Roberto José Moreira
Cultura, política e o mundo rural na contemporaneidade [1]
Estudos Sociedade e Agricultura, 20, abril 2003: 113-143.
Resumo: (Cultura, política e o mundo rural na contemporaneidade). Estas reflexões procuram localizar o mundo rural – seu conceito hegemônico, suas instituições, suas políticas e suas práticas – como parte constitutiva das revoluções burguesas e como elemento constitutivo do exercício e da legitimação da hegemonia cultural e política das elites nestas sociedades. O texto apresenta três movimentos narrativos. No primeiro, ao mesmo tempo em que o autor fala da constituição cultural da imagem do rural na modernidade, lança elementos para a compreensão do rural na atualidade, e procura demonstrar que está em curso uma mudança cultural dos sentidos que eram atribuídos ao rural na modernidade. O autor sugere que tais processos faz emergir, em nossa contemporaneidade, uma nova visão de mundo rural. No segundo momento, falando de um rural da modernidade e de rurais associados às diferentes formações sociais, o texto diferencia os lugares que o rural ocupou nos diferentes projetos nacionais e em tempos históricos distintos, e procura captar as especificidades das formações capitalistas periféricas, em especial a brasileira. O autor procura visualizar as ruralidades em sociedades centrais ou avançadas e em sociedades periféricas com modernidade incompleta e suas expressões nos embates hegemônicos e contra-hegemônicos de nossas sociedades globalizadas. Finalmente, o texto apresenta uma compreensão das políticas para o mundo rural como parte componente dos processos de legitimação e de dominação urbano-industrial, e indaga sobre as relações entre cultura, política e o mundo rural em uma narrativa do caso brasileiro.
Palavras-chave: cultura, rural, modernidade, pós-modernidade, política.
Abstract: (Culture, Politics and the Rural World in Contemporaneity). These reflections locate the rural world –its hegemonic concept, its institutions, policies and practices – as a constitutive part of the bourgeois revolutions as well as a constitutive element in the practice and in the legitimation of the cultural and political hegemony of the elites in those societies. The author develops three narrative movements. In the first, he discusses the cultural constitution of the image of the rural in modernity, outlines an understanding of the rural at the present time and shows that there is a cultural shift in progress concerning the meanings that were attributed to the rural in modernity. The author suggests that this leads to the contemporary emergence of a new vision of the rural world. In a second moment, the text points to the rural dimension of modernity and to the rural dimension connected to distinct social formations. The author attempts to show the different the places that the rural has occupied in different national projects and at distinct historical times, trying to bring forth the singularities of peripheral capitalist societies, in particular those of Brazil. He focuses on rural identities (ruralities) in central or advanced societies as well as in peripheral societies that are not completely modernized, showing their impact on the hegemonic and counter-hegemonic disputes in our globalized societies. Finally, the text presents a view of policies directed to the rural world as a constitutive part of the processes of urban-industrial legitimation and domination, and raises questions about the relations between culture, politics and rural in a narrative of the Brazilian case.
Key words: culture, rurality, modernity, postmodernity, politics.
Roberto José Moreira é professor do CPDA/UFRRJ.
Introdução
Estas reflexões procuram localizar o mundo rural – suas instituições, suas políticas e suas práticas – na análise da modernidade. O rural será aqui considerado como parte constitutiva das revoluções burguesas e das lutas pela independência colonial das sociedades ocidentais, e também como elemento constitutivo do exercício e da legitimação da hegemonia [2] cultural e política das elites nessas sociedades. Realizaremos três movimentos narrativos.
No primeiro, ao mesmo tempo em que estaremos falando da constituição cultural da imagem do rural na modernidade, estaremos lançando elementos para a compreensão do rural na atualidade. [3] Defenderemos a idéia de que está em curso uma mudança cultural dos sentidos que eram atribuídos ao rural na modernidade fazendo emergir, em nossa contemporaneidade, uma nova visão de rural e de mundo rural. No segundo, falando ao mesmo tempo de um rural da modernidade e de rurais associados às diferentes formações sociais, estaremos procurando diferenciar os lugares que o rural ocupou nos diferentes projetos nacionais e em tempos históricos distintos, procurando captar as especificidades das formações capitalistas periféricas, em especial a brasileira. Visualizaremos as ruralidades em sociedades nas quais a modernidade se completou (sociedades centrais ou avançadas) e em sociedades com modernidade incompleta (periféricas) e suas expressões nos embates hegemônicos e contra-hegemônicos de nossas sociedades globalizadas. Finalmente, esperando compreender as políticas para o mundo rural como parte componente dos processos de legitimação e de dominação urbano-industrial, estaremos indagando sobre as relações entre cultura, política e o rural em uma narrativa do caso brasileiro.
Problematizando: o rural e suas instituições
Neste início do século XXI fala-se na industrialização da agricultura e na urbanização do campo (cf. Silva, 1996 e Ianni, 1996), formas distintas de se postular o fim do rural, do agrícola e das instituições e profissões especializadas. Paradoxalmente, fala-se da emergência de um novo mundo rural e de novas identidades rurais, novas ruralidades. [4] Quando falamos de um mundo rural novo, ou de seu desaparecimento, e consideramos esta questão no contexto da diversidade constituinte dessa sociedade globalizada, de qual rural estaremos falando? Estaremos falando de um rural referido aos países centrais, semiperiféricos ou periféricos? Podemos falar em especificidades rurais latino-americanas?
Cumpre examinar duas instâncias desses processos de construção de imagens e visões culturais do rural no ocidente. Uma referida à constituição da cultura ocidental e outra atenta às especificidades culturais das distintas formações sociais capitalistas e às suas relações de interdependência.
Em um tempo histórico amplo, e falando dos processos vivenciados no Ocidente com a derrota dos antigos regimes na Europa, o processo de construção das hegemonias burguesas deslocou gradativamente o centro de poder do campo para a cidade e da agricultura para a indústria. A burguesia industrial e urbana projetou visões de rural, de campo e de agrícola. Na modernidade [5] , o rural foi apreendido na cultura e na política pelas oposições campo-cidade, tradicional-moderno, oposições incivilizado-civilizado e não-tecnificado-tecnificado. [6] O rural-agricultura da modernidade – construído no caldo cultural, político e econômico das revoluções científica, burguesa e industrial – foi concebido como sujeito aos domínios da natureza e da tradição. Constituiu-se como um rural a ser transformado, seja pelos processos civilizatórios burgueses, seja pelos processos de modernizações, dentre os quais os de tecnificação e os da lógica e racionalidade dos mercados. Reconhecemos nos processos culturais e econômicos de valorização do domínio burguês a centralidade da cidade na produção cultural e da indústria no domínio econômico. As valorizações culturais e econômicas da cidade e da indústria desqualificaram saberes e outras racionalidades distintas da racionalidade técnico-científica e do mercado, tais como as indígenas, as camponesas e as de outras culturas não-hegemônicas. Todas passaram a ser vistas como irracionais e incivilizadas, sujeitas, portanto, ao domínio e à transformação, e objeto de políticas de modernização específica. Nesses processos, elaboram-se visões de mundo rural [7] e políticas para o mundo rural foram implementadas, quer como intervenção sobre, quer como serviço ao, ou ainda como participação do mundo rural.
Uma das especificidades associadas à visão de rural é a sua associação com a terra, a natureza e os processos naturais. A compreensão de tal especificidade nos remete ao entendimento de como as sociedades elaboram conhecimentos dos processos sociais associados à dinâmica da natureza e da vida e de como realizam as apropriações desses saberes.
Temos por pressuposto que a realidade humana é uma realidade culturalmente construída. [8] Na medida em que este pressuposto é aceito, torna-se necessário reconhecer – como parte da realidade socialmente construída – a vivência de processos sociais de construção do mundo natural e da natureza. [9] Temos postulado que, no caldo dos movimentos ecológicos e ambientalistas, vivemos na atualidade um processo de ressignificação do mundo natural e da natureza que, por sua vez, englobam a própria ressignificação da natureza humana (cf. Moreira 1993, 1995b, 1998c, 1999b e 2000) e, em nosso caso, da própria realidade rural.
Na modernidade burguesa, os pólos construtores de identidades, dentre as quais as identidades rurais e dos profissionais das ciências agrárias, estiveram sediados na indústria e na cidade. Desses pólos emergiram a atribuição de sentidos e de realidade. É nesse sentido que as imagens culturais hegemônicas sobre o rural, em oposição aos sentidos atribuídos ao urbano, carregam as noções de agrícola (apenas produção), atrasado, tradicional, rústico, selvagem, incivilizado e de comportamentos resistentes a mudanças.
Os processos construtores da modernidade (com seus modernismos e as suas modernizações) são melhor entendidos se associados às revoluções e à constituição dos Estados burgueses. Ao derrotarem os antigos regimes, os regimes burgueses projetaram-se como sociedades urbanizadas e industrializadas. Configuraram uma visão de rural subalterno sujeito ao seu domínio. Projetaram instituições e políticas agrárias e agrícolas, dentre as quais as de ensino, pesquisa e extensão rurais e as de profissionalização das ciências agrárias, agrônomos e extensionistas, dentre outras. Falar em ensino, pesquisa, extensão e formação profissionais de especialistas é falar da cultura científica da modernidade, oriunda da Revolução Científica e de suas instituições.
Olhando para as legitimações que se apóiam na cultura científica, cumpre ressaltar que as disciplinas científicas aplicadas constroem formas compreensivas e operacionais dos fenômenos sociais vivenciados nos espaços rurais. Recortam a totalidade do mundo rural e falam de suas partes, como, por exemplo, o fazem as disciplinas de economia e sociologia rurais [10] e profissões agrárias especializadas, como a agronomia, a zootecnia e a medicina veterinária.
As instituições de extensão rural e a formação dos extensionistas do pós-segunda Guerra Mundial, por exemplo, inspiradas e incentivadas pela influência dos EUA na dinâmica do Ocidente, foram projetadas para levar o conhecimento técnico-científico e a lógica dos mercados ao mundo rural, tecnificando os processos produtivos e civilizando culturas tidas como atrasadas. Na hegemonia internacional da Aliança para o Progresso, o sistema de extensão rural implantado na periferia latino-americana idealizava a missão do extensionista rural como uma missão transformadora e modernizante. A ideologia da modernização a ela associada apoiava-se na crença da superioridade do pensamento científico, na neutralidade da ciência e na idéia de que o progresso técnico significava necessariamente um processo civilizatório que, em outro texto (Moreira,1994b), listamos como crenças equivocadas ao refletir sobre as relações entre universidade e sociedade.
Analisando a trajetória acadêmica do CPDA/UFRRJ, destacamos que, no saber hegemônico sobre a agricultura, no campo universitário brasileiro da segunda metade dos anos 70, as noções de desenvolvimento agrícola articulavam um campo temático conformado pela noção de desenvolvimento econômico das teorias de desenvolvimento e subdesenvolvimento e dos estudos das relações entre agricultura e indústria, com especial destaque para as análises das funções da agricultura no processo de desenvolvimento (Moreira, 2002b).
No Brasil universitário de então, o campo temático rural só era hegemônico nas pós-graduações de Economia Rural e de Sociologia Rural institucionalizadas nas escolas de Ciências Agrárias, como eram os casos da Esalq/USP, em São Paulo, e da Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais. Aqueles núcleos acadêmicos promoviam preferencialmente estudos sobre mercados de produtos agrícolas, eficiência das unidades de produção, de cunho neoclássico, e de difusão tecnológica com vistas à modernização produtiva, em uma perspectiva microssocial de mercados e unidades produtivas (Moreira 2002b). [11]
Se incorporarmos a questão da produção e a apropriação privada do conhecimento técnico-científico na compreensão dos processos sociais, teremos que incorporar também a produção imaterial (do trabalho intelectual) na lógica competitiva, bem como reconhecer a necessidade de se analisar os processos político-ideológicos que legitimam a apropriação privada do conhecimento socialmente produzido. [12] O debate e a legislação sobre patentes – os direitos sobre o conhecimento tecnológico – são um dos aspectos desta compreensão. Na medida em que a terra e os recursos naturais são elementos da produção social, o direito de propriedade sobre esses recursos significa que seus proprietários podem disputar a apropriação do conhecimento que se tem sobre os seus usos, no presente e no futuro, mesmo que não tenham feito nenhum investimento de capital ou de trabalho próprio na produção deste conhecimento. [13]
Na dinâmica econômica do capitalismo contemporâneo, a acumulação financeira, quando comparada à esfera produtiva, parece ganhar autonomia. A esfera financeira está associada às noções de esfera imaterial, fictícia e virtual do capital. A onda da revolução da tecnologia das comunicações – telemática – imprime uma dinâmica de acumulação acelerada às indústrias das comunicações e culturais – produtoras de imagens, signos, visões de mundo, estilos de vida etc. –, assim como impõe processos de automação às indústrias já anteriormente sedimentadas, tornando aparente a importância cada vez maior do trabalho intelectual e da produção, também imaterial, de conhecimentos técnicos e científicos. De outro lado, o conhecimento científico e técnico aplicado ao código e à engenharia genética abre, ainda, um novo leque de interesses à acumulação capitalista, conformando o que podemos denominar de indústria da vida, na qual o direito de propriedade sobre o conhecimento do código genético, as patentes bioquímicas e os recursos da biodiversidade entra na disputa competitiva. Esses processos intensificam e ampliam as disputas de apropriação de conhecimentos científicos sobre o mundo natural e sobre a dinâmica da vida, que envolvem, em nossa atualidade, os interesses associados à biodiversidade, aos transgênicos e clones, bem como à agroecologia e correlatos.
Tudo o que discutimos anteriormente mostra a relevância da análise dos processos sociais de geração, transmissão e distribuição do conhecimento nas sociedades contemporâneas. Para alguns autores essa relevância é de tal ordem que tais sociedades têm sido denominadas de sociedades do conhecimento. Em outra análise (Moreira, 1999b), destacamos que nas sociedades contemporâneas à produção material é incorporada a produção não-material, simbólica. Nesse contexto, analisar os interesses econômicos e sociais relevantes significa também analisar os processos de apropriação privada do conhecimento, quer do conhecimento técnico-científico, quer dos conhecimentos culturais rotineiros de culturas não-hegemônicas, como as indígenas, as camponesas, as de curandeiros e de minorias, bem como acreditamos agora, a apropriação dos rurais imaginários que aqui estamos delineando.
Do ponto de vista dos processos econômicos, a institucionalização da ciência e da técnica significa investimentos sociais, públicos e privados, em educação e pesquisa, que são conformados e conformam a expressão dos interesses hegemônicos nas políticas educa-cional, científica e tecnológica. A própria produção social do conhecimento torna-se campo de disputa capitalista e a tecnologia não pode mais ser considerada como variável independente, como tem sido o procedimento da tradição analítica da economia e da economia política. Parte significativa da pesquisa aplicada passa a ser incorporada como atividades das empresas.
Diversos autores (dentre eles, Habermas, 1968, e Bell, 1973: 415-18) vão argumentar sobre a importância de se considerar a institucionalização da ciência e da técnica nas sociedades contemporâneas. Nestas sociedades, a ciência e técnica são consideradas como força produtiva, bem como sua institucionalização da ciência e da técnica é politicamente conformada. Além de politicamente conformado, o campo da ciência e da técnica articula capital econômico e simbólico, e expressa interesses econômicos e sociais; sendo, portanto, um campo de disputa e competição da acumulação capitalista.
Nossa argumentação em favor da compreensão de uma nova noção de ruralidade procura tematizar o mundo rural nas sociedades comtemporâneas. Postula a existência de um processo de ressignificação – ou, como diriam outros, de desconstrução-construção – do rural construído por aquelas antigas oposições sociedades tradicionais-modernas, rural-urbano, campo-cidade e agricultura-indústria. Essa compreensão está associada aos processos recentes da globalização e do exercício da hegemonia das políticas neoliberais, de abertura dos mercados, de constituições de mercados supranacionais, de redimensionamento do papel do Estado, de descentralizações política e de desformalização das relações de trabalho herdadas.
O rural contemporâneo
Em Ruralidades e globalizações construímos três narrativas para refletir sobre o rural contemporâneo. Uma delas alude às imagens do rural da modernidade européia e uma segunda nos fala do rural e das suas modernizações incompletas da periferia latino-americana, em especial a brasileira. A terceira procura refletir sobre o rural, a globalização e as lutas por hegemonias em escala global.
Na primeira narrativa temos um processo homogeneizador da modernidade ocidental que teria feito desaparecer o campo e o rural, os quais compunham o outro conjunto de valores a ser dominado. Uma vez concluída, a modernidade faria desaparecer a visão de rural, que continha como realidade a imagem de um rural camponês e de uma natureza pré-capitalista. Essa narrativa seria a narrativa da dominação do rural pela indústria e de sua transformação pelo processo de modernização. O resultado – o seu desaparecimento – nos oporia, na atualidade, um novo outro, ainda a ser dominado: o poder alienado da tecnologia, da megalópole, da cidade e do social, tomados como instâncias privilegiadas do global transnacional (Jameson, 1997: 26-27). Em nossa interpretação, aquela imagem de rural desapareceria em favor de uma outra imagem de rural da alta modernidade. Esse novo rural seria, ao mesmo tempo, urbano e global. Já tecnificado, industrializado, urbanizado e civilizado, a imagem desse rural da alta ou da pós-modernidade reescreveria as identidades rurais tendendo a construir o agricultor como o jardineiro da natureza e como guardião do patrimônio natural e das tradições culturais, agora a serem preservadas. Nessa nova imagem, o rural já não se diferenciaria do urbano.
Como conceber as práticas e os embates das políticas agrícolas e agrárias no contexto dessa narrativa?
Na segunda narrativa, teríamos a postulação de culturas híbridas, oriundas das especificidades sociohistóricas da periferia mundial. Para Canclini (2000), nessas sociedades, a modernização e a modernidade não se completaram. Os baixos níveis de escolaridade, saúde, cidadania incompleta e os elevados indicadores de desigualdades sociais atestariam essa afirmação de incompletude. Essa modernização incompleta é incompleta em um sentido radicalmente diferente daquele pensado pelas teorias da modernização e do desenvolvimento. Tais teorias antevêem a modernização e o desenvolvimento se completando em algum momento do futuro. O sentido cancliniano de modernização incompleta carrega o paradoxo de uma completude-incompleta, uma vivência híbrida e contraditória em que o próprio ser é culturalmente híbrido e aberto, com possibilidades, mas sem certezas de menores desigualdades.
Como compreender as práticas e os embates das políticas agrícolas e agrárias no contexto dessa narrativa?
Na perspectiva de nossa terceira narrativa, o universo das ruralidades contemporâneas foi visualizado a partir do pensamento sobre as relações entre o local e o global da pós-modernidade e da globalização. O rural imaginário construído pelos processos de aburguesamento estaria desaparecendo em um paradoxal processo de desterritorialização e de presentificação. Esse rural imaginário, visualizado quer como “vilarejos camponeses” e “paisagem orgânica do campo” pré-capitalista, tal como pensável a partir das sociedades européias (Jameson, 1997), quer como “vilarejos do interior oligárquico” e “paisagem orgânica de um campo selvagem e incivilizado”, como em nossa hipótese para o caso brasileiro (Moreira, 2002d), desaparece em um duplo processo de desenraizamento. Ambos os imaginários seriam reconstruídos e mesmo criados como tradições do e no tempo presente. [14] As relações espaço-tempo contemporâneas fariam desaparecer o passado e antecipariam o futuro. Atribuiriam sentido apenas ao presente, bem como carregariam a possibilidade de construção de um global hegemônico sem lugar, sem território: desterritorializado.
O desenraizamento do tempo significa um passado que desaparece e reaparece como representação do passado desaparecido, tais como seriam as representações presentes do patrimônio e das tradições que sedimentam os turismos rurais contemporâneos e a produção e mercantilização dos produtos e artesanatos culturais “da fazenda” e das tradições “camponesas”, seja no centro ou na periferia.
O desenraizamento do espaço – de um local ou de um território que desaparece ao se globalizar reaparecendo como um global desterritorializado – pode ser visualizado nas realidades do agribusiness e do estilo de vida country. Originalmente norte-americanos, eles passam a compor a cultura global. Nesse processo tornam-se representação econômica e cultural do agribusiness e do estilo de vida country, por exemplo, no Brasil, na Austrália e no Japão, fazendo desaparecer o original americano, mesmo no território do EUA.
Tal narrativa de desterritorialização nos faria, por exemplo, indagar sobre a transposição dos conceitos de campesinato, de agricultura familiar e mais recentemente de multifuncionalidade e de desenvolvimento sustentável do centro globalizado para a periferia, assim como sobre os sentidos sociais e políticos que tais imagens conceituais assumem nos diferentes espaços nacionais.
Procurando entender a globalização contemporânea, Boaventura Santos inicia sua análise pela desconstrução da globalização hegemônica, desnaturalizando-a. Localiza sua emergência no Consenso de Washington, o qual, para o autor, postulava um projeto político de dominação hegemônica global. No detalhamento de sua análise, Santos procura compreender o complexo exercício da hegemonia e de suas legitimações discursivas. Ao desdobrar sua narrativa analítica, o autor visualiza as relações do local e do global em suas formas e discursos hegemônicos e contra-hegemônicos. Santos postula que o processo de globalização dilui as fronteiras das dimensões política, econômica, social e cultural. Dentro de cada uma delas, e na relação entre si, conformam-se campos complexos de conflitos que desautorizam análises simplistas. Deduz globalizações em diversos campos: políticos, artísticos, culturais, tecnológicos, econômico-financeiros etc. Como verdadeiras nebulosas, tais campos carregam discursos, dinâmicas e interesses díspares e contraditórios; em suma, expressam poderes hegemônicos e contra-hegemônicos (Santos, 2002).
Nesses campos, as tensões do local e global parecem apontar para valorizações contraditórias de práticas sociais e culturais transna-cionais (globalizadas) e nacionais e regionais (localizadas). Com a intensificação das dimensões econômicas e políticas globalizadas, as relações sociais tenderiam a pressionar as fronteiras de antigos localismos – da tradição, do nacionalismo, da linguagem e da ideologia – próprios da modernidade. Nas rupturas dessas fronteiras, as relações sociais adquirem um espaço de atuação globalizado. Paradoxalmente, ganham força identidades locais, regionais e nacionais, porém com demarcações diferenciadas das antigas experiências, fazendo emergir novos localismos (Santos, 2002: 54).
Nesses processos paradoxais de desenraizamento, aquele autor identifica lutas e tensões econômicas, culturais e políticas – hegemônicas e contra-hegemônicas – no espaço global. Identifica globalizações de cima-para-baixo, hegemônicas, e de baixo-para-cima, de resistência ou contra-hegemônicas. No grupo das hegemônicas identifica as formas de globalização do localismo globalizado [15] e do globalismo localizado [16] (Santos, 2002: 45-65). No segundo grupo, estariam as de resistência do cosmopolitismo [17] e do patrimônio comum da humanidade, [18] ambas com potencialidade contra-hegemônica globalizada. Tal formulação nos permitiria entender, por exemplo, as lógicas representativas do Fórum Econômico Mundial e do Fórum Social Mundial na atualidade.
Nesses embates da globalização, o localismo globalizado hegemônico seria a expressão do vencedor na luta pela apropriação ou valorização de recursos, imagens, artefatos e instituições. A identidade do vencedor carrega a capacidade de ditar os termos da integração, da competição e da inclusão de outras identidades. Tendo sua particularidade anterior convertida em condição universal e hegemônica, o localismo globalizado torna-se referência para o reconhecimento das diferenças e dos critérios de classificação das hierarquias diferenciadoras. Ao ditar os termos das diferenciações, ele estabelece as conseqüentes exclusões e inclusões subalternas. Diferencia e hierarquiza, assim, nações, regiões, grupos sociais e indivíduos, bem como artefatos, instituições e valores culturais. Cumpre ressaltar que esse local globalizado é desterritorializado. Perde a raiz de seus contextos específicos e de sua vivência territorial, torna-se um elemento da rede global-local, transformando-se em seu próprio local de origem (Kumar, 1997: 199).
Santos (2002) destaca que, na divisão globalizada da produção, essas práticas hierarquizadoras de diferenças garantem aos países centrais os localismos globalizados e aos periféricos ou semiperiféricos a escolha de globalismos localizados, formas de representação da hegemonia mundial nos diferentes espaços nacionais.
Com base nessa narrativa, poderíamos visualizar ruralidades locais que se globalizam? Seria esse o caso, por exemplo, da referência dos EUA na expressão dos interesses econômicos hegemônicos expressos na Organização Mundial do Comércio (OMC) e nos acordos sobre alimentos e seus comércios? Qual seria a imagem hegemônica de rural que estes interesses carregam? Como os processos discursivos constroem as classificações e as hierarquias das diversidades aí presentes? Qual é o outro não-hegemônico que foi construído pelos mesmos processos que construíram o hegemônico vencedor, o localismo globalizado? Como tal, o rural globalizado torna-se assim a escolha dos países e regiões periféricas e semiperiféricas e é internalizado como globalismo localizado? Tais artefatos, processos e imagens assim localizados estariam fora de lugar? Todas as instâncias contemporâneas (econômicas, políticas e culturais) inter ou transnacionais, como a ONU, o Banco Mundial, o FMI, a Unicef etc, não seriam instâncias legitimadoras de uma multiplicidade de localismos globalizados (rurais, urbanos, econômicos, artísticos, políticos de padrão de consumo, ambientalistas)? Haveria assimetrias de poderes na legitimação das possíveis hegemonias? Quais os localismos que carregam possibilidades de hegemonias? Essas instâncias transnacionais não irradiariam e direcionariam pressões e políticas pela adoção local desses referenciais hegemônicos? Adotados localmente, esses globalismos localizados, hegemônicos, não tensionariam por dentro os localismos não-hegemônicos?
Para Santos (2002), aos modos de globalização hegemônicos contrapõem-se os modos de globalização de resistência do cosmopolitismo e do patrimônio comum da humanidade. A primeira forma de resistência consiste em tentar transformar trocas desiguais em autoridade partilhada. Estariam os movimentos de associações indígenas, ecológicas e artísticas contemporâneas em busca de valores culturais alternativos e contra-hegemônicos que fundamentem autoridades compartilhadas? A segunda forma constrói-se com uma noção que recorre ao direito internacional, identificando o patrimônio comum da humanidade. Como exemplos, teríamos o caso das lutas pela proteção e desmercantilização dos recursos, entidades, artefatos e ambientes, dentre elas as lutas ambientais e pela preservação da biodiversidade – cuja sustentabilidade só pode ser garantida em escala planetária por um interesse mundial.
Essas últimas, em particular, constroem novas imagens de rural, como já citamos, a dos jardineiros da natureza e dos guardiões da natureza e da tradição. [19] Nessa perspectiva poderíamos ainda incluir os agricultores orgânicos, agroecológicos, e os artesãos que atualizam receitas e artefatos tradicionais.
O sucesso dos resistentes depende de redes transnacionais de uma sociedade civil e política global, dentre as quais as organizações não-governamentais progressistas transnacionais e suas alianças com as organizações e movimentos locais.
Para o autor, o cosmopolitismo e o patrimônio comum da humanidade são movimentos contra-hegemônicos. São globalismos de baixo-para-cima que assumem o papel de resistência aos fenômenos de localismos globalizados e globalismos localizados (Santos, 2002: 70-71). Os fenômenos de globalização não existem como entidades estanques, alimentam-se das lutas que se travam em diversas dimensões, não têm um caráter pacífico e consolidado, e atingem o campo social, tensionando, portanto, as identidades sociais em disputa.
Quais seriam as condições de possibilidades para as práticas e as políticas agrícolas e agrárias contra-hegemônicas?
A serem formuladas, essa multiplicidade de questões desnaturaliza o processo de globalização, na mesma linha em que o faz Santos (2002). Desvenda as redes de poderes e de assimetrias globalizadas e permite-nos indagar acerca das assimetrias de poder que fazem determinados localismos rurais perdedores, quer nos espaços globalizados, quer nos espaços nacionais e regionais.
Na análise dos processos de constituição de sociedades burguesas, algumas dessas sociedades emergiram de lutas revolucionárias contra os antigos regimes. Outras como lutas de libertação nacional de regimes coloniais, escravocratas ou não. Alguns autores (cf. Coutinho, 1990, e Velho, 1979) diferenciam as sociedades oriundas de revoluções democrático-burguesas daquelas sociedades que vivenciaram processos autoritários da modalidade de revoluções pelo alto. No que se refere à questão agrária, o primeiro tipo de revolução, regra geral, foi acompanhado de um processo de destruição de forças antigas com reformas agrárias, constituindo forças e domínios territoriais rurais mais democráticos, como seriam, por exemplo, os casos da Inglaterra, França e do EUA. As segundas revoluções instituíram novos poderes sem rupturas radicais com a ordem anterior e se realizaram sem processos de democratização do domínio rural, como seriam os casos da Alemanha e também do Brasil. As forças políticas hegemônicas nacionais que emergiram desses processos projetaram processos diferenciados de urbanização e de industrialização e, portanto, construíram distintas visões das relações rurais e urbanas. Projetaram papéis e funções para seus mundos rurais e estabeleceram, nesses contextos políticos, suas instituições rurais.
No caso brasileiro, o domínio privado sobre o território nacional foi fundado no monopólio monárquico colonial do Reino português nas concessões de uso das capitanias hereditárias e das sesmarias. O poder monárquico do Império brasileiro, com a Lei de Terras de 1850, reconhece a base da estrutura de uso anterior da terra como direitos de propriedade e institui os futuros acessos mediante compra e venda de terras no mercado. Nos processos de urbanização e de industrialização do pós-1930 e no surto de democratização do pós-1946, [20] essa forma de acesso a terra é tensionada pelo movimento camponês. O Estatuto da Terra, de 1964, instituído pelo poder do golpe militar do mesmo ano, não foi capaz de estabelecer parâmetros para uma significativa reforma do domínio privado sobre o território. O domínio do território não é democratizado. No presente, os elevados índices de concentração da propriedade da terra demonstram que a grande propriedade agrária ainda exerce um domínio quase absoluto sobre o território nacional. Na medida em que o Estado nacional moderno tem seu fundamento no domínio de um dado território e no direito burguês da propriedade privada, o Estado brasileiro ainda exibe fortes raízes agrárias.
As raízes agrárias autoritárias do Estado brasileiro e do domínio concentrado de território pouco têm sido ressaltadas nas análises da fragilidade e insuficiência da nossa democracia e dos elevados índices de desigualdades sociais contemporâneos. Nessa perspectiva, poderíamos falar de raízes agrárias do Estado brasileiro e postular a existência de uma ruralidade autoritária no Estado e na cultura brasileira, raízes que os processos de industrialização não foram capazes de apagar e que são ainda atuantes em nosso sincretismo cultural.
Em outros momentos (cf. “Parceria e os negócios do coronel:...”, in Moreira, 1999a e Moreira, 1995a), destacamos que, no Brasil, as políticas e as visões dominantes sobre a agricultura familiar e a pequena produção familiar rural foram historicamente conformadas pela ideologia de subsistência com base na ideologia das relações sociais da morada de favor do Nordeste açucareiro. A morada de trabalhadores no interior das plantações de cana-de-açúcar era tratada como um favor que as elites agrárias da época faziam ao trabalhador rural. Tal concessão, de um lado, não reconhecia os direitos trabalhistas e, de outro, garantia a fixação de trabalhadores nas plantações. As relações sociais de trabalho da morada e também do colonato do café, em São Paulo, envolviam o trabalho no produto principal – cana ou café – e viabilizava a parceria na produção de alimentos básicos – arroz, feijão, aipim etc. – fundamentais à alimentação daquela população e ao suprimento do mercado interno. Esta origem da produção de alimentos no interior da grande produção no Brasil levou a produção de alimentos a ser tratada como sendo uma produção de subsistência e os agricultores familiares a ela vinculados – os moradores-parceiros acima referidos e a pequena produção de alimentos realizada por pequenos proprietários independentes, por posseiros etc. – a ser denominados de agricultores de subsistência. Dada tal origem e tal localização ideológica, esses agricultores e seus herdeiros históricos – as atuais formas sociais da agricultura familiar no Brasil – são vistos na ideologia dominante como incapazes do progresso econômico e social (Moreira: 1994a e 1995a). Na formulação de políticas, esse setor foi sempre considerado como aquele para o qual as políticas agrícolas deviam evitar que sucumbissem, conservando sua precária condição produtiva e mantendo as condições de subsistência da família. Essas políticas, portanto, não viabilizaram um impulso de progresso econômico e social significativo. As benesses da política agrícola, como foi o caso do crédito agrícola altamente subsidiado da Revolução Verde no Brasil, foram dirigidas às próprias elites do mundo rural, transformando latifúndios em empresas capitalistas, implantando os setores internacionalizados de produção de máquinas, equipamentos e insumos, e centralizando e modernizando o aparato agroindustrial, em resumo, constituindo o moderno agribusiness brasileiro. [21]
Essa ideologia foi naturalizada e a busca pela subsistência passou a ser vista como uma condição natural dos pobres do campo. Nesse processo, as políticas para tal setor tenderam sempre a assumir a forma de política de assistência social, também denominadas de políticas de subsistência, longe de serem políticas de progresso e ascensão social.
Retomando elemento da minha terceira narrativa, poderíamos nos perguntar como aqueles possíveis globais hegemônicos localizados se apresentariam no espaço brasileiro? Estariam aqui representados pelas sociabilidades competitivas do agribusiness brasileiro contemporâneo? [22] O poder rural hegemônico desses negócios pode ser visualizado por sua importância nas taxas recentes de crescimento do PIB nacional, pela importância da agricultura nos saldos positivos da balança comercial quando comparada com a performance da indústria e pelo poder político das associações patronais agroindustriais. Recentemente esses interesses são representados pela atuação do Ministério da Agricultura, separando-os daqueles da agricultura familiar e da reforma agrária, estes agora representados no novo Ministério de Desenvolvimento Agrário.
O apoio ao empresariado rural, a integração dos agricultores familiares aos processos agroindustriais e aos mercados, a garantia do bom uso do crédito bancário, a difusão tecnológica e a ampliação de mercados de bens de produção industriais para a agricultura são algumas das funções projetadas e executadas pelas políticas e instituições agrícolas nos últimos 50 anos. [23]
O mundo rural contemporâneo: concluindo
No Brasil da atualidade, sob amparo dos discursos do desenvolvimento rural sustentável, a ambiência daquela hegemonia globalizada impulsiona processos nacionais de compreensão do espaço agrário como um novo mundo rural. Esse passa a ser compreendido não mais como espaço exclusivo das atividades agrícolas, mas como lugar de uma sociabilidade mais complexa que aciona novas redes sociais regionais, estaduais, nacionais e mesmo transnacionais. Redes sociais as mais variadas que, no processo de revalorização do mundo rural, envolvem a reconversão produtiva (diversificação da produção), a reconversão tecnológica (tecnologias alternativas de cunho agroecológico e natural), a democratização da organização produtiva e agrária (reforma agrária e fortalecimento da agricultura familiar), bem como o fortalecimento e a expansão dos turismos rurais (ecológico e cultural). A revalorização de festas, rodeios e feiras agropecuárias associa-se à valorização da cultura local e de etnias e ao apoio à produção de artefatos os mais diversos, como conservas, artesanatos e manufaturas associados à natureza e culturas popular e tradicional, bem como à dinamização de agroindústrias associativas de agricultores familiares. Esses processos de revalorização do mundo rural consolidam atividades rurais e urbanas em cidades interioranas, reduzem – podendo mesmo reverter – o processo de migração rural-urbana e estão associados à consolidação de processos participativos de planejamento e gestão social nos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural. Os interesses associados à realização da reforma agrária e da agricultura familiar foram deslocados para o recém-criado Ministério do Desenvolvimento Agrário.
A perspectiva analítica aqui ensaiada nos permite visualizar a complexidade das lutas pela democratização da sociedade brasileira, pensando-a como uma questão nacional e global, urbana e rural, alertando-nos também para o risco de visualizar apenas um processo homogêneo ou linear da globalização, sugerindo o desaparecimento do local, do nacional e do rural.
Em nossa contemporalidade estaríamos falando de ruralidades no campo e na cidade, na história e nas diversas culturas, nas ciências, técnicas e profissões, nos processos educativos e socializadores, na cultura e política dos alimentos e nas contraculturas de uma infinidade de novos movimentos sociais (cf. Moreira, 2002d).
A compreensão do mundo rural em uma perspectiva histórica leva-nos a perguntar quais as forças sociais e os interesses que projetaram os lugares e as funções que o rural ocupou na dinâmica social e política. Dito de outra forma: em cada momento histórico as forças sociais que exerceram a hegemonia tiveram uma visão de si mesmo, da nação, do lugar dessa nação no concerto internacional, bem como do lugar do rural em seus projetos de nação. Tais forças projetaram políticas agrícola e agrária bem como projetaram suas instituições rurais.
A passagem de uma imagem de rural como agrícola para um rural como natureza expressaria tensões de diversos âmbitos societários, tais como na estética, na ciência e tecnologia, na sociedade civil, no Estado, no mercado e mesmo na espiritualização (Leis, 1999). Como procurei demonstrar, a própria imagem de natureza está em processo de ressignificação e, com ela, a de ser humano (Moreira, 1999b). Podemos falar de processos de urbanização do rural, de construção da cidadania no campo, de industrialização do agrícola bem como de processos civilizatórios nos quais o culto domestica o selvagem. O conceito de rural e a política e prática associada ao mundo rural poderiam, assim, estar carregando a incorporação de cuidados ambientais, o cuidado com os direitos básicos da cidadania (alfabetização, saúde, alimentação etc), a pluriatividade (atividades rurais e urbanas exercidas no espaço rural) e uma possível multifuncionalidade do território (defesa dos patrimônios naturais e culturais).
No caldo cultural da modernidade, os processos de construção de hegemonias impuseram os valores burgueses como universais e localizaram os valores dos antigos regimes, dos domínios coloniais ou das civilizações e culturas tradicionais, construindo também as oposições universal-particular e global-local. O local foi identificado com o tradicional, o selvagem, o primitivo, o incivilizado, o conservador e o autoritário. Resistentes a mudanças, o local, o rural, o campo e o território foram associados a culturas estáveis e homogêneas, avessos à mudança e a vivência do novo.
Em tal contexto são projetadas as instituições e políticas para o mundo rural, as quais associadas ao domínio burguês (da cidade e da indústria) carregam o domínio (intervenção, serviço ou interação) de uma determinada hegemonia política. O rural sociohistórico foi assim culturalmente associado às sociedades agrárias tradicionais e a comunidades locais, bem como temporal e simbolicamente foi associado ao passado e à tradição.
Considerado como oposto às relações sociais oriundas das instituições burguesas do mercado e do Estado e simbolicamente ligadas à cidade, o rural da modernidade ficou identificado com a tradição, incivilidade e irracionalidade. Associado às relações face a face, às culturas estáveis, homogêneas e primitivas ficou identificado como conservador. Associado ao antigo regime – feudal em alguns casos e escravistas em outros – ficou identificado como autoritário, e não-democrático. Noutro sentido, enquanto o território urbano é simbolicamente referido ao tempo contínuo, ao mecanismo do relógio e ao espaço geométrico horizontal-vertical das ruas e dos edifícios (a natureza controlada), o território rural é associado ao tempo sazonal e ao espaço ecossistêmico da natureza. Em tal contexto, as sensibilidades urbanas e rurais – os sentidos do corpo e da mente – são culturalizados, na cidade por valores universalizantes e homogeneizantes e no rural, por valores localistas e diferenciados, habilitando-nos a falar de culturas rurais. [24]
Oriundas dos movimentos ecológicos e afins, as críticas ambientalistas centralizam-se na crítica à produção industrial.
No espaço rural do segundo pós-guerra, a produção industrial adquiriu a forma dos pacotes tecnológicos da Revolução Verde e, no Brasil – marcadamente nos anos 60 e 70 – assumiu a prioridade do subsídio de créditos agrícolas para estimular a grande produção agrícola, as esferas agroindustriais, as empresas de maquinários e de insumos industriais para uso agrícola – como tratores, herbicidas e fertilizantes químicos –, bem como a agricultura de exportação, a produção de processados para a exportação e a diferenciação do consumo – como de queijos e iogurtes (Moreira, 2000).
Quando associada aos movimentos ecológicos e ambientalistas, no Brasil, a crítica ambientalista posta ao modelo da Revolução Verde – e à modernização tecnológica socialmente conservadora – desenvolve-se, portanto, com três componentes, que destacaremos a seguir.
O primeiro é uma crítica da técnica que nos leva a questionar a relação herdada do ser humano com a natureza. Considerar o meio ambiente e os recursos naturais de uma outra forma requer uma reconceitualização de natureza, de ser humano e de trabalho produtivo (Moreira, 1999b), bem como a atualização da teoria da renda da terra para a compreensão das questões da biodiversidade no campo (Moreira, 1995b e 1998c). Este questionamento leva em conta a poluição e envenenamento dos recursos naturais e dos alimentos, a perda da biodiversidade, a destruição dos solos e o assoreamento de nossos rios e advoga um novo requisito à noção de desenvolvimento herdada: o requisito de prudência ambiental. Em tal contexto, emergem tanto os movimentos de agricultura alternativa como aqueles centrados nas noções de agricultura orgânica e agroecológica, bem como as discussões dos impactos da engenharia genética e da utilização de matrizes transgênicas em práticas agropecuárias e alimentares.
O segundo componente expressa-se na crítica social da Revolução Verde. Tal crítica torna-se visível nas denúncias de empobrecimento, desemprego, favelização dos trabalhadores rurais, êxodo rural-urbano, esvaziamento do campo, sobre-exploração da força de trabalho rural, incluindo o trabalho feminino, infantil e da terceira idade. A crítica social do modelo da Revolução Verde não é uma crítica técnica como a que destacamos anteriormente. É uma crítica da própria natureza do capitalismo na formação social brasileira e da tradição das políticas públicas e governamentais que nortearam nossas elites dominantes, quer na área econômica, quer no próprio campo político de definição de prioridades. Nos anos 70 e 80, no Brasil, há também uma crítica ao modelo socialmente injusto, concentrador e excludente da modernização tecnológica da agricultura. A elevada concentração da propriedade da terra e a desigual distribuição da propriedade dos recursos produtivos de origem industrial conformaram aqui uma formação social capitalista de forte exclusão social. Exclusão de massas significativas da população não só do padrão de consumo e da qualidade de vida que se torna viável para essas elites e para as populações dos países avançados. Também exclusão em relação às condições mínimas de acesso à terra, ao trabalho, ao emprego, ao teto, à educação, à alimentação e à saúde adequado. Marcas das desigualdades originárias de nossa sociedade, esses problemas foram agravados pela Revolução Verde dos anos 60 e 70, pela crise dos anos 80 e pelas políticas e práticas do neoliberalismo e da abertura dos mercados nos anos 90. Esse segundo aspecto da crítica à Revolução Verde nos remete, portanto, à esfera sócio-política e às questões de eqüidade e justiça social. No tratamento dessas questões e buscando reduzir os níveis de desigualdades sociais, os formuladores de conceitos de sustentabilidade deverão considerar com particular atenção a radicalidade das ações e das práticas políticas e sociais adequadas ao desenvolvimento sustentável no espaço rural. No entanto, elas tendem a afetar interesses sociais constituídos que se fazem representar na formulação e implementação de políticas, como é o caso da presença dos anti-reformistas nas disputas da reforma agrária no Brasil.
O terceiro componente da crítica à Revolução Verde é de natureza econômica: a elevação de custos associada às crises do petróleo dos anos 70 se desdobra na agricultura brasileira como um processo de elevação de custos do pacote tecnológico da Revolução Verde. A crise financeira obrigou a uma redução significativa dos subsídios de crédito. Aquelas crises impuseram, no debate internacional e nacional, o tema da necessidade de mudanças do desenvolvimento para matrizes energéticas alternativas. No Brasil, o programa do Proálcool e de reversão dos motores à gasolina em motores a álcool é um exemplo. Em termos econômicos, alguns estudos chamavam a atenção para o fato de que o modelo da Revolução Verde implicava, na conjuntura que se seguia àquelas crises, custos produtivos crescentes devido à escassez relativa de recursos naturais daquela matriz energética, ao uso intensivo de fertilizantes químicos e agrotóxicos e à deterioração dos recursos de solo, água e condições de clima das produções agrícolas – enchentes, secas, inundações, ondas frias etc. Esses questionamentos, em suas vertentes ambientalistas, geraram possibilidades de novos modelos produtivos – agroecológicos, produção orgânica, produção natural etc. – com perspectivas biossistêmicas e de diversidade produtiva. Para boa parte dos analistas, esses modelos produtivos alternativos garantiriam uma vantagem comparativa às formas da agricultura familiar quando comparadas às empresariais.
A vivência histórica de precárias condições de produção e de competição nos mercados impõe, atualmente, aos agricultores familiares brasileiros a necessidade de procurarem diversificar as fontes de renda familiar. Para estabilizarem suas condições de vida eles recorrem à realização simultânea de atividades rurais e urbanas – membros da família com emprego urbano, pequenos comércios, como as bodegas etc.; diversificam as atividades da família – artesanatos, conservas caseiras, turismo rural etc.; recorrem ao emprego agrícola fora da propriedade familiar; recorrem a assalariamentos esparsos e sazonais, pequenos arrendamentos e parcerias em terras de terceiros. Observam-se, ainda, a busca de associações econômicas e cooperadas para o fortalecimento de sua posição nos mercados (as diversas formas de cooperação no comércio, na produção e no processamento industrial e manufatureiro); a luta para obter aposentadoria para membros da família (importante fonte de estabilização da renda familiar rural); e, por fim, a diversificação produtiva e a busca de produções agroecológicas, orgânicas e naturais, estas associadas a nichos de mercado e à onda ambientalista contemporânea.
Mesmo se reconhecermos que a produção agrossistêmica pode reduzir os custos monetários da produção, na ordem competitiva dominada pelos grandes capitais, nada garante que os benefícios de custos reduzidos e de produtos agrícolas saudáveis ficarão com o produtor familiar, exceto, é claro, entre alguns segmentos seus que consigam inserir-se em nichos de mercados ecológicos e de produtos verdes e naturais.
Resulta muito difícil visualizar uma ascensão dos agricultores familiares ao progresso econômico e social sem significativas e profundas reformas na propriedade da terra, no acesso aos benefícios das políticas governamentais e no reconhecimento da cidadania plena aos trabalhadores e desempregados do espaço rural.
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Notas
[1] Texto apresentado no XI Congresso Brasileiro de Sociologia, Unicamp, Campinas, setembro de 2003.
[2] Cumpre esclarecer, para evitar acusações de simplificações e determinismos, que os núcleos hegemônicos contêm diversidades internas, carregam tensões e diferentes interesses, cultivam alianças nacionais e internacionais e raramente podem ser concebidos como um núcleo hegemônico, sólido e unificado em seus interesses.
3 A atualidade será pensada como contemporaneidade, como alta ou pós-modernidade ou ainda como sociedade globalizada.
4 Para uma análise sobre as sociedades avançadas, ver Wanderley (2000). Recentemente coordenamos pesquisas sobre Registros de Ruralidades. Para acesso aos textos, consultar o site: www.ruralidades.org.br.
[5] Aliamo-nos a Kumar (1997) que interpreta a modernidade como constituída pelos processos da revolução científica, das revoluções políticas burguesas e da revolução industrial. Para os conceitos de modernidade e pós-modernidade, consultar o mesmo autor e, para contextualizações e referências, ver Jameson (1996). A modernidade seria composta de modernismo (dinâmica das instâncias culturais) e de modernização (dinâmica das instâncias técnico-econômicas).
[6] Para detalhes da argumentação, ver Ruralidades e globalizações: ensaiando uma interpretação (Moreira, 2002d) e em www.ruralidades.org.br.
[7] Compreender uma visão de mundo como ideologia de legitimação de forças hegemônicas, como instrumento ideológico da própria compreensão da realidade social ou como processo construtor das identidades de classes no capitalismo não nos permite negar sua instância de elemento de realidade. Crenças e ideologias são elementos da realidade social. São componentes dos processos políticos na medida em que influenciam nossa compreensão da realidade social e informam nossas ações cotidianas. Dito de outra forma, as visões e imagens que temos do mundo são elementos componentes da realidade deste mundo. Em outro contexto analítico, Heilbroner afirma que “as ideologias são sistemas de pensamento e de crença por meio dos quais as classes dominantes explicam ‘a si mesmas’ como funciona seu sistema social e que princípios ele subentende. Por conseguinte, os sistemas ideológicos existem não como ficções, mas como ‘verdades’ – e não como verdades probatórias, mas verdades morais”(Heilbroner, 1988: 78).
[8] Ela se apresenta, ao mesmo tempo, como realidade objetiva e subjetiva (Berger e Luckmann, 1985), conforma-se como uma história reificada e uma história incorporada (Bourdieu, 1989), bem como é construída em um processo de instituição imaginária da sociedade (Castoriadis, 1982).
[9] Para outras compreensões destes processos, ver: a fenomenologia da percepção, em Castoriadis (1987; 135-157); o homem e o mundo natural, em Thomas (1988); as idéias da natureza em uma perspectiva histórica, em Lenoble (1990); a ideologia e a produção da natureza, em Smith (1984: 27-108); a natureza dos homens, em Acot (1990: 97-194); e o homem renaturalizado, em Carvalho (1995).
[10] Para estudos associados ao pensamento científico e à questão da formação profissional em ciências agrárias e à pós-graduação em desenvolvimento agrícola, ver Moreira (1993, 1994a, 1994b, 1996a, 1996b, 1998a, 1998b, 2002b e 2002c).
[11] Hoje, a questão do desenvolvimento se repõe como desenvolvimento sustentável requerendo uma abordagem mais complexa, por envolver aspectos da eficiência econômica, de considerações ambientalistas e de justiça social (cf. Moreira, 1999b; 2000; 2001 e 2002a).
[12] Para detalhes do argumento, ver Moreira (1999b).
[13] Produzimos esta interpretação ao ressignificar a renda da terra como renda da natureza, ao compreender os processos de territorialização do capital e de apropriação privada da biodiversidade (cf. Moreira, 1995b e 1998c).
[14] Comporiam as realidades virtuais, os simulacros e as teatralizações próprias das culturas e das identidades pós-modernas.
[15] O localismo globalizado é descrito como a situação na qual determinado fenômeno local é globalizado com sucesso e exerce uma influência preponderante sobre outros locais, como que descrevendo uma força centrífuga do global para os diferentes locais, a exemplo da atividade mundial das multinacionais e da exportação de valores, artefatos culturais e universos simbólicos ocidentais ou especificamente norte-americanos para outros locais do mundo (Santos, 2002: 65).
[16] O globalismo localizado seria, pode-se dizer, a outra face da mesma moeda: o local que é modificado pelo global, o resultado dos impactos das práticas e imperativos transnacionais nas condições locais. O local é, nesse movimento, desintegrado, desestruturado e preparado para a possibilidade de ser reestruturado sob a forma de inclusão subalterna. Como globalismos localizados identificam-se as situações de eliminação do comércio de proximidade e criação de encraves de comércio livre ou zonas francas; a destruição dos recursos naturais para pagamento da dívida externa; o uso turístico de tesouros históricos, entre outros. O uso e o valor local são transformados para atender a uma nova valoração global (Santos, 2002: 66).
[17] Denominado de cosmopolitismo, a primeira forma de resistência, que consiste na organização transnacional de Estados-nações, regiões, classes ou grupos sociais vitimados pelas trocas desiguais, serve-se das possibilidades de interação criadas pelo sistema mundial, tais como as tecnologias de informação e comunicação. A resistência consiste em tentar transformar trocas desiguais em autoridade partilhada. Por meio dessas práticas e discursos de resistência estruturam-se, pela coligação de grupos progressistas subalternos e seus aliados, redes de solidariedade e militância anticapitalista de abrangência global (Santos, 2002: 67).
[18] Uma segunda forma de resistência é identificada como patrimônio comum da humanidade, uma noção que recorre ao direito internacional. Essas resistências são reivindicadas no âmbito planetário e têm um caráter transnacional intrínseco. Pode-se identificar a atuação desse modo de produção de resistência como fenômenos de uma sociedade civil e política global apenas emergente (Santos, 2002: 70-71).
[19] Para uma análise abrangente de novas ruralidades em sociedades avançadas, ver Wanderley (2000).
[20] Para uma análise do padrão de dominação da fazenda no Brasil, de 1889-1950, ver “Parceria e os negócios do coronel: trabalho familiar residente e competição no complexo rural” (Moreira, 1993), reproduzido em Moreira (1999a).
[21] Ver Parte I – “Padrão de acumulação e modernização tecnológica”, in Moreira, 1999a.
[22] O agribusiness aqui concebido inclui os processos produtivos industriais a montante (bens de produção de uso agrícola), o empresariado produtivo agrícola (produção agrícola em sentido estrito) e a jusante (agroindústrias de processamento).
[23] Para uma compreensão do processo de modernização tecnológica da agricultura na década dos anos 1970, ver “Quadro recente da agricultura brasileira: a modernização tecnológica e seus determinantes” (Moreira, 1981), reproduzido em Moreira, 1999a: 37-64.
[24] A noção geral marxiana de que, ao produzir as condições de sua existência o homem produz a si mesmo, permite-nos afirmar que as comunidades locais vivenciam relações ecossistêmicas específicas de produção, produzindo-se a si mesmas, com suas culturas e identidades. A compreensão da ambiência sócio-cultural dessas comunidades locais nos remete às aberturas sociossistêmicas (econômicas, políticas e lingüísticas) que compartilham com o todo social. Da mesma forma que Elias (1994) nos alerta sobre as dinâmicas sociais e a compreensão da “sociedade dos indivíduos” ou dos “indivíduos em sociedade”, o local (a parte, o indivíduo, a comunidade) nunca desaparece em suas relações com o global (o todo, a sociedade).