Fabrício Pereira da Silva
A história do Levante dos Malês
Estudos Sociedade e Agricultura, 20, abril 2003: 203-208.
Fabrício Pereira da Silva é mestrando do Programa de Pós-graduação em História Social (PPGHIS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Acontecimento singular na história brasileira, uma revolta de escravos, na maioria muçulmanos, ocorrida na Bahia em 1835, o Levante dos Malês vem despertando a atenção de muitos pesquisadores e já recebeu as mais diversas interpretações. No entanto, o trabalho que em nossa opinião apresenta a análise mais completa sobre o Levante é o livro do professor da Universidade Federal da Bahia João José Reis, o já clássico Rebelião escrava no Brasil: a história do Levante dos Malês (1835), editado pela primeira vez em 1986 pela Brasiliense, e há muito esgotado. Pois foi com imensa alegria que se recebeu a notícia de sua republicação este ano pela Companhia das Letras. Uma edição revista e ampliada, com 665 páginas, ricamente ilustrada e acrescida de um glossário de termos religiosos muçulmanos, de detalhadas fontes bibliográficas e notas.
João José Reis apresenta ao longo da obra os aspectos mais relevantes da revolta. Mostra que, apesar do Levante dos Malês se situar num período especialmente conturbado da vida nacional e geralmente ser classificado como mais uma “revolta do Período Regencial”, essa ligação existe mas é secundária. O Levante pertence antes de tudo à tradição de rebeliões escravas na Bahia. Nessa época ocorreram várias, sendo a Rebelião Malê a mais grave e a última delas. Ela possui uma outra singularidade em relação às demais: a presença majoritária de muçulmanos (daí o nome de Malê, como os negros muçulmanos eram chamados na Bahia). Reis aponta ainda como fator significativo a forte presença em Salvador da escravidão de ganho (escravos que passavam o dia vagando pela cidade, prestando algum serviço ou vendendo mercadorias e obrigados a entregar a seus senhores um certo valor ao final do dia, podendo ficar com o excedente). É inegável a maior "liberdade" que esse tipo de escravidão oferecia para os contatos pessoais, os cultos religiosos e também para a organização de revoltas. Por isso, em geral, a rebeldia escrava nas cidades assumia a forma da revolta, ao passo que nas fazendas do interior ela se expressava como fuga para os quilombos.
O autor dedica um capítulo à descrição da revolta e o faz de forma tão viva que transporta o leitor para as vielas da cidade de Salvador de 1835. Mostra que a rebelião (que deve ter contado com até 600 participantes) durou apenas algumas horas, nas quais os revoltosos se tornaram senhores das ruas de Salvador. Revela também que ela repercutiu em todo o Império e no exterior, permanecendo por longo tempo na memória das classes dominantes da Bahia e mesmo da Corte, que tomaram diversas medidas para impedir que outro movimento similar ocorresse. A começar pela repressão aos envolvidos, descrita com detalhes pelo autor. Grande parte deles foi condenada a penas de castigo (chibatadas) e prisão. Um número considerável (libertos em geral) foi deportado para a África (primeira vez que essa pena foi instituída no Brasil) e uma menor parcela terminou condenada à morte.
Reis mostra que praticamente todo o núcleo organizador da revolta e a maior parte dos participantes eram muçulmanos. Quanto à sua etnia, a imensa maioria dos revoltosos tinha origem iorubana: majoritariamente nagôs, mas também hauçás, ewes e outras etnias iorubanas. O autor revela ainda a pequena participação de etnias originárias de Angola (Angola e Benguela), sendo quase inexistente a presença de grupos da Costa do Ouro (Costa e Mina).[1] O autor se refere, por fim, a uma parcela ínfima de crioulos (negros nascidos no Brasil) e pardos. A maioria esmagadora era realmente de africanos. Quanto à condição social e de trabalho dos revoltosos, a maior parte era composta de escravos, mas havia um grande número de libertos (algo em torno de 60% e 40%, respectivamente). Por certo eles estavam entre os miseráveis da sociedade, sendo que apenas um ou dois libertos revoltosos tinham uma condição econômica um pouco melhor. As ocupações mais comuns entre eles eram os serviços urbanos em geral, trabalho doméstico, artesanato e vendas. A maioria dos escravos participantes na revolta pertencia à categoria de escravos de ganho, enquanto um número menor, mas considerável, fazia serviços domésticos.
Para Reis, o Levante pode ser explicado através de um tripé: reli-gião, etnia e escravidão. Como influência secundária, ele alude ao período conturbado no Brasil (e especialmente na Bahia) no qual a revolta se deu. O que pode parecer à primeira vista uma saída fácil para a questão e um simples somatório de fatores se mostra na realidade uma interpretação que melhor contempla a complexidade do processo histórico que levou ao Levante. Tampouco é um somatório de várias idéias: Reis considera criticamente as visões anteriores sobre o Levante e retrabalha alguns elementos de outros autores, partindo sempre de um mergulho na sociedade baiana do período, tarefa até então não realizada.
Reis afirma que nunca teve dúvidas acerca da inspiração religiosa do movimento. Para ele, a ideologia da Revolta de 1835 foi o islã e seu núcleo dirigente era malê. Mas a importante presença muçulmana que o distingue dos demais movimentos de africanos não pode ocultar outros fatores que mobilizaram os participantes do Levante, percebidos por Reis em depoimentos de época, principalmente dos seus envolvidos. Ao mesmo tempo que muitos participaram motivados pela fé muçulmana, outros o fizeram por serem nagôs fundamentalmente. Aqui é necessário abrir um parêntesis: o limite entre a identidade étnica e a identidade religiosa era muito maleável nos africanos da Bahia daquele período. A identidade étnica deles era extremamente dinâmica, transformando-se em algo diferente daquela que existia em solo africano. Por outro lado, o islã, apesar de ser uma religião universalista, tinha aqui um particularismo étnico, pois estava mais difundida em certas etnias como no caso dos próprios nagôs e dos hauçás. Assim diz o próprio Reis: “Embora o islamismo não seja uma religião étnica (...) ela parece ter se tornado exatamente isso nesta rebelião específica, por haver representado sobretudo a força espiritual e política de negros nagôs” (p. 349).
Ademais, o autor sustenta que haveria a identidade escrava, de classe: “O movimento de 1835 se beneficiou da solidariedade coletiva associada ao trabalho urbano. Chamemos a isto de uma dimensão de classe da revolta, mas classe no sentido dinâmico empregado por E. P. Thompson” (p. 386). Em outro texto, Reis acrescenta: “A rebelião teria tido também uma orientação de classe por ter sido feita e dirigida majoritariamente por escravos e porque a linguagem anti-senhorial dos presos revela sua face antiescravista. Foi também assim considerada pelo Estado escravocrata, que definiu, reprimiu e castigou os rebeldes acionando uma linguagem e uma legislação especificamente antiescrava.”[2]
Em suma, João José Reis apresenta sua leitura do Levante dos Malês como uma combinação de luta religiosa, étnica e de classe. O autor é ousado ao interligar elementos que seriam inconciliáveis para muitos. Aproveitando o que há de melhor nos trabalhos anteriores sobre o Levante, Reis realça a religião muçulmana como o seu motor principal, ressalvando não ser ele o único e que essa marca não significa que os malês estivessem dando prosseguimento à jihad africana em solo baiano.
No entanto, o elemento “de classe” sublinhado por Reis na revolta merece alguns comentários. Parece claro que a condição econômica inferior dos envolvidos tem sua participação na arregimentação de participantes para a revolta, mas isso não implica necessariamente uma interpretação do Levante como uma luta de classes entre escravos e senhores. Há uma participação maior de escravos que de libertos, mas a diferença é pequena (algo em torno de 20%). Reis não considera isso relevante, afirmando que os próprios libertos estariam vinculados a uma relação que remetia à escravidão, estando submetidos aos senhores escravocratas. No entanto, essa relativização da condição de liberto encontra limitações. Com todas as dificuldades que pudessem enfrentar, os libertos estavam numa posição muito diferente da dos escravos, observando-se vários casos de libertos que possuíam seus próprios escravos.
Um mergulho nas declarações dos envolvidos nos processos (a fonte principal de Reis) mostra que os planos para depois da vitória eram de massacre dos brancos, mulatos e crioulos (negros nascidos no Brasil), eventualmente com a escravização de mulatos, e o possível massacre dos africanos que porventura se colocassem contra a revolta. Esses planos, e outras declarações, revelam que o Levante era entendido como uma luta da “terra de negro” contra a “terra de branco”, nos dizeres dos próprios participantes. O que isso significava? Significava que a revolta era uma luta dos africanos (escravos ou não) contra os “brasileiros” nascidos no Brasil (senhores ou não, brancos ou negros) e eventualmente contra os africanos que se colocassem ao lado dos “brasileiros”. Nesse confronto, os rebeldes consideravam os crioulos e mulatos aliados dos brancos (identificação que provinha do fato de haverem nascido na “terra de branco”). Essa intrigante divisão entre a “terra de branco” e a “terra de negro” merece um estudo mais aprofundado. Em última instância, ela deverá ter ligação com a condição escrava dos africanos. Foi por causa dessa condição que eles foram arrancados de sua terra e trazidos para terra estrangeira, sendo ela o motivo de sua posição subalterna. Mas os revoltosos não se viam como escravos em luta contra seus senhores. E nem mesmo os que enfrentaram a revolta assim agiram nessa polarização escravo/senhor, como o próprio Reis observa: “Os laços de cultura e nacionalidade uniram contra os africanos os mais poderosos e os mais miseráveis dos brasileiros, mesmo os que não possuíam escravo algum, ou que eram eles próprios escravos” (p. 546). De qualquer modo, parece inegável a dimensão política da revolta, já que a questão do poder (e também social) se colocava para os seus participantes. O autor tem razão ao apontar esse aspecto, e está fora de dúvida também que nessa reedição ele o trata de forma mais ampla e convincente que no texto da primeira edição do livro. Extensão no número consideravelmente maior de páginas que faz de Rebelião escrava no Brasil: a história do Levante dos Malês a mais completa sobre o tema da revolta de 1835.
João José Reis. Rebelião escrava no Brasil: a história do Levante dos Malês (1835). São Paulo: Companhia das Letras, 2003, 665p.
Notas[1] No entanto, os números oferecidos pelo autor referentes a todos os escravos de Salvador revelam que essas etnias eram consideráveis: cerca de 20% dos escravos de Salvador eram oriundos da Costa do Ouro e cerca de 30%, de Angola. Os iorubanos (originários do Golfo de Benin) eram majoritários (aproximadamente 50%).
[2] Cf. Um Balanço dos Estudos sobre as Revoltas Escravas da Bahia. In: Reis, João José (org.). Escravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 135.