Estudos Sociedade e Agricultura

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Raimundo Santos

Duas gerações de intelectuais pecebistas

 


Estudos Sociedade e Agricultura, 1, novembro 1993: 7-21.

Palavras-chave: PCB; Nelson Werneck Sodré; Caio Prado Jr.

Raimundo Santos é professor da UFRRJ/CPDA


Estamos todos (ou quase todos) nos tornando mais serenos, diante de dificuldades maiores. (Leandro Konder)

As seguintes notas têm como propósito exclusivo justificar o estudo monográfico Duas gerações de intelectuais pecebistas, que inscrevemos na linha de pesquisa "História das idéias: Pensamento político e programas agrários", ora em andamento na área "Sociedade e Agricultura" do CPDA.

Em torno de um número limitado de pontos, pretendemos fazer a comparação entre dois dos mais representativos intelectuais comunistas contemporâneos e alguns dos novos nomes que se projetam na cena pecebista da passagem da década de 70 para os anos 80 no contexto da auto-intitulada "batalha das idéias" dos eurocomunistas brasileiros.

Em ocasiões anteriores já estivemos próximos desse tema,[1] e agora recentemente adiantamos um outro texto sobre aquela intelectualidade comunista dos anos 80, mais com vistas ao anúncio de uma questão do que para dar-lhe tratamento sistemático, mesmo neste caso de um estudo sobre lances da última fase do pensamento pecebista, notoriamente de nosso interesse.[2]

Como início de uma segunda reflexão sobre essa problemática, a releitura em andamento de Nelson Werneck Sodré e Caio Prado Jr. apenas sugere anotações preliminares que referenciam conjeturas ainda imprecisas, envolvendo o nacional-desenvolvimentismo, tema irresistível para a esquerda brasileira dos anos 50/60; as ambigüidades e as resistências desses nossos autores à travessia do Rubicão, em meados dos anos 50, para uma franca política de frente única; e, por fim, os caminhos da dúvida que eles encontraram (se encontraram), à medida que a modernização capitalista do país ressoa na mentalidade da esquerda brasileira, dificultando-lhe a propensão para novas hermenêuticas.

1. A colocação inicial do problema

Evidentemente os temas pecebistas têm merecido inúmeras análises e já é quase lugar comum dizer-se que o objeto de estudo já estaria dando inequívocas mostras de "esgotamento".

Por isso chegamos a pensar que revisitar "clássicos comunistas" dos anos 60 e dar importância a jovens intelectuais pecebistas da década de 70/80 poderia ter algum interesse adicional se o exercício fosse colocado em uma das chaves emblemáticas desses nossos tempos de crise paradigmática do marxismo e de fim do comunismo histórico.

Assim, nosso esquema investigativo procuraria isolar de uma discussão de fim de século a relação modernização/política também como portadora enigmática de alguns dos principais impasses do pensamento de esquerda no Brasil contemporâneo. Longe certamente da chamada sociologia da modernização, daí estaríamos elegendo um eixo que permitiria adiantar conjeturas sobre as trajetórias dos dois grupos intelectuais ‑ no contexto elaborativo do pensamento comunista brasileiro.

Debatendo-se os mais antigos deles nas malhas traiçoeiras do nacional-desenvolvimentismo, para afirmá-lo ou para negá-lo à luz da "realidade brasileira" capturada pelo ângulo do marxismo-leninismo vis-à-vis da "tática" de frente única, a grande marca da política comunista contemporânea. Os mais jovens, tempos depois, abrindo a "caixa preta" da modernização burguesa do país; com outros referentes superando o terceiro-mundismo da interpretação pecebista, para desdobrar aquela política numa via democrática ao socialismo.

Como pano de fundo: a idéia insistente de relançar a discussão pecebista, colocando-a agora nos parâmetros das várias leituras pós-marxistas sobre o tema da modernização, quase todas levando ao redimensionamento da política de vocação socialista.[3]

Além dos esclarecimentos a serem feitos, como, por exemplo, na relação daqueles "clássicos" com o seu partido[4]; e de contextualizar controvérsias representativas, gostaríamos de desenvolver os seguintes pontos como trilhas investigativas:

a) Saber como o tema da modernização das sociedades agrárias se teria feito presente no pensamento daqueles intelectuais de velha geração. A modernização aparece aí mais como enigma, com o qual eles se deparam. Ou, como em Sodré, depois de uma procura de singularidade em uma revolução burguesa inconclusa, mas promissora; e/ou após descoberta de um precoce "capitalismo colonial" também singularizante, mas, como no caso da leitura pradiana, que não se generaliza para o conjunto da formação social brasileira, que ainda permaneceria "semicolonial"; dando lugar, ademais, a uma conclusão política mais ortodoxa da interpretação da realidade.[5] 

Apressemo-nos em dizer que tanto Sodré quanto Caio Prado desde logo não proclamam nem ortodoxia "direitista", nem esquerdismo. Na observação de vários sobre a elaboração pecebista, e só de alguns poucos sobre nossos autores, ao não disporem eles (e o PCB) de um estoque conceitual mais articulado, dificilmente iriam decifrar o segredo estratégico de nossa formação social, capitalista e singular.

b) Querendo ser mais específicos, poderíamos recorrer ao velho hábito (leniniano) de tudo ver pela "ótica do encaminhamento da questão agrária", para remontarmo-nos àqueles "clássicos" aventurando conjetura sobre os processos elaborativos e os significados mais genéricos de suas teorias agrárias, equacionando a associação moderno/atraso para a compreensão do pecebismo contemporâneo, no sentido das fundamentações e objeções que têm procedência em tais autores.[6]

c) Nessa mesma ordem de idéias, na contrapartida, os novos intelectuais compareceriam, primeiro, enquanto superação dialética (na expressão da época) e, depois, como desestruturação do pensamento pecebista a partir de um novo patamar paradigmático, tirado de problematizações em torno da crise dos marxismos dos anos 70, da rediscussão das teorias do Brasil contemporâneo e das tentativas de redesenho da noção de socialismo.[7]

2. Sodré: sem a muralha de preconceitos[8]

Com os propósitos os mais diversos tem sido apontada em nossos autores carência expressiva de um estoque conceitual mais estruturado e capaz de levar a uma teoria de Brasil mais consistente; todavia, em poucas ocasiões tem sido lançada uma indagação mais específica sobre a relação entre uma interpretação do país assim produzida e os parâmetros de formulação política mais claramente conduzentes à estratégia de frente única.[9]

A intersecção daquelas dimensões investigativas, entretanto, pode trazer a novidade de encontrarmos, abstraída a "couraça ideológica" de que fala Moisés Vinhas,[10] num caso, e ao contrário do que se supõe, um esforço, complicado, mas não desprezível, de procura de uma "compreensão teórica da particularidade brasileira",[11] que aqui averiguaríamos para ver como ele leva (de qualquer modo) à política de frente única; e no caso de Caio Prado, intuições brilhantes sobre a "formação do Brasil contemporâneo",[12] e aí, por sua vez, teríamos de ver como elas conduzem ao questionamento (errôneo) da política frentista do final dos anos 50, justamente pelo fato de o analista embaralhar-se entre a pesquisa empírica e o deciframento da modernização que as teorias não-clássicas poderiam bem melhor orientar, se a elas o historiador paulista tivesse recorrido.[13] Guido Mantega considera Sodré o responsável pela forma mais elaborada do Modelo Democrático-Burguês, consolidada em três dos trabalhos do período isebiano: Introdução à revolução brasileira (1958), Formação histórica do Brasil (1962) e História da burguesia brasileira (1964). Essa construção teórica converge com o "Modelo de substituição de importações", como lhe chama o historiador econômico, para conformar a base do imaginário político-ideológico das forças mobilizadas em torno do nacional-desenvolvimentismo, durante a última fase do período populista; uma ideologia contígua às representações do PCB (com seu processo formulativo, é certo, mais da política).[14]

José Paulo Neto vai muito mais longe e o vê como um componente axial do florescimento que o marxismo brasileiro, libertando-se do dogmatismo, começa a ter no final dos anos 50.[15]

Essa teoria de Brasil explicita-se em Sodré no contexto de sua militância dos anos 50 no Clube Militar e do seu ingresso no Iseb, e após uma mudança em seus referenciais teórico-metodológicos que consistiria na superação das influências do materialismo vulgar e na plena assimilação do marxismo, destacando-se o recurso a Lukács, então considerado um dos autores mais criativos dessa tradição, a que recorre Sodré desde muito cedo.[16]

Sodré manterá as suas teses centrais, sobretudo a principal delas - a da "regressão feudal" consagrada no Formação histórica do Brasil - por 30 longos anos, durante os quais, afora o PCB, elas nunca receberiam acolhida expressiva, nem os seus escritos iriam servir como esquemas e pontos de partida para outros desdobramentos investigativos, como ocorre com Caio Prado Jr.; pelo contrário, lhe tributaram muita adversidade.[17] Embora nem sempre fique assentado na cena pública pecebista quais eram as relações entre Sodré e o PCB, as de sua obra com a "linha política" oficial são de expressiva convergência, e de mútua aceitação.

Sodré a posteriori também relata que a sua construção da particularidade brasileira se organiza presidida por três premissas originárias: a do desenvolvimento desigual, relevante quando se focaliza a emergência do Brasil para a história, a ser levada em conta na discussão dos problemas históricos e a recomendar atenção cuidadosa na passagem do universal ao particular; a da "contemporaneidade do não-coetâneo" das formas sociais, dada a diversidade e extensão do país; e o aspecto da transplantação dos elementos que fundamentam a sociedade dos descobridores.[18]

Nessa lógica conformativa, a importação das instituições agrárias originárias teriam aqui um caráter meramente instrumental, sobretudo o componente de subordinação da relação semifeudal, que é o elemento realçado por Sodré como expressivo do mundo de relações características do latifúndio decadente - o objeto que ele quer iluminar, e que, aliás, merece atenção de todos os seus interlocutores.[19] Um mundo remanescente, porém "obstáculo" à instauração plena da ordem capitalista, como comprovaria a história: primeiro no exemplo dos sucessivos embates das "classes médias" emergentes desde a segunda metade do século XIX como núcleo do protagonismo progressista; depois na revolução burguesa antilatifundiária de 1930; sobremaneira no tempo mais contemporâneo da chamada "revolução brasileira" à época das transformações aceleradas e do crescimento dos movimentos nacional-populares.[20]

Nesse tipo de controvérsia sobre os modos de produção, a ênfase de Sodré é para o atraso particularizante da ordem burguesa, mas enquanto processo essencialmente declinante, apostando o autor no moderno em desenvolvimento - a industrialização - a requerer a supressão desse atraso, que inclusive corta longitudinalmente toda a formação social. Daí a importância da burguesia voltada para o mercado interno, das classes médias (aliás, "pequena burguesia urbana", um dos dois "aliados fundamentais" do proletariado, como as define o PCB, com maior hierarquização, em meados dos anos 60, diferentemente de alguns "dependentistas"); e daí, em suma, a evidência da política de frente única, ancorada no policlassismo, e de reforma do capitalismo nacional.

Em sua obra básica - Formação histórica do Brasil, na 1a. edição de 1962 - a princípio Sodré recorre a Mariátegui, que batiza aquele atraso de feudalidade num contexto em que a burguesia latino-americana não desenvolve o seu ímpeto revolucionário; e, depois, terminada a sua construção de Brasil contemporâneo, Sodré cita um "estudioso" (seria Lênin de O programa agrário da social-democracia?), que lhe sugere avaliar de modo "não-clássico" a particularidade da modernização brasileira. Vale a pena citar:

"As contradições das forças produtivas e as relações de produção chegaram a um ponto crucial. Elas nos fornecem a caracterização do Brasil, segundo um estudioso, de um desenvolvimento à moda prussiana, sob a ação e a influência do imperialismo. Avança sem dúvida a penetração capitalista, mas os restos feudais vão sendo conservados e o monopólio da terra zelosamente defendido."[21]

3. A descrença de Caio Prado Jr. na modernização

Os críticos de época das teses de Sodré contrapõem à principal delas a existência de relações capitalistas como a "dialética econômica do campo brasileiro". Num sentido diferente dele, falam do atraso agrário, mas predominante em áreas de importância produtiva residual; e de um atraso incrustado na ponta moderna da agricultura enquanto formas sociais remanescentes. Mas têm dificuldades para reconhecer o desenvolvimento capitalista no conjunto da formação social, diferentemente de Sodré, que, a seu modo, faz desse reconhecimento o fundamento da política de frente única.

Caio Prado "setorializa" o seu capitalismo agrário, chega a defender a generalização da legislação trabalhista para erradicar as relações sociais pretéritas como alternativa à reforma agrária da revolução antifeudal de visualização leniniana, para a qual ele não encontra centralidade na agricultura brasileira.[22] Caio Prado nega o antiimperialismo burguês contrapondo a fragilidade do industrialismo "artificial"; e, já passada a primeira metade dos anos 60, recusa importância à nova fase desenvolvimentista da "internacionalização do mercado interno", sempre vendo como atual da formação social brasileira a contradição permanente entre formas remanescentes do seu antigo Estatuto colonial e a inconclusa construção de uma economia voltada para as necessidades da população através de um (demiurgo) Estado verdadeiramente nacional.[23] 

Bresser Pereira adverte que a raiz dessa resistência de Caio Prado em reconhecer a modernização burguesa brasileira vem de longe, do uso da categoria de circulação como critério de definição do capitalismo agroexportador, na hora de sua teoria do Brasil Colônia, mas daí ele nunca mais se afastaria de sua imagem sombria do Brasil urbano-industrial.[24]

Já Carlos Nelson Coutinho vê no primeiro Caio Prado Jr. intuições geniais similares (e elaboradas contemporaneamente) às de Gramsci, mas também observa que, depois, o autor de Evolução política do Brasil e de Formação do Brasil contemporâneo, limitado pelo excesso de acentuação no atraso, perde a antevisão intuitiva da conformação do país moderno como processo prussiano de modernização agrária, e ainda sugere que ele não teria sido capaz de seqüenciar os passos criativos por desconhecer as teorias das "revoluções pelo alto".[25]

É como se aquele erro de "prioridade metodológica", na expressão de Bresser Pereira, fecundo para dar conta da lógica de uma formação social "mais externamente determinada", se transfigurasse num estranho simétrico à hora que o "econômico esquecido" é reposto dentro do marxismo-leninismo para caracterizar o Brasil urbano-industrial de meados dos anos 50.

Tem razão Daniel Pécaut ao chamar a atenção para o clima de reversão paradigmática após 64, quando então se deixava para trás o modelo "dos obstáculos ao desenvolvimento", cuja remoção ocorreria no contexto de uma "grande política" (mesmo uma política de frente única "economicista"), para se adotar uma espécie de paradigma da "causalidade dependentista-estrutural". Sem o Estado da velha cultura política, presidente da emancipação industrialista bloqueada pelo regime militar (como se acreditava no início), formava-se clima propício para a aceitação das "teorias" sublinhadoras radicais do espectro da estagnação e do "desenvolvimento do subdesenvolvimento". Pécaut sustenta que esse clima abria caminho para a reversão do plano da política que, se antes já indevidamente determinado pela economia, então desaparece por trás do "estrutural"; e pontualiza que, à medida que as teorias dependentistas se tornam hegemônicas, finalmente a política nesses anos irá se reduzir totalmente ao plano da economia.[26]

Daí pode vir o seguinte equacionamento: o ponto de contato entre Caio Prado, que rejeita o "pecebismo político" desde uma crítica do "apriorismo conceitual" e das "improvisações" da tática de frente única; e um autor tão diferente como André Gunder Frank, e que também faz a crítica à feudalidade, estaria em que eles compartilham do mesmo horizonte estagnacionista a que alimenta um mesmo marxismo?

Por outro lado, não é totalmente obra do acaso que dois dos comentadores de Caio Prado e de Sodré, situados na encruzilhada da crise final do pecebismo, tenham procurado recortar nesses autores contribuições historiográficas substanciais. Em Caio Prado haveria antecipações decisivas para a compreensão do processo de modernização; passos irrecusáveis para interpretações das vias não-clássicas de imposição do capitalismo no Brasil e na América Latina.[27] Mas Carlos Nelson Coutinho atribui a indiferença de Caio Prado Jr. ao tema contemporâneo da democracia à carência das teorias sobre a modernização (e, diríamos mais, daí precisamente a raiz do seu permanente estranhamento em relação à política frentista, praticada pelo PCB desde 1955).

Por sua vez, José Paulo Neto cita o final do livro Formação histórica do Brasil, onde o autor se define a favor da democracia (que ele esclarece não se confundir com uma "legalidade qualquer") "como caminho mais apropriado" ao desenvolvimento da revolução brasileira. Mas não oculta que o reparo mais importante a fazer, menos de tipo teórico-metodológico, prende-se mais às bases empíricas das generalizações das pesquisas do intelectual isebiano-pecebista; não deixando de registrar todavia a sua discordância (seriam hipóteses) com as formulações nelsonwerneckianas de l958/64 sobre a revolução brasileira, por ele não ter considerado adequadamente as implicações sócio-econômicas do nível de integração do país à economia mundial, e o avanço do capitalismo brasileiro da época.[28]

4. Os eurocomunistas brasileiros: da frente única à política democrática

A tradição frentista do PCB, como se sabe, nasce da resistência à onda conspirativa subseqüente à morte de Vargas, a questionar desde então a visão de Brasil "estagnado e sob domínio colonial"; imagem que não explicara a frente ampla constitucionalista que surgira naquela época para barrar o golpe de Estado.

A partir daí se irá pôr em dúvida não somente a incompreensão diante da evolução capitalista do país, mas, e cada vez mais, sobremaneira na passagem dos anos 70 para a década de 80, a resistência dentro do PCB em aceitar a idéia de que as liberdades, em lugar de uso instrumental, deveriam ser o eixo permanente da renovação do país.

Com efeito, desde 1956/57, o reconhecimento do desenvolvimento capitalista brasileiro resultou numa elaboração (abstraídas as contradições do processo) que inicialmente erosionou as posturas revolucionaristas da moldura estalinista e, progressivamente, começou a pôr em dúvida a própria idéia de ruptura revolucionária.

A defesa das "liberdades democráticas", por sua vez, forçou passagem para a idéia mais abrangente, heterodoxa, de que, mediante sucessivas frentes únicas, seria possível desenvolver uma política de "medidas progressistas" nos marcos do regime capitalista, em aproximação aos objetivos estratégicos. Irá persistir, no entanto, a tensão entre essa tática de soluções positivas e a idéia de ruptura, pedida pelo diagnóstico do país, ainda terceiro-mundista.

Correlacionando esse pecebismo, que se irá praticar no pré-64 e sobremaneira depois dele, uma parte da intelectualidade comunista desenvolveu, de meados dos anos 70 em diante, uma investigação sobre a natureza da imposição do modo de produção capitalista no país, e começou a defender dentro do PCB a idéia de que a possibilidade de reversão da ordem burguesa excludente, imposta neste país com a instrumentalização privatista do Estado, sem a construção de uma institucionalidade democrática, encontrava lugar justamente no plano da política; plano da política, aliás, evidenciado pela tática da frente única com a qual se confundia o próprio partido.

O que singulariza essa intelectualidade é o fato de ela, procurando alargar as perspectivas, ter incorporado reflexões marxistas, até então consideradas menores, sobre os processos de modernização burguesa, em ruptura com o paradigma clássico; e abrir-se completamente ao pensamento gramsciano e à discussão eurocomunista sobre o nexo entre democracia e socialismo, afastando-se do imaginário da III Internacional.

Para uma sumária trajetória dessa intelectualide pode-se dizer que ela se situa na cena pecebista no início dos anos 60 no contexto de uma espécie de projeto de flexibilização da cultura marxista no Brasil estimulado pela Editora Civilização Brasileira,[29] e que, com o passar do tempo, iria operar uma duplicação dos referentes teóricos - do Lênin da revolução democrática de Duas táticas para o Lênin da importância atribuída à forma prussiana de evolução agrária em O programa agrário da social-democracia russa (1907); do Lukács daquele projeto de renovação filosófica e estética do marxismo para o Lukács interessado em explorar a reflexão leniniana sobre o prussianismo na sua crítica ao irracionalismo do século XX; do Gramsci filósofo e crítico da cultura ao teórico da política (o do conceito de revolução passiva e da reflexão sobre a via socialista no Ocidente); incluídas aí também a relação de uma parte dessa intelectualidade com outras teorizações, como as de Barrington Moore sobre o papel das classes agrárias nas vias de acesso ao mundo moderno; e a interlocução entre o marxismo e a bibliografia clássica sobre os processos contemporâneos de transição política dos regimes autoritários à democracia, abrindo o caminho para um processo de alargamento de paradigmas.[30]

O que era intuição em Caio Prado - as "pegadas gramscianas" encontradas por Carlos Nelson Coutinho nas considerações pradianas de "revolução pelo alto" - e tentativa também de particularizar o modelo democrático-burguês em Sodré - a referência temporã ao Lukács da crítica literária e da estética na 3a. edição da História da literatura brasileira (1960) e a menção à via prussiana em sua Formação histórica do Brasil (1962) - nessa intelectualidade eurocomunista são pontos de apoio explícitos para realizar um processo substantivador da política frentista praticada na experiência contemporânea; processo elaborativo que poderíamos chamar de segunda renovação pecebista, a expressão querendo aqui fazer comparação com os debates sobre o Relatório Kruchev de conseqüências inovadoras que abalaram o PCB em 1956/57.

5. Possibilidades investigativas

Como se trata de revisitar autores "clássicos" em comparação com as novas perspectivas teóricas de uma jovem intelectualidade pecebista - que não se posta como sua seguidora - o presente exercício de pesquisa vai contrapôr reflexões sobre o par atraso/moderno feitas num tempo de ideologias econômicas[31] com novas possibilidades investigativas. Estas são discussões que surgem em torno da política pecebista por necessidade de um agir mais diversificado; convertem-se em empenho de construção de uma outra imagem de Brasil, moderno e complexificado; e distanciam-se tanto do paradigma da política-conseqüência do "estrutural", quanto da fragmentação do fazer política, traço este último que vai ameaçar o pensamento de esquerda quando empalidecem os mitos unificadores (nacional-desenvolvimentismo, teoria da dependência), por onde tudo se via.[32]

Voltando por fim ao nosso ponto: os referentes dos "clássicos" pecebistas serão, assim, confrontados com o tema do desenvolvimentismo; e a "teoria" da frente única (e os modelos de suas construções), correlacionados com uma concepção da "questão nacional", que nestas paragens por algo se define como questão de afirmação econômica; os novos paradigmas sobre os processos de modernização de sociedades agrárias a que recorre, e as teorizações sobre a sociedade brasileira que essa jovem intelectualidade dos anos 70 produz precisarão ser estranhados de seus referentes, sobremaneira os de inspiração gramsciana-eurocomunista, como explicitação da tática de frente única em política democrática.

Em suma: por mais diminutas que sejam essas possibilidades reconstrutivas do pecebismo contemporâneo, em último termo a nossa expectativa é a de que não resulta de todo desinteressante o processo de sua "desconstrução", ou seja, e parafraseando a Laclau: como o fim de algo não pode ser um gesto vazio, procurar saber quais os pontos do temário deste tipo de cultura política pode ser útil para sabermos quais os óbices com os quais a esquerda atual irá se deparar quando se dispuser a abraçar a tese da radicalidade democrática de um modo não-extrínseco nesta hora pós-comunista de muitas dificuldades.

 

Notas

[1] Ver nosso estudo sobre os anos 50: A primeira renovação pecebista. Reflexos do XX Congresso do PCUS no PCB (1956/57). Belo Horizonte, ed. Oficina de Livros, 1988 e, sucintamente, o ensaio "Pensamento moderno e crise no PCB dos anos 50" in: VA: História do marxismo no Brasil, Rio, Paz e Terra, vol. l, 1991.

[2] A propósito dos eurocomunistas brasileiros, ver a coletânea O pecebismo inconcluso, Seropédica, Itaguaí, RJ, Ed. Sociedade do Livro/UFRRJ, 1992, e o artigo "Modernização e política na esquerda pecebista", por aparecer brevemente na revista da UFRRJ.

[3] Referimo-nos aqui aos autores que se debruçaram sobre as transformações estruturais do capitalismo avançado, como Habermas e Offe; Laclau e, ultimamente, David Harvey. Sem falar na vasta bibliografia sobre o pós-moderno e os chamados "novos movimentos sociais". O esquema de Harvey coloca como eixos da nova pesquisa de vocação militante nesta fase pós-comunista o estudo minucioso da dinâmica transformadora e da revolução tecnológica e organizacional no capitalismo (acumulação flexível, pós-fordismo) e o debate sobre o pós-moderno, levando-o para além dos chamados produtores da cultura. Cf. "Reestruturação capitalista e socialismo", in: Novos Rumos, nº 21, outubro de 1993. Um interessante registro dessas últimas discussões pode ser visto no ensaio de Joanildo Burity "Transbordamento do social e hegemonia: qual o jogo da democracia?" por aparecer in VA: Contemporaneidade e política, Ed. Sociedade do Livro/UFRRJ, Seropédica, Itaguaí, RJ.

[4] Sobre Caio Prado Jr. consulte-se a dissertação de mestrado de Cláudio Souza Freitas: "'Realidade brasileira' e militância: o diálogo de Caio Prado Jr. com o PCB", Seropédica, Itaguaí, RJ, CPDA/FRRJ, 1993.

[5] Vários autores têm assinalado a associação de Caio Prado com a linha de pensamento de André Gunder Frank, o formulador do modelo alternativo ao imaginário político dos anos 60, rebatizado por Guido Mantega de "modelo de subdesenvolvimento capitalista", onde situa Caio Prado Jr. (Cf. A economia política brasileira, 5. ed. Rio de Janeiro, Ed. Vozes, 1990). O próprio Gunder Frank menciona o historiador paulista entre os seus adeptos brasileiros no ensaio "Desenvolvimento e subdesenvolvimento latino-americano" (1966), in: Luís Pereira: Urbanização e subdesenvolvimento, 6. ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1979. Frank cita o livro História econômica do Brasil (1962), e não menciona Formação do Brasil contemporânea, um livro-chave, então já em várias edições.

[6] No caso desse "pecebismo contemporâneo" referimo-nos anteriormente (ver O pecebismo inconcluso, op. cit.) mais às idéias propriamente políticas, ou seja, àquilo que os comunistas chamavam nos anos 50/60 de "tática". Aqui pretendemos ressaltar preferencialmente o significado "mais estratégico" das proposições dos autores, e do PCB, sobre o tema da modernização da sociedade de base agrária como a brasileira.

[7] A propósito, não deve intrigar que no final desse processo pecebistas e ex-pecebistas ligados àquela vertente intelectual digam aberta e claramente que "... o movimento real que traz em si a idéia e a possibilidade do socialismo é a luta pelo desenvolvimento econômico com justiça social no terreno das instituições democráticas já conquistadas que devemos aperfeiçoar no sentido de fazer delas uma via para a mudança social". Cf. manifesto "Contribuição para o processo de recriação da esquerda", in: O pecebismo inconcluso, op. cit.

[8]  A expressão pertence a José Paulo Neto em sua introdução à 2a. edição do livro de Sodré: O naturalismo no Brasil, B. Horizonte, Oficina de Livros, 1990.

[9] Os autores sublinham falta de caracterização da formação social brasileira e a repetição de fórmulas da III IC. Sodré tem sido o intelectual do campo pecebista mais assinalado pela pobreza de sua elaboração, embora a cobrança, com freqüência, tenha sido feita de modo muito problemático. Exemplo disso são as críticas exasperadas de Carlos Guilherme Mota citadas por Leandro Konder no seu livro Intelectuais brasileiros & marxismo, Belo Horizonte, ed. Oficina de Livros, 1991.

[10] Abstraída a "couraça ideológica" que envolveu de modo dramático a vida política e intelectual do PCB ao longo do tempo. Vários os seus nomes: dogmatismo, estalinismo, marxismo-leninismo. Cf. O partidão, S. Paulo, ed. LECH, 1982.

[11] Desse modo, José Paulo Neto adianta uma hipótese sobre a obra de Sodré, op. cit.

[12] Bresser Pereira considera (e nisso expressa opinião muito mais difundida) a interpretação pradiana do Brasil Colônia como definitiva. Cf. "Seis interpretações do Brasil", in: Dados, Rio de Janeiro, vol. 25, nº 3, 1982.

[13] Veremos mais adiante como Carlos Nelson Coutinho tenta chamar a atenção para as intuições do primeiro Caio Prado Jr. (da Evolução política do Brasil, de 1933) sobre os "traços de revolução pelo alto" dos processos de modernização burguesa da segunda metade do século passado. Desconhecendo as teorias marxistas dessas "revoluções pelo alto" (Lênin, Lukács e Gramsci...). Caio Prado ter-se-ia embaraçado diante da singularidade desses processos. Cf. "A imagem de Brasil de Caio Prado Jr." (1989), in: Cultura e sociedade no Brasil, Belo Horizonte, ed. Oficina de Livros, 1990.

[14] O texto político pecebista correlato a essa construção de Sodré é a Declaração de março de 1958, que poderia ainda substantivar-se com o projeto de teses do V Congresso de 1960 (projeto, e não a Resolução aprovado no final do evento). Cf. R. Santos: "A herança do pecebismo contemporâneo", in: Novos Rumos, op. cit.

[15] Op. cit.

[16] A observação sobre os vestígios de materialismo vulgar é de Leandro Konder, que chama a atenção para o caráter pioneiro no Brasil da utilização  de Lukács por Sodré numa época em que ele é completamente ignorado no país. Konder registra o aparecimento desse Lukács na 3a. ed. integralmente refundida da História da literatura brasileira (a 1a. é de 1938), feita pela Editora José Olympio em 1960. Cf. L. Konder, op. cit. Por outra parte, Lukács (um outro Lukács...) vai reaparecer em Formação histórica do Brasil, de 1962, como comentaremos mais adiante.

[17] José Paulo Neto dá a este entorno negativo o significado de uma verdadeira "muralha de preconceitos", prevalecente na intelectualidade brasileira. Op. cit. O próprio autor, quase trinta anos após ter publicado Formação histórica do Brasil, também reclama da reação ideológico-política a suas proposições, em função de ter sido partidário da resistência gradualística e democrática ao regime de 64. Cf. "A formação do capitalismo no Brasil", in: Capitalismo e revolução burguesa no Brasil, Belo Horizonte, ed. Oficina de Livros, 1990.

[18] Cf. "A formação do capitalismo no Brasil", op. cit.

[19] Idem.

[20] Cf. Formação histórica do Brasil, op. cit.

[21] Cf. p. 357. Sodré põe uma nota de pé de página para mencionar Caio Prado Jr. como adversário dessa tese da feudalidade. A referência ao caminho prussiano não aparece nesta (e em nenhuma outra) nota e não tem nenhuma atribuição; obviamente ela não diz respeito ao historiador paulista.

[22] O argumento de Caio Prado, certamente numa de suas raras referências teóricas, é o de que a estrutura conceitual leniniana dessa revolução antifeudal - economia camponesa, extração não-econômica de excedente, ocupação efetiva da terra, empresariamento da produção, etc. - não encontra correspondência na realidade brasileira. O que mais se pareceria aqui à economia camponesa - a pequena produção - restringe-se a áreas de pouca importância econômica, etc. E não pode servir de base para fundamentar aquela reforma agrária. Parcela esmagadoramente substancial do trabalhador brasileiro vincula-se a setores produtivos relevantes como vendedores da força de trabalho. Cf. A revolução brasileira, São Paulo, Ed. Brasiliense, esp. cap. 2,  1966.

[23] Ver Cláudio Souza Freitas, op. cit.

[24] Bresser Pereira, op. cit.

[25] Op. cit.

[26] Cf. Os intelectuais e a política no Brasil, São Paulo, Ed. Ática, 1990.

[27] Carlos Nelson Coutinho, op. cit.

[28] José Paulo Neto, op. cit.

[29] Carlos Nelson Coutinho: "A recepção de Gramsci no Brasil", in: Cultura e sociedade no Brasil, op. cit.

[30] Ver Werneck Vianna:  Liberalismo e sindicato no Brasil (1976). 2. ed. Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 1978; e: "O problema da cidadania na hora da transição democrática" (1982), in: Travessia, Rio de Janeiro, Ed. Taurus, 1986.

[31] A referência implicita a igualização, neste ponto, das chamadas teorias da modernização com o Materialismo Histórico. Sobre este último, ver J. Habermas: "Ciência e técnica enquanto ideologia", in: Os pensadores, São Paulo, Ed. Abril, 1980.

[32] A propósito, Pécaut observa que a ausência de uma interpretação global logo após a dèbâcle dos paradigmas dos anos 60 leva ao desconcerto, à crença no colapso do regime militar de 64 a curto termo e à falta de orientação prática. Um clima intelectual com certo vigor entre 1964 e 1968, e que não poupa a Caio Prado Jr. que circunscreve suas proposições ao tema das relações agrárias, como doutra parte também observaria Carlos Nelson Coutinho no ensaio citado. Pécaut sublinha o fato de que o "estruturalismo" inerente ao tema da dependência não referencia opções práticas; abre o caminho para o mais puro voluntarismo em nome da libertação nacional e da libertação social. Op. cit., p. 246.