a deliciosa música, recitar a antiga poesia e observar os costumes específicos de sua terra'".[7]

Não é aos jovens que, em Porto Alegre, iniciaram o culto às tradições gaúchas a que se refere a citação acima, mas aos fundadores da Sociedade das Terras Altas (Highland Society), criada em 1778, em Londres, para "... incentivar as velhas virtudes das Terras Altas e preservar as antigas tradições das Terras Altas" (Trevor-Roper, 1984, p. 36).

"Tradições inventadas." Buscarei aqui resgatar alguns pontos destacados por Trevor-Hoper em "A Invenção das Tradições: a Tradição das Terras Altas (Highlands) da Escócia", por considerar sugestivos para perceber alguns aspectos da constituição do gauchismo, tomando por referência a forma como Hobsbawm (1984a, p. 10) entende a "invenção das tradições": "... na medida em que há referência a um passado histórico, as tradições 'inventadas'[8] caracterizam-se por estabelecer com ele uma continuidade bastante artificial... elas são reações a situações novas que ou assumem a forma de referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase que obrigatória" (Hobsbawm, 1984, p. 10).

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Trevor-Roper (1984) mostra que a reputada como antiga "parafernália nacionalista",[9] através da qual os escoceses celebram sua identidade nacional, é, na verdade, bastante moderna,[10] destacando que mesmo a idéia de que existe uma cultura e uma tradição específicas das Terras Altas não passa de uma invenção retrospectiva (p. 25).

Esse autor aponta que "a criação de uma tradição das Terras Altas independente e a imposição da nova tradição e de seus símbolos externos em toda a nação escocesa foi obra de fins do século XVIII e início do século XIX", identificando três etapas nesse processo: a) rebelião cultural contra a Irlanda; b) elaboração artificial de novas tradições das Terras Altas; c) adoção dessas tradições pelas demais regiões da Escócia (p. 26-27).

Analisando, por exemplo, a origem e difusão do traje característico escocês, Trevor-Roper mostra que "... o kilt é uma vestimenta absolutamente moderna, idealizada e vestida pela primeira vez por um industrial quaker inglês, que não o impôs aos montanheses para preservar o modo de vida tradicional deles, mas para facilitar a transformação deste mesmo modo de vida: para trazê-los das urzes para a fábrica" (p. 33). O kilt foi uma adaptação dos antigos mantos e roupas axadrezadas utilizados pelos camponeses montanheses pobres, cortados de modo a conferir maior mobilidade aos trabalhadores fabris. Mas, aponta o autor, o traje não se teria generalizado não fossem os acontecimentos pós-1745, quando a grande rebelião é sufocada pelo governo britânico, que passa a proibir a utilização dos trajes montanheses que, após 35 anos, pareciam ter-se extinguido por completo (p. 34).

Neste período, então, os camponeses aderiram às calças inglesas, mas "... as classes médias e altas, que antes faziam pouco daqueles trajes 'servis', adotaram com entusiasmo as vestes que os usuários tradicionais haviam rejeitado" (p. 34-35). Trevor-Roper aponta que são duas as causas dessa mudança notável: a) o movimento romântico... "antes de 1745, os habitantes das Terras Altas tinham sido desprezados, por serem considerados bárbaros indolentes e rapaces. Em 1745, tinham sido temidos por serem considerados rebeldes perigosos. Mas após 1746, tendo-se esfacelado sua sociedade com tanta facilidade, eles apresentavam o romantismo de um povo primitivo combinado ao fascínio das espécies em perigo de extinção";[11] b) a formação dos regimentos das Terras Altas pelo governo britânico, pois "... durante os trinta e cinco anos em que o campesinato céltico adotou em definitivo as calças saxônicas... foram apenas os regimentos montanheses que mantiveram a indústria do tartan em funcionamento e estabeleceram a novidade mais recente de todas, o kilt de Lancashire" (p. 35-36).

O autor afirma que a generalização do kilt está relacionada à associação criada entre os diferentes padrões de tartan e os diferentes clãs (o princípio diferenciador dos regimentos fora transferido aos clãs), destacando o ano de 1822, quando, por ocasião da visita do Rei Jorge IV a Edimburgo, foi produzida uma verdadeira pantomima em torno das pretensas antigas tradições. Trevor-Hoper conclui afirmando a "... força de uma 'alucinação' apoiada por um interesse econômico", apontando que "... a farsa de 1822 havia dado novo impulso à indústria do tartan, e inspirado uma nova fantasia a ser aproveitada por essa indústria..." (p. 42).

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Love (1975, p. 4) chama atenção para "... o fato de que o debate a respeito do caráter gaúcho tem focalizado exclusivamente uma das subculturas do Rio Grande,[12] o complexo pastoril, um modo de vida ao qual somente uma minoria de rio-grandenses..." estaria ligada.

J. G. Lockart, um observador decepcionado com a pantomima criada para recepcionar o Rei em 1822, denuncia que "as notáveis e surpresas glórias" da Escócia foram atribuídas às tribos célticas que "sempre constituíram uma parte pequena e quase sempre sem importância da população escocesa"[13].

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Conta-se que a introdução das bombachas no Rio Grande do Sul teria ocorrido durante a Guerra do Paraguai, quando a Inglaterra, que fornecia essas calças largas, apropriadas aos desertos, aos exércitos em combate pelas possessões inglesas na Turquia, viu-se com um grande excedente de peças produzidas, necessitando criar novo mercado para absorvê-las.[14]

Highlands escocesas. Campanha gaúcha. Londres e Porto Alegre: origem urbana. O camponês céltico e o gaúcho: imagens cristalizadas no tempo. O kilt e as bombachas: mercado simbólico. Recriação de um passado idealizado. "Tradições inventadas."

 

 

 

Bibliografia

Ferraz,  Silvio (1993). "Secessão Rima com Inflação." IstoÉ, nº 1.235, 2 de junho.

Fry, Peter (1982). "Feijoada e 'Soul Food': Notas sobre a manipulação de símbolos étnicos e nacionais", in: Para Inglês Ver: identidade e política na cultura brasileira, Rio de Janeiro, Zahar.

Hobsbawm, Eric (1984a). "Introdução: A Invenção das Tradições", in: E. Hobsbawm & T. Ranger (orgs.). A invenção das tradições, Rio de Janeiro, Paz e Terra.

__________. (1984b). "A Produção em Massa de Tradições: Europa, 1879 a 1914", in: E. Hobsbawm & T. Ranger (orgs.). A invenção das tradições, Rio de Janeiro, Paz e Terra.

Love, Joseph (1975). O regionalismo gaúcho e as origens da Revolução de 1930. São Paulo, Perspectiva.

Oliven, Ruben George (1984). "A Fabricação do Gaúcho." Ciências Sociais Hoje, p. 57-68.

__________. (1986). "O Nacional e o Regional na Construção da Identidade Brasileira." Revista Brasileira de Ciências Sociais, 1(2), p. 68-74.

__________.  (1988). "A Atualidade da Questão Regional." Revista de Ciências Sociais, 2(1), p. 85-92.

__________. (1989). "O Rio Grande do Sul e o Brasil: uma relação controvertida." Revista Brasileira de Ciências Sociais, 3(9), p. 5-14.

__________.  (1991). "Em Busca do Tempo Perdido: o movimento tradicionalista gaúcho." Revista Brasileira de Ciências Sociais, 6(15), p. 40-52.

Pesavento, Sandra Jatahy (1980). História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Mercado Aberto.

Thomas, Keith (1988). O homem e o mundo natural. São Paulo, Companhia das Letras.

Trevor-Roper, Hugh (1984). "A Invenção das Tradições: a Tradição das Terras Altas (Highlands) da Escócia", in: E. Hobsbawm & T. Ranger (orgs.). A invenção das tradições, Rio de Janeiro, Paz e Terra.

 

 

Notas

[1] As causas apontadas para a "onda separatista" são várias, destacando-se a evasão de recursos do Sul para o Nordeste e a alegada marginalização dos sulistas da vida política nacional.

[2] Evaristo de Moraes Filho, no Dicionário de Ciências Sociais (1987), Rio de Janeiro, FGV/MEC, p. 944, mostrando a importância do positivismo no Estado, afirma que "o Rio Grande do Sul transformou-se no reduto mais radical e extremado do positivismo social e político no Brasil, com Constituição estadual (1891) bem próxima de seus princípios doutrinários e que em muitos pontos se chocava com a federal".

[3] "A fundação do Grêmio Gaúcho foi seguida pela criação de mais cinco entidades, consideradas pioneiras pelos tradicionalistas..." (Oliven, 1991, p. 42).

[4] Oliven (1991, p. 40), citando um trabalho seu de 1988, "A cidade como categoria sociológica", in: Urbanização e Mudança Social no Brasil, Petrópolis, Vozes, especifica esse "campo" como sendo o "... da região da Campanha, localizada no sudoeste do Rio Grande do Sul, na fronteira com Argentina e Uruguai...", e descreve a "figura do gaúcho" a que se refere: "... homem livre e errante, que vagueia soberano em seu cavalo, tendo como interlocutor privilegiado a natureza das vastas planícies dessa área pastoril".

[5] Posteiro é o vigia do gado (Novo Dicionário Aurélio).

[6] "... cujo nome evoca a Revolução Farroupilha de 1835, em que o Rio Grande do Sul, sob a liderança do estancieiro Bento Gonçalves, procura se separar do Brasil ao proclamar a República de Piratini" (Oliven, 1984, p. 57).

[7]  Sir J. Sinclair (1813), An Account of the Highland Society of London, citado por H. Trevor-Roper (1984, p. 37).

[8] O autor define "tradição inventada" como "... um conjunto de práticas reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado..." (p. 9).

[9] O autor está se referindo ao uso do "...saiote (kilt), feito de um tecido de lã axadrezado (tartan) cuja cor e padrão indicam o 'clã' a que pertencem ...", bem como à música da gaita de foles.

[10] "Antes da União <com a Inglaterra, esses acessórios realmente já existiam sob uma forma rudimentar; naquele tempo, porém, eram vistos pela grande maioria dos escoceses como indício de barbarismo..." (p. 25).

[11] Sobre a visão idealizada do campo neste período, ver K. Thomas (1988).

[12] Esse autor identifica três subculturas básicas no Rio Grande do Sul, associando-as às formas de ocupação das diferentes regiões: Litoral, Campanha e Cima da Serra (esta tendo como uma das subdivisões a Zona Colonial, povoada por colonos alemães e italianos).

[13] Citado por Trevor-Roper (1984, p. 41).

[14] A partir de então os gaúchos teriam substituído o antigo xiripá pelas bombachas. Não tive acesso à bibliografia necessária para checar essa versão, que apresento, então, como eu própria a conheço: na forma do "ouvir falar".