Estudos Sociedade e Agricultura

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Roberto José Moreira

Exame da tese de doutorado "Formas e Limites do Capitalismo Agrário: uma leitura crítica de Smith, Ricardo e Marx", de Edgard Malagodi


Estudos Sociedade e Agricultura, 1, novembro 1993: 31-46.

Argüição realizada no contexto do exame da tese apresentada ao programa de Ciências Sociais da PUC-SP em 5/11/93. Tendo apresentado e defendido sua tese frente à banca examinadora composta por Maurício Tragtenberg (orientador), Maria de Nazareth B. Wanderley, Sérgio Silva, Heinz Dieter Heidemann e Roberto J. Moreira, E. A. Malagodi foi aprovado com a média de 9,7 pontos.

Palavras-chave: capitalismo agrário; Smith; Ricardo; Marx.

Roberto José Moreira é professor da UFRRJ/CPDA.


Introdução[1]

Gostaria de ressaltar que tive dificuldades na elaboração deste questionamento, tanto no que se refere à complexidade das questões teóricas e sócio-históricas envolvidas e postas pelo seu trabalho, quanto na originalidade dele. Em uma primeira leitura fui seduzido pelo texto. Naquilo que tem sido algumas de minhas indagações você estava colocando o problema da forma que o tenho pensado. Suas conclusões, porém, apontavam em outras direções. Voltei e fiz uma segunda leitura, procurando os pontos teórico-analíticos que poderiam explicitar este meu desconforto no final da primeira leitura. São estes pontos que aqui enfatizo.

Vou fazer quatro ponderações sobre questões gerais teórico-metodológicas e sobre suas perspectivas de superação e um quinto questionamento que inclui três questões específicas.[2]

1. Sua problematização inclui uma ida aos clássicos e, particularmente, a Marx, para repensar a questão da propriedade fundiária e das rendas fundiárias, bem como as classes sociais do capitalismo (e, no campo) no contexto do movimento do capital.

O problema que o movia era a preocupação com a compreensão do campesinato na nossa contemporaneidade; e se colocava como crítico das posições e compreensões adotadas pelos economistas vulgares e pelos marxistas vulgares, em particular as linhas das ortodoxias interpretativas inspiradas em Engels, Kaustky e Lênin e em seus desdobramentos na e da II e III Internacionais.

Neste contexto sua pressuposição central de trabalho era a de que o campesinato é uma classe social de nossa contemporaneidade capitalista, em particular da retardatária, da periférica, mas não só. Não uma classe fora mas inserida, parte deste mesmo movimento geral do capital e, ao nível da sociabilidade capitalista, parte de nós mesmos: pensar o campesinato seria pensar sobre nós mesmos.

A ida aos clássicos e a Marx nesta linha de problematização teria a razão teórica de trazer à luz a análise da renda fundiária, e sua origem, hoje não considerada relevante pelos economistas agrários. Na p. 35[3] você argumenta que o desenvolvimento de relações capitalistas de produção implica na subordinação ou subsunção da terra (pensada como meio natural indispensável para a produção) ao capital, da mesma forma como o capital também subordina e passa a comandar o trabalho. Vai aos clássicos e a Marx também porque é lá, naquele contexto histórico da transição e do capitalismo originário, que estariam dadas as matizes interpretativas da propriedade fundiária e seus desdobramentos para a compreensão das classes sociais no campo; e abrindo assim espaço para se pensar o lugar do campesinato no capitalismo.

Para tanto, você explicita na p. 27 três grandes temas gerais:

Assim, eu diria que neste nível geral, a você se colocavam duas instâncias de análise que você não percebeu ou não levou em conta e que trouxeram problemas à sua análise. Em uma primeira instância estaria a ida aos autores, com todos os cuidados metodológicos que você corretamente explicita, tais quais: analisar a lógica interna do discurso; e inserir o autor em sua época, no contexto de classes em que está incluído e nos debates nos quais se envolve. Esta ida aos autores teria, portanto, a finalidade de entender suas formulações sobre a propriedade e a renda fundiária e o movimento do capital no campo. Em uma segunda instância, as suas conclusões sobre estes debates e formulações seriam retomadas para a compreensão do campesinato.

Seu descuido metodológico, a meu ver, foi o de tentar ler os autores e os debates como se o campesinato ou a teoria do campesinato estivesse presente como um dos temas centrais da época e das preocupações dos autores analisados.

2. Ainda neste nível geral, eu diria que você esteve preso a uma determinada visão simplificadora, expressa no Cap. 1, do que seria a unidade da produção e da circulação. Esta unidade da produção e da circulação já é problemática em Marx, mesmo em sua obra madura O Capital. Você a simplifica, colocando Marx entre e como um dos economistas clássicos. Vou primeiro abordar alguns pontos aqui e depois voltarei às questões anteriores.

Para procurar ser sintético vou diretamente ao ponto: ao se propor sair da teoria do valor em Marx para pensar a unidade da produção e da circulação, que se rebate na teoria dos preços, você ignora as dificuldades teóricas do marxismo que estão colocadas hoje nas questões sobre a transformação dos valores em preços; na necessária separação do campo analítico onde operam as leis do movimento do capital (o movimento dos valores, a compreensão da exploração de classes e as categorias valor, capital constante, capital variável, mais-valia e taxa de exploração) e o campo analítico onde opera a dinâmica do capital, o movimento da competição intercapitalista, o movimento dos preços relativos, as diferentes formas de capital, a distribuição dos capitais, e as categorias lucro, taxa de lucro, salário, juros e renda da terra. (Ver Mário Possas em Dinâmica e concorrência capitalista: uma interpretação a partir de Marx. São Paulo: Hucitec, 1989).

Para explicitar as implicações das questões acima colocadas sobre seu tema de análise, vou detalhar:

Na p. 54 você explicita: "Assim, nossos objetivos iniciais são: em primeiro lugar, evidenciar a necessária relação existente entre as formas de produção (valor, mais-valia) e as formas de circulação (preço de produção, preço de mercado, lucro, renda fundiária)".

Nas p. 54-62, no desenvolvimento do item "2. Valor, preço e preço de mercado", você ignora a concorrência intercapitalista e o processo a ela subjacente de mudanças na produtividade de trabalho e seus efeitos sobre a taxa de mais-valia e de lucro.

Você vai enfatizar na p. 61 que: "para ser valor, cuja natureza é social, é preciso que sua substância seja igualmente social, quer dizer, é preciso que o trabalho tenha uma utilidade não apenas pessoal, mas seja útil principalmente para outros. Assim, o trabalho que se cristaliza em valor, que representa a substância do valor não é qualquer trabalho mas apenas o trabalho socialmente útil (entendendo como socialmente útil todo trabalho que é executado para outrem, fora do círculo familiar e das relações não comerciais)". E que de forma geral "O trabalho só é social dentro de determinadas condições específicas de cada época histórica e de cada sociedade" e, no caso "do modo de produção capitalista são necessárias duas condições específicas: em primeiro lugar, o trabalho somente tem a qualidade social quando é realizado com a finalidade de produzir mercadorias, isto é, produtos para o mercado..." "Em segundo lugar, é trabalho social apenas na medida em que suas condições de produtividade correspondem às condições gerais dominantes no respectivo ramo de produção. Daí ser o trabalho contido em um determinado produto, cuja produção consumiu mais tempo do que aquele que usualmente se necessita para a obtenção deste produto, considerado apenas parcialmente pela sociedade, e [n]esta medida remunerado apenas em parte. Neste caso, apenas parte do tempo do trabalho estará sendo pago, o que implica que o trabalho deste produtor (seja um indivíduo ou uma empresa) tenha sido em parte inútil para a sociedade".

Mesmo aceitando a análise teórica empreendida por Marx, que pressupõe a generalização da produção de mercadoria e concluir com ele sobre a inutilidade do trabalho realizado em piores condições; você vai concluir na p. 62 que:

"(...) o caráter social do trabalho, portanto, se encerra fundamentalmente no fato de uma determinada sociedade valer-se ou não de um determinado trabalho particular; e, que não se pode descartar 'o trabalho camponês e o trabalho artesanal', por se situarem ambos fora das condições técnicas médias de um determinado ramo de produção". E, afirma, que "o trabalho de um camponês pode (...) não se estabelecer em condições médias de produção e no entanto ser integralmente absorvido pela sociedade".

Por que você vai rejeitar aqui a questão como uma questão teórica e a remete para o sociohistorico? Na p. 62 você afirma:

"A questão não se situa, portanto, ao nível do reconhecimento do caráter do trabalho, pois a sociedade o reconhece, na prática, como um trabalho social. O problema se situa na forma da sua retribuição, e isto coloca tanto um problema econômico como político".

E eu diria, um outro, interpretativo: coloca o campesinato como um elemento exterior ao movimento e à dinâmica do capital. Não se aplicaria aqui a você a mesma crítica que faz na p. 110 aos analistas que:

"Em muitos casos, fazem a análise cair em noções vulgares e superficiais, que tentam encontrar um atalho que os livre das dificuldades de relacionar fatos, aparentemente contraditórios, com os esquemas teórico-analíticos gerais"?

Voltando ao ponto, você lança a questão para o econômico e para o político como um "atalho" que visa ao esclarecimento para a compreensão do trabalho do camponês. Qual é o problema econômico, ao nível teórico? É o "economicismo", como você diz, que não permite encaminhar teoricamente o problema, não cabendo na análise do capital por ser exterior a ele, por ser "político". Ou, não seria, diria eu, uma incompleta formulação da questão do próprio ponto de vista econômico?

De um lado há aqui uma confusão conceitual. Neste contexto da análise teórica, todo o trabalho contido (enquanto valor, enquanto produzido em condições médias) seria pago e reconhecido pela sociedade e não apenas em parte, como você conclui. Portanto, não vai implicar que o trabalho, enquanto valor contido na mercadoria, tenha sido em parte inútil para a sociedade. Poder-se-ia dizer que parte do tempo de trabalho do camponês não seria reconhecido pela sociedade, seria inútil. Todo o tempo de trabalho só seria útil se, aqui está o ponto, ele tivesse condição de operar nas condições médias. E ter condições de operar nas condições médias leva necessariamente às condições da competição capitalista; a distribuição da propriedade sobre as bases materiais da produção, seja a distribuição da propriedade da terra seja a dos elementos do capital. Ou seja, a lógica teórica levaria à necessidade de reconhecer a existência de uma distribuição desigual da propriedade material voltada à produção, dentre os proprietários e não apenas entre proprietários e não-proprietários, como está pressuposta na teoria da exploração. Esta problematização recoloca uma questão que você está descartando na tese por considerar impertinente à análise da renda da terra: a questão do "monopólioo"de classe sobre a propriedade fundiária, a natureza da renda absoluta, que voltarei a comentar.

Até aqui, sua análise, e a confusão entre trabalho e tempo de trabalho, vão sugerir uma exploração do trabalho camponês, como trabalho não pago, que se dá por razões históricas incompreensíveis pela análise do econômico.

Sem fugir dos pressupostos teóricos que você mesmo aceita sobre a generalização da produção de mercadorias sob o capital, qual é de fato a questão teórica em pauta? Este desconhecimento da concorrência o impede, de um lado, de apenas relativizar a tese que enfatiza as forças da concorrência sobre o desaparecimento do campesinato; leva-o à negação dela, pura e simplesmente. Impede-o ainda de aceitar, também relativizando, as idéias associadas, no seu dizer, "preconceituosas" de Marx sobre o campesinato, seja no que se refere ao seu desaparecimento, seja no que se refere ao seu caráter de pequeno proprietário, distinto do trabalhador sem propriedade de bens de produção de qualquer tipo.

 Em seus itens 5, 6 e 7, ainda do Cap. 1, esta desconsideração da questão da concorrência intercapitalista aparece de outra forma. Na p. 76 afirma uma perspectiva de análise: "O ponto de partida de qualquer investimento é o capital que o empresário pretende aplicar em um determinado campo de produção".

Esta perspectiva do gasto empresarial e a sua recepção teórica das questões do valor, preço de custo e preço de produção, tomam as condições de concorrência como dadas, como pressupostas. Neste sentido, como Marx, você vai tratar o capital total como o capital consumido no processo de produção de valor, bem como o tempo de rotação do capital como sendo o tempo de rotação deste capital: o consumido. Ficam de fora o volume de capital imobilizado, mas não consumido, e seu tempo de rotação; essenciais para a compreensão do "poder de mercado" e do volume mínimo de capital necessário para entrar em uma dada esfera de produção. A entrada em cena do capital imobilizado permitiria uma analogia para a compreensão da propriedade da terra, como equivalente de capital na competição e não apenas na esfera de produção de valor, como você vai demonstrar ser a posição ricardiana.

Ao reconhecer (p. 84-85) que o processo imediato de produção capitalista:

"tem o sentido de caracterizar um processo que é analisado em uma simplicidade elementar, como se fosse um processo de produção de um capital individual, atuando ainda apenas na esfera da produção, sem portanto a mediação da concorrência dos diversos capitais entre si e sem a mediação da esfera da circulação",

você entra em uma circularidade, pois toma como dados o salário, a taxa de lucro e os preços de instrumentos e insumos, e não os valores.

Na p. 94 você reconhece que "estas relações só funcionam, e só podem funcionar plenamente em condições de desenvolvimento capitalista e de ausência de privilégios e de leis restritivas ou protetoras, bem como de monopólios, de oligopólios e outras formas de pactos comerciais e industriais. De qualquer forma, em condições normais..." [as coisas acontecem como prevê a teoria].

Aqui fica claro como a não-abordagem da concorrência o faz considerar os diferentes poderes que os diferentes capitais individuais vão exercer como algo "não normal", não resultante e conformador da própria operação dos capitais em disputa. Esta questão tem a ver com as teorias dos preços de monopólio e oligopólio, não assim tão "anormais" ao capitalismo.

3. Antes de entrar propriamente nos capítulos que tratam da propriedade e renda fundiária, e ainda, em nível geral, gostaria de levantar uma crítica interpretativa que não se refere apenas ao Cap. 1.

Em sua exposição você homogeneíza os clássicos, incluindo Marx como um deles. O mesmo vai ocorrer nos capítulos seguintes sobre a renda da terra nos fisiocratas e nos economistas clássicos. Você perde de vista a ruptura metodológica de Marx frente aos clássicos, como pretendo esclarecer.

Na p. 89 você afirma que: "só a pesquisa científica pode sair em busca da lei do valor e da mais-valia". Ao que me consta, a lei do valor e da mais-valia tem a ver com a explicitação do caráter de classe do capitalismo, como uma teoria da exploração. Os economistas clássicos não fizeram esta ruptura epistemológica. Nem Smith, nem Ricardo, que muito contribuíram para o entendimento que Marx veio a ter da questão do valor-trabalho, interpretam a existência das classes no capitalismo através de uma teoria da exploração.

Por que com Marx nasce uma teoria de exploração e com os outros não? Qual é a especificidade da ciência de Marx frente aos clássicos? Dentre eles foi Ricardo quem melhor sintetizou a questão do valor-trabalho, mas só no sentido de buscar uma "medida" de valor. Marx vai ser um cientista de sua época, com elementos do positivismo e do racionalismo associados à ciência cartesiano-newtoniana, mas com uma outra visão de mundo da classe trabalhadora; em outras palavras, com um outro conjunto de valores.

Na p. 91 você conclui: "(...) que tendo partido das noções vulgares e conhecidas dos agentes econômicos (...), os autores clássicos no entanto compreenderam de forma aguda que o estudo destas noções leva inevitavelmente às leis inerentes ao movimento da economia". (...) "A pesquisa clássica, com Smith, chega a descobrir no valor o trabalho social, e com Marx, identifica conceitualmente, na mais-valia, a gênese das formas dos rendimentos dos empresários industriais e comerciais, banqueiros e proprietários fundiários. Coube a Marx fixar conceitualmente a mais-valia, separando-a de suas formas derivadas e conhecidas".

Essa tendência a assemelhar Marx aos clássicos o leva, mesmo no nível do movimento do capital, a não considerar o caráter de classe em contradição. Em seu texto, este movimento analítico de Marx que conduz à compreensão do progresso técnico e à concentração e centralização de capitais não é ressaltado como aspectos associados à luta de classes. Em Marx, a contradição destas classes fundamentais permite, através da luta em suas diversas instâncias, entender a resposta tecnológica dos capitalistas e seus efeitos sobre os movimentos da produtividade do trabalho, da taxa de lucro e da própria taxa de exploração.

Neste sentido, o nível de desenvolvimento das forças produtivas, que vai aparecer em seu texto como dado, aparece em Marx como um processo de concentração e centralização de capitais. E, no que nos interessa aqui, como concentração da propriedade dos bens materiais de produção, ou seja, o monopólio de classe sobre estes bens (dentre os quais se inclui a propriedade da terra), a propriedade do capital e a da terra estarão associados à idéia de propriedade privada.

A meu ver esta natureza social do monopólio de classe sobre a propriedade da terra vai aparecer em Marx no conceito de renda absoluta, reinterpretada por Sérgio Silva (em Valor e renda da terra: o movimento do capital no campo, São Paulo, Pólis, 1981) como renda em geral.

Insisto neste ponto porque você vai concluir pela rejeição da renda absoluta como categoria explicativa das relações sociais do capitalismo, baseando-se nos fisiocratas e pouco convencido por Ricardo.

É dentro desta esfera, dentre os proprietários dos bens materiais de produção, que opera a concorrência intercapitalista dos valores. Neste nível é que conta a distribuição relativa da propriedade, ou seja, a magnitude dos capitais individuais e, dentro de meu raciocínio, também a magnitude das propriedades agrárias individualizadas, como equivalentes de capital.

O entendimento do campesinato no capitalismo, a meu ver, não vai ser conseguido pela tentativa de "encontrar um atalho", como você mesmo diz p. 110, "que nos livre das dificuldades de relacionar fatos, aparentemente contraditórios, com os esquemas teórico-analíticos gerais".

Cumpre explicar teoricamente como os pequenos proprietários de bens materiais de produção, e de seus correspondentes valores em terra e capital, não conseguem se desvincular das tarefas imediatas do processo produtivo e do processo de trabalho. Apesar de proprietários, não se transformam em "persona" do capital: simplesmente dirigentes capitalistas do processo produtivo.

4. Voltando agora para seu outro tema geral: a propriedade e a renda fundiária, que você desenvolve em seus capítulos 3, 4 e 5. Sua leitura dos fisiocratas vai cumprir um papel importante em sua argumentação quanto à impertinência da renda absoluta para o entendimento da natureza da renda fundiária no capitalismo e para a compreensão do campesinato. Partindo de suas palavras quando você fala sobre Quesnay:

Na p. 104: "não há propriamente uma teoria da renda fundiária, separada de sua teoria da mais-valia". Na p. 101, n. 12: "na definição de classes não há distinção entre trabalhadores e empresários: aliás esta questão é desnecessária, uma vez que o lucro do empresário é tomado como o seu salário... Fica claro nos textos de Quesnay que os 'fermiers' (arrendatários) são os dirigentes da produção agrícola". E continua na p. 105, "a fertilidade natural era a única razão dos altos rendimentos do investimento agrário". Na p. 106 afirma que: "Neste aspecto Smith e Ricardo ficam muito atrás do médico Quesnay. Para eles, a fertilidade natural era a única razão dos altos rendimentos do investimento agrário..."

Apesar de reconhecer com Marx, na p. 109 n. 34, que "seu (de Quesnay) erro foi ter confundido o incremento do valor de troca com o incremento de matéria" (de valor de uso), você também desconhece nesta comparação que, para Quesnay, os arrendatários e os trabalhadores são tomados como uma única classe e que em Smith, Ricardo, e também em Marx, são compreendidos como classes distintas.

Neste sentido vai desconhecer também, na análise, que o produto líquido dos fisiocratas não pode ser entendido como "aquilo que Marx mais tarde entenderia por mais-valia" (p. 111 n. 36).

Estes descuidos metodológicos estão a meu ver por detrás de suas conclusões sobre os fisiocratas, a saber:

Na p. 108: "Deste modo, a escola fisiocrática define claramente o que existe de fundamental na natureza da renda fundiária: ela é simplesmente mais-valia, surplus - um excedente de valor produzido pelo trabalhador",

quando, na verdade, deveria ser interpretado como sendo uma  associação arrendatário-trabalhador, capital-trabalho. E continua na p. 109 afirmando que os fisiocratas definiram que "apenas o trabalho agrícola produz um excedente, e um ganho líquido, acima dos investimentos da produção", quando, na verdade, seria acima dos lucros, ou seja dos "salários" dos arrendatários.

Neste sentido, a questão que você visa explicar, e que é o cerne da discussão de Smith, Ricardo e Marx, ou seja, a distribuição do excedente de valor entre lucro e renda da terra é tomada como um dado. Dentro desta mesma linha de equívocos, você continua nas p. 109-110:

"Os fisiocratas são, portanto, os autores que formulam em primeiro lugar, na história da economia, uma análise da renda fundiária capitalista, compreendendo corretamente como 'produto liquido' do trabalho agrícola. É neste sentido que podemos dizer que todas as concepções que definem a moderna renda fundiária como 'monopólio', 'preço de monopólio', 'imposto sobre o conjunto da sociedade', etc., não levaram em conta essa análise fundamental e recuam suas análises a uma interpretação historicamente ultrapassada das relações de produção capitalistas. Em muitos casos, fazem a análise cair em noções vulgares e superficiais, que tentam encontrar um atalho que os livre das dificuldades de relacionar fatos, aparentemente contraditórios, com os esquemas teórico-analíticos gerais".

Esta convicção, que você retira ou fundamenta nos fisiocratas, vai colocá-lo ao lado de Ricardo. Na p. 121 (depois de expor o preço de monopólio em Smith, que Ricardo vai tentar negar, mas que admitiria no limite), você aceita a negação ricardiana da renda absoluta apesar de ter condições de perceber inconsistências e ficando indeciso sobre se Ricardo teria ou não uma teoria da renda absoluta. Em suas palavras, na p. 139:

"Ricardo admitiria no limite uma renda na terra de pior qualidade, mas mesmo assim essa renda fundiária só poderia representar um valor acima do preço de produção - que é afinal a tese da existência de uma renda absoluta, de Marx! [Por que o seu ponto de exclamação? Só para afirmar que] "a teoria da renda de Marx não é tão anti-ricardiana como ele imaginava".

Ricardo tem ou não tem uma teoria da renda absoluta? Você vai dizer que a teoria de Smith não difere em síntese da tese em que se fixará Ricardo, ao não admitir senão rendas diferenciais, ao mesmo tempo em que descartava toda a possibilidade de uma renda absoluta. Na p. 122: "a renda fundiária aparece como lucro extraordinário". Uma senhora confusão, não acha? Por que esta dificuldade em compreender Ricardo?

No contexto do arrazoamento do porquê os autores clássicos se preocuparam em separar "renda fundiária" de "preço de arrendamento", você vai homogeneizar Smith, Ricardo e Marx, afirmando na p. 131 que a preocupação destes autores "em delimitar bem estas rubricas está ligada ao fato de que o problema teórico a ser resolvido é o da "renda fundiária propriamente dita".

Esta "parcela" do preço de arrendamento, paga tão-somente em decorrência do uso de "condições" naturais é uma problemática de Ricardo e de Marx, mas não a única de Marx. Para Ricardo (na p. 128), "resta considerar, no entanto, se a apropriação da terra e a conseqüente criação de renda ocasionarão alguma variação no valor relativo das mercadorias independentemente da quantidade de trabalho necessária à sua produção".

Ainda para Ricardo (na p. 129), "a renda é a porção do produto da terra paga ao seu proprietário pelo uso das forças originais e indestrutíveis do solo".

Ricardo vai enfocar a questão apenas do ponto de vista da geração do valor, por isso fica só na renda diferencial e na distribuição interna aos proprietários com terras em uso. Marx está preocupado também com a distribuição do excedente gerado entre capitalistas e proprietários fundiários. Por isto vai trabalhar com a renda absoluta e diferencial.

Você acha na p. 143 curioso que Ricardo, para fundamentar sua teoria da renda fundiária, recorra a "um exemplo insólito: uma situação onde não exista qualquer tipo de propriedade fundiária!"

Ricardo trabalha com a noção de que a escassez de terra é um fato natural e não social, ou seja, desconsidera a distribuição social prévia do patrimônio da natureza. Para ele,

"nenhuma renda seria paga... a bens naturais existentes em quantidade ilimitada"(...), " ao esgotar as terras férteis (...) a magnitude de tal renda dependerá da diferença de qualidade daquelas duas faixas de terra" [de pior e melhor qualidade]. (p.132)

Na p. 133 você ressalta que: para que o modelo ricardiano possa funcionar é preciso pressupor que o último capital empregado... "não pague renda alguma", e reconhece que Ricardo pressupõe que esse último investimento seja uma segunda inversão em terra "já arrendada". Ou seja, Ricardo toma como pressuposto algo que precisa ser demonstrado.

As conseqüências que você tira a partir de Ricardo estão todas condicionadas a estes pressupostos teóricos e são impertinentes se estas condições não puderem ser aceitas.

Procurando avançar sua ótima caracterização dos autores em seus tempos históricos e as conjunturas em que vivem, seria importante também explicitar suas possíveis posições de classe, que você não leva em conta em sua análise.

Com relação aos interesses de classe associados às elaborações teóricas sobre a renda da terra, gostaria de ressaltar que, a meu ver, os fisiocratas (eruditos e aristocratas franceses que cercaram os sucessores de Luís XIV) expressaram em suas teorias uma posição de classe. Eles visavam, na formulação de sua teoria, uma compreensão de sua época. Tinham também a pretensão de reformar o antigo regime e defendê-lo ao mesmo tempo. Neste contexto, fazem sentido a concepção do lucro empresarial do fermier como "salário" e a unificação, como pertencentes à classe improdutiva, das atividades do comércio e da manufatura. Sustentavam a existência e a preservação da propriedade com base na "lei natural" e não no direito divino ou de sangue.  Com base no "laissez-faire ... laissez-passer", advogavam  contra os mercantilistas, seus privilégios e sua influência nas políticas do estado. Estando a favor da liberdade de comprar e vender, estavam contra os monopólios mercantilistas ou qualquer monopólio. Vão sustentar a propriedade fundiária patrimonial, base de sustentação da oligarquia, pelas ditas leis naturais, geradoras do "produto líquido", e não como direito de monopólio de classe. Neste sentido, o direito ao "produto líquido" não poderia aparecer, ou ser concebido, como direito de monopólio; não poderia surgir, portanto, deste estrato social uma teoria de renda absoluta.            

Para a Inglaterra de Smith, Anderson e Ricardo e, particularmente em Ricardo, a negação da renda absoluta vai ser um dos elementos decisivos em sua luta política e ideológica contra o poder dos "landlords" no Estado; ou seja, em sua luta contra o monopólio da propriedade fundiária da oligarquia inglesa e a favor da burguesia industrial. Em Ricardo, a propriedade fundiária, enquanto patrimônio aristocrático, está associada à negação da renda absoluta. A propriedade fundiária em si, associada à noção de renda absoluta em Smith e em Marx, não justificaria nenhum acesso à apropriação de parte do excedente econômico. É este um dos sentidos de sua ênfase nas diferenças naturais do solo, na renda diferencial, como única, na renda fundiária propriamente dita.

Marx, dada a perspectiva de sua compreensão das classes como classes proprietárias e não-proprietárias dos recursos materiais produtivos, vai problematizar a sociedade capitalista do ponto de vista da classe trabalhadora. A teoria, ou como você prefere, a "doutrina da renda absoluta", enquanto renda em geral, vai permitir conceber como unificados os interesses das classes proprietárias. Seria neste sentido que a base do estado moderno estaria sustentado na "propriedade privada" em geral. A propriedade da terra enquanto mercadoria vai permitir que ela funcione ao nível da competição intercapitalista como equivalente de capital. A renda absoluta, aqui, não pode ser concebida como uma renda patrimonialista no sentido em que seria concebida (pela negação de sua existência) pelos fisiocratas e por Ricardo. Aqui basta que a terra seja mercadoria e que a propriedade privada esteja na base de fundamentação do estado.  Neste sentido, a compreensão da separação entre arrendatário e proprietário da terra, ou a sua unificação em uma só figura social, teria que ser remetida às condições históricas das diferentes formações sociais capitalistas.

A meu ver, a suposta "barreira", ou como limite do capitalismo no campo, que os analistas têm ressaltado como oposição entre a propriedade da terra e a propriedade do capital teria que ser repensada não como uma oposição entre estas duas classes, mas como diferentes interesses no interior da classe proprietária.

No nível teórico da economia, esta perspectiva vai colocar a questão ao nível da dinâmica e da concorrência intercapitalista ou, se preferir, entre a concorrência entre capitais e/ou equivalentes de capitais.

Ainda no nível teórico, cumpre entender os processos de valorização deste dois tipos de patrimônios capitalistas. Neste nível da análise, a concentração e centralização da propriedade da terra não é irrelevante. Aqui não é irrelevante a grande e a pequena propriedades agrárias.  Suponho que uma abordagem deste tipo vai permitir caracterizar melhor os significados hoje associados às noções de "subordinação indireta", de "camponês como trabalhador para o capital", "quase-campesinato", "relações não-capitalistas produzidas pelo capitalismo", "pequena produção familiar" e outras. Em outro contexto -em "Pequena produção e composição orgânica de capital" (Revista de Economia Política, v.1, n.3, 1981) e em "Reflexões sobre o campesinato e economia política" (Texto de Discussão Interna, RJ. FGV/CPDA 1979), faço algumas sugestões visando uma interpretação da pequena produção, e do campesinato, que incorpore a sua conformação no contexto da dinâmica do capital, bem como sugiro uma reinterpretação da renda diferencial I (de fertilidade e de localização). Ao não entendê-la como natural, no sentido ricardiano, e sim como uma "naturalidade" da sociabilidade capitalista, poderíamos entendê-la no contexto da apropriação capitalista dos frutos do progresso técnico aplicada ao conhecimento sobre a fertilidade das terras e aos investimentos em transportes e urbanização.

 

Notas

[1] Não incluí neste escrito algumas falas iniciais que se referiam aos agradecimentos, relevância do tema e o cuidado que o autor teve na problematização de sua tese, quando ressaltei as qualidades e a importância do trabalho, bem como, relativizando minhas críticas e contextualizando-as como contribuição, não incluí minhas falas que ressaltavam que compreendia o exame como um momento do processo de conhecimento e do debate crítico, e não como uma avaliação final, apenas burocrática de classificação.

[2] Este quinto questionamento, e suas questões específicas, não farão parte deste texto por razões de espaço.

[3] No texto, p para página e  nr nota de rodapé.