Marie France Garcia-Parpet
A construção social de um mercado perfeito: o caso de Fontaines-en-sologne [1]
Estudos Sociedade e Agricultura, 20, abril 2003: 5-44.
Resumo: (A construção social de um mercado perfeito: o caso de Fontaines-en-Sologne). O mercado computadorizado de Fontaines-en-Sologne, que comercializa uma parte da produção de “morangos de mesa“ dessa região é caracterizado pela utilização de uma tecnologia de ponta própria, permitindo assegurar que as transações deste mercado possuam condições de funcionamento próximas daquelas que correspondem à realização do modelo de concorrência pura e perfeita descrita pela teoria econômica. O estudo das condições sociais de realização e de funcionamento desse mercado mostra de fato que esta perfeita concordância com a teoria é puro produto de uma construção econômica e social, realizada por um certo número de agentes dotados de interesses convergentes, e que é a própria teoria econômica que serviu de quadro de referência direto na instituição de cada detalhe de tal mercado, em especial na constituição do espaço e dos regulamentos.
Palavras-chave: mercado, economia, sociologia econômica, qualidade.
Abstract: (The social construction of a perfect market: the case of Fontaines-en-Sologne). The computerized market in Fontaines-en-Sologne which distribute part of the region’s high-quality strawberry crop is equipped with advanced technology designed to ensure that market trade takes place in conditions very close to the accomplishment of the model of pure, perfect competition described in economic theory. Study of the social conditions for the creation and working of this market, however, shows that this perfect correspondence with theory is the pure product of an economic and social construction performed by a certain number of agents with convergent interests, and that it was economic theory itself which served as a direct frame of reference for the setting of each detail of this market, particularly in defining the organization of its space and its regulations.
Key words: market, economy, economic sociology, quality.
Marie France Garcia-Parpet é pesquisadora do Institut National de la Recherche Agronomique (INRA) e do Centre de Sociologie Européenne (École des hautes Études en Sciences Sociales) em Paris.
Em 1981, foi criado em Fontaines-en-Sologne um mercado que recebe grande parte da produção de “morangos de mesa” [2] provenientes das unidades administrativas das microrregiões de “Sologne viticultora” e de “Grande Sologne”. Além dos produtores, dele participam os atacadistas ou “expedidores” dessa e de outras regiões que encaminham sua produção tanto à central de Rungis [3] quanto às demais centrais de abastecimento ou ainda para mercados fora do território francês.
Esse mercado se caracteriza pelo uso de tecnologia de ponta. As transações comerciais são realizadas por meio da informação imediata dos compradores sobre os preços propostos em leilão através de um painel operado por computador, sem passar por regateio ou pelo confronto pessoal entre compradores e vendedores. A criação de um mercado desse tipo numa região definida como o “pulmão de Paris” num texto governamental (o relatório Mansholt) já seria suficiente para suscitar interesse. [4] Além disso, as primeiras indicações disponíveis nos faziam supor que esse mercado constituía de algum modo a realização concreta do modelo de concorrência pura e perfeita que ocupa um lugar de destaque na teoria econômica. [5] Ainda que o modelo seja mais um ideal a atingir do que uma realidade, o conceito de concorrência pura e perfeita continua freqüentemente utilizado graças a seu largo poder explicativo (Samuelson, 1973: 244-47), o “social” aparecendo sempre nessas análises como uma variável residual e como um obstáculo à plena realização do modelo. Assumindo a hipótese de que o mercado computadorizado de Fontaines-en-Sologne seria uma espécie de realização particular do modelo de concorrência pura e perfeita, propomo-nos a examinar se os “fatores sociais” são variáveis residuais por meio das quais poder-se-ia explicar a posteriori as distâncias entre os fatos observáveis e os que o modelo prevê, ou se eles intervêm em todo o processo das práticas de mercado das mais “econômicas”. Em resumo, tentaremos determinar as condições sociais de realização e funcionamento desse mercado.
O dia-a-dia do mercado de Fontaines-en-Sologne
O mercado computadorizado situa-se em pleno campo e não muito distante de uma estrada nacional, num galpão composto por duas partes: um “hall”, onde os produtores-vendedores expõem seus morangos embalados e etiquetados para serem examinados pelos potenciais compradores e uma sala de vendas na qual se processa o leilão dos preços.
A sala de vendas divide-se em três partes: uma cabine equipada com um computador, um telex e um microfone, com os quais o “vendedor” procede ao leilão. [6] Em frente à face externa da cabine está fixado um painel eletrônico que identifica os lotes a serem comercializados, apresenta os preços em ordem decrescente até que o comprador se manifeste e exibe os preços dos lotes vendidos e o nome do comprador. São reservadas duas salas aos vendedores e aos compradores em frente à cabine. No térreo, a sala dos produtores-vendedores, provida de bancos e mesas retangulares, uma balança e um quadro-negro no qual são escritos a giz diversos comunicados para os agentes. Também há revistas especializadas pregadas em um mural, fornecendo as cotações do morango em diferentes mercados nacionais e internacionais. A sala dos compradores situa-se logo acima da sala dos produtores e está disposta em degraus sob a forma de arquibancada, permitindo uma boa visão do painel eletrônico. Cada comprador é instalado em uma mesa dotada de mecanismo eletrônico graças ao qual ele pode parar o movimento descendente dos preços no painel e assim tornar-se comprador dos diferentes lotes ofertados no mercado. Cada mesa possui ainda um telefone. Da sala dos compradores e da sala dos vendedores tem-se uma visão perfeita da cabine do “vendedor”, na qual se origina o leilão de preços decrescentes, mas compradores e vendedores não podem se ver.
Na época da colheita dos morangos, por volta do meio-dia e meia, os produtores ou suas famílias chegam trazendo a produção do dia, colocada de maneira uniforme em caixas de 500 gramas dispostas sobre bandejas. Eles colocam estas últimas em pilhas de diferentes tamanhos conforme a quantidade e o número de lotes que querem apresentar para a venda. Cada pequeno caixote, no interior do qual ficam as caixas, apresenta uma etiqueta que especifica a variedade botânica dos frutos, sua qualidade segundo os critérios do Comitê Econômico de Val-de-Loire e, eventualmente, também traz a marca da origem do fruto. Depois os produtores vão até a cabine do “vendedor” para entregar sua “ficha”, com a descrição exata dos produtos expostos no “hall” (o número de lotes, sua identificação e peso). O “vendedor” introduz esses dados no computador e em alguns minutos obtém um catálogo para distribuí-los aos compradores. Estes chegam por volta de treze horas e percorrem o “hall” de exposição dos frutos para avaliar a qualidade das mercadorias e preparar suas compras. Ao fim de meia hora, o “vendedor” faz soar uma campainha, anunciando o início das transações, e todos se preparam para as operações de compra e venda. O “vendedor” anuncia as categorias de morango que vão ser transacionadas e programa o computador com os preços mínimo e máximo de cada categoria. [7] As operações se realizam através de leilão de preços declinantes, pois o computador está programado para, a partir do preço máximo, diminuir os valores do quilo até que um comprador aperte um botão e interrompa a série de preços decrescente. O produtor dono do lote faz, então, um gesto com a mão, assinalando sua concordância ou sua recusa. Caso não concorde com o preço do painel eletrônico, o seu lote será ofertado de novo após a primeira rodada de transações. Se ainda desta vez o preço não for julgado conveniente, há uma terceira rodada, quando então o presidente do mercado ou qualquer pessoa com mandato para fazê-lo pode recusar mais uma vez. Procede-se dessa forma sucessivamente a venda de todos os lotes. As transações mercantis se fazem sem palavras, ouvindo-se apenas a voz do “vendedor” anunciando os lotes e as categorias.
Terminadas as transações, vendedores e compradores saem da sala de vendas. É o momento dos comentários barulhentos, sobretudo por parte dos produtores, protestando quando os valores fixados foram baixos. Na maioria das vezes os compradores fingem que não ouvem ou então alegam que há falta de demanda a preços mais elevados, ou ainda a má qualidade dos morangos. Por fim, só ficam na praça do mercado os compradores carregando os seus caminhões.
Um mercado perfeito?
O modelo de concorrência pura e perfeita enunciado pelos economistas supõe quatro condições:
– cada agente econômico age como se os preços fossem dados, ou seja, nenhum dos vendedores ou compradores é forte o bastante para poder exercer uma influência perceptível sobre os preços (atomicidade);
– o produto é homogêneo, quer dizer, tem o mesmo uso social, e é identificável independentemente de seu vendedor (homogeneidade);
– o mercado é fluido: a entrada ou saída dos trocadores potenciais é livre (fluidez);
– o mercado é transparente: os agentes econômicos dispõem de um conhecimento perfeito de quantidades, qualidades e preços dos produtos ofertados (transparência). [8]
Como pudemos observar, tais condições estão presentes no funcionamento do mercado de Fontaines? Este mercado provoca o encontro diário de 35 produtores e 10 compradores. Se tal número de trocadores não é suficiente para garantir a atomicidade da oferta e da demanda – nenhum dos parceiros pode ter mais força que outro para influenciar diretamente a determinação dos preços –, é preciso considerar que a prática de venda por lotes fragmenta a oferta e a demanda, podendo os produtores evitar assim que um preço atinja toda a produção do dia, enquanto os expedidores são colocados em concorrência sempre que os lotes estejam à venda. A venda de um lote representa assim uma parte relativamente negligenciável da oferta e da demanda, sobre a qual os parceiros da operação mercantil não têm o poder de determinar os preços. [9]
Quanto ao produto objeto da troca, parece que ele satisfaz a exigência de homogeneidade por se tratar de morangos (aqui reencontramos o raciocínio dos economistas acerca de um só produto) de uso social idêntico: os “morangos de mesa” devem apresentar os atributos de estarem frescos e terem uma boa aparência externa, atributos que não são tão necessários para as exigências industriais. Por outro lado, os morangos são classificados por critérios independentes da identidade dos produtores: marca de origem, variedade e qualidade certificada pelo Comitê Econômico de Val-de-Loire.
No tocante à fluidez, já se viu acima que se o preço proposto não foi julgado conveniente, ou seja, foi muito baixo, o produtor poderia recusá-lo e adiar sua decisão para o fim das transações, e esperar uma segunda proposição do seu lote ou até mesmo uma terceira. Se não desejar vender, o produtor ou a administração do mercado poderão eventualmente estocar o produto em câmaras frigoríficas até o dia seguinte, na expectativa de uma flutuação favorável dos preços. Sabe-se que as cotações de morango são bastante instáveis de acordo com as estações do ano e os dias da semana, como pode ser observado tanto nesse mercado como seguindo as publicações semanais da Associação Francesa das Cooperativas de Frutas e Legumes. [10] Mas o produtor pode ainda reembalar sua mercadoria para vender à indústria; [11] ou então parar o trabalho de colheita do fruto, solução aparentemente irracional, explicada pela importância do custo da mão-de-obra utilizada na colheita de “morangos de mesa” que, segundo os agricultores, representa 30% dos custos de produção. Quando as cotações tornam-se muito baixas, os agricultores podem telefonar do mercado para casa para ordenar a interrupção da colheita, o que pode ser efetivado de imediato, pois a mão-de-obra é composta sobretudo por diaristas. Do lado da demanda, pode-se verificar a mesma liberdade de entrada e saída do mercado: os compradores não são obrigados a comprar e a decisão de adquirir um lote independe da aquisição dos outros lotes. Por sinal é significativo que os expedidores venham para o mercado em carro de passeio, telefonando para a firma quando julgam necessário para que ela envie um caminhão ou uma caminhonete segundo a quantidade de morangos adquirida, embora saibam desde a manhã qual é a oferta do dia (a administração do mercado telefona todas as manhãs aos produtores para se informar e avaliar a produção total que será colocada à venda no dia).
Por fim, a unidade entre o tempo e o lugar das transações torna o mercado perfeitamente transparente. A exposição dos frutos no “hall” e o catálogo fornecem um conhecimento preciso da quantidade e qualidade. O desenrolar do leilão de preços torna pública a demanda: compradores e vendedores ficam a par de todas as transações realizadas, dos preços fixados e das quantidades comercializadas.
Assim se encontram reunidas as quatro condições que permitem identificar o mercado de Fontaines-en-Sologne como uma espécie de realização concreta do modelo de concorrência pura e perfeita. É verdade que, num exame mais detido, algumas condições não estão sempre estritamente reunidas.
Se, em plena safra dos morangos, os produtores são numerosos e dispõem de produção diária abundante e vários lotes são disputados pelos compradores, na entressafra a produção diminui e acontece inúmeras vezes de o mercado ser freqüentado por alguns agricultores cuja produção diária global não ultrapassa algumas toneladas. Os compradores nesta época também diminuem e os que compram em maior quantidade dominam facilmente o mercado, como pudemos observar em dias em que as transações não se realizavam mais às 13 horas, mas iniciavam-se às 17 horas porque, como nos foi explicado, isto “facilitava” o expedidor que escoava praticamente a metade da produção ofertada na entressafra.
Vimos também que os agricultores podiam retirar seus produtos do mercado quando julgavam que os preços ofertados não cobriam os custos de produção. Não resta dúvida que todos os meios empregados neste caso (interrupção da colheita, conservação dos frutos em câmara frigorífica e reconversão em morangos para geléias e sorvetes), se praticados em larga escala, podem ter momentaneamente um efeito estimulante sobre os preços, na medida em que exista uma demanda correspondente. Entretanto, não se trata propriamente de uma saída do mercado, mas de uma minimização de perdas.
A defasagem observável entre o modelo abstrato e o mercado concreto é algo familiar aos economistas e não apresenta problemas na avaliação da eficácia do modelo: segundo seus próprios defensores, este modelo de concorrência pura e perfeita não é realista, o que não impede que sua utilização permita uma boa previsão dos fenômenos reais (cf., entre outras referências, Gould e Ferguson, 1984: 247-48).
Não é dessa defasagem que queremos dar conta sociologicamente, defasagem que pode ser explicada pela distinção entre o princípio de mercado (determinação dos preços pela oferta e demanda) e a sua realização concreta numa praça de mercado determinada (Polanyi, 1957: 243-269). Nosso interesse consiste na existência de “fatores sociais”, nas formas sob as quais se põe em prática uma praça de mercado que responda aos critérios de operação do modelo de concorrência pura e perfeita. Para examiná-las, analisaremos as condições sociais de construção e funcionamento desse mercado: que capitais foram necessários, sobretudo para a aquisição do computador e para a construção do galpão? Que agentes contribuíram materialmente para o surgimento desse mercado e imposição de suas regras de funcionamento? Quais são as características econômicas e sociais de seus utilizadores, vendedores e compradores? Qual o caráter da rede comercial assim constituída? Em que medida sua existência está em continuidade ou representa uma ruptura em relação aos canais anteriormente existentes?
Os canais de comercialização antes de 1979
Durante muito tempo os morangos foram cultivados para o consumo familiar, mas nos anos 1920-30 começaram a se implantar cultivos destinados à venda. Segundo L. Perroux, foram “os expedidores, as cooperativas locais e os vendedores das ‘halles’ de Paris que se instalaram na região, entre 1900 e 1930, que estimularam essa produção em seguida ao desenvolvimento da cultura de aspargos em Sologne: o morango permitia aumentar o volume das transações e melhor utilizar as estruturas comerciais, enquanto os negociantes incitaram seus fornecedores a experimentarem esta cultura” (Perroux, 1967: 38).
Em certas comunas, particularmente na de Fontaines, a cultura do morango está presente num grande número de explorações. Trata-se de cultura de campo aberto, geralmemente destinada à indústria, cuja técnica de produção não evoluiu muito de 20 anos para cá e constitui tão somente um complemento de receita. Para um número relativamente restrito de agricultores, a cultura do morango representa uma das rendas mais importantes da unidade produtiva, senão a mais importante. Esses cultivos são especializados em “morangos de mesa”, cujo preço de venda é mais alto, e seguem técnicas modernas (utilização de estufas de plástico, solo recoberto de plástico para evitar que os frutos fiquem cobertos de terra, escolha de mudas selecionadas com renovação rápida dos pés para aumentar a produtividade e manter a qualidade, rotação de culturas de 5 em 5 ou de 6 em 6 anos).
As outras regiões da França produtoras de morangos, principalmente o sudoeste e a região Rhône-Alpes, realizam suas produções segundo técnicas modernas e bem adaptadas às exigências atuais dos consumidores; os morangos de Loir-et-Cher (que nos anos 50 representavam os de melhor qualidade nos mercados centrais de Paris) ficaram desde os anos 70, salvo exceção, desclassificados no mercado nacional e internacional.
Em 1980, 75% da produção de “morangos de mesa” [12] era vendida pelos produtores: a) a “corretores” (pequenos comerciantes locais que trabalhavam mediante uma comissão, drenando a produção para os mandatários de Rungis, muitas vezes praticavam a agricultura e/ou tinham uma venda ou um bar); b) a “expedidores” (comerciantes locais de mais vulto que os “corretores”, que trabalhavam mediante comissão com os mandatários de Rungis e sobretudo aqueles que operavam com capital próprio); e c) a mandatários (comerciantes sediados em Rungis).
Ainda que nos dois primeiros casos os produtos sejam colhidos nas explorações agrícolas e, no caso dos mandatários, enviados pelo produtor diretamente em Rungis, de um ponto de vista sociológico, as transações realizadas apresentam as mesmas características: no momento da transação, o produtor não conhece o preço pelo qual será vendido o seu produto. Trata-se de uma compra dita “não-firme”: o produtor só ficará conhecendo-o uma semana ou 15 dias após a venda, enquanto o pagamento demorará mais ainda (segundo os agricultores, vários meses depois, mas os “corretores” alegam fornecer freqüentemente adiantamento em dinheiro a seus clientes). Quando o comerciante vai à exploração agrícola, ele compra não só a produção de morangos, mas eventualmente levará toda a produção hortifrutigranjeira ali existente. Ele deve escoar todos os produtos do agricultor, sejam morangos, aspargos ou um caixote de alho ou cogumelos. Para o agricultor, o “bom corretor” é aquele que não só fixa bons preços e se mantém em contato com mandatários que pagam bem, mas também aquele que o “desembaraça” de toda a sua produção. Quanto às cooperativas, elas comercializavam, no início do mercado de Fontaines, 25% dos “morangos de mesa”. Se, até os anos 60, constituíam um circuito comercial importante, na década de 80 conheceram uma fase de declínio acentuado. [13] As políticas comerciais dessas entidades não permitiam que elas ganhassem a concorrência dos “corretores” e sobretudo dos “expedidores”. Algumas vezes, elas dependiam desses últimos para a obtenção de certos mercados, em particular para os de exportação.
Embora não seja propriamente um circuito de comercialização, é preciso levar em conta também o sindicato de produtores de morangos de Loir-et-cher. Criado em 1973, graças à iniciativa de um conselheiro da Câmara de Agricultura, o sindicato, que reunia a maior parte dos maiores produtores, oferecia poucos serviços a seus associados, particularmente a compra agrupada de insumos. O sindicato significou, sobretudo, um lugar de encontro e concentração entre produtores e expedidores, o que permitiu o começo da criação de uma imagem de marca para os morangos da região.
Para os técnicos e assessores da Câmara de Agricultura ligados a esse projeto, tratava-se de estimular uma produção que se igualava em qualidade e apresentação àquela das grandes regiões produtoras da França que dominavam o mercado. Com tal propósito os produtores interessados e os técnicos lançaram uma campanha e elaboraram panfletos que continham os 13 mandamentos do bom produtor de morango, nos quais preconizavam, entre outras coisas, a redução das variedades das mudas utilizadas, a renovação regular das mudas, a não-mistura de diversas variedades nos mesmos caixotes e a uniformização da embalagem. Em 1976, os esforços foram recompensados, pois se obteve o assentimento da direção nacional do sindicato dos produtores de morango e a seção departamental de Loir-et-cher registrou em cartório o “macarron”, marca de qualidade “morangos da Sologne”. Os produtores ganharam tanto no plano econômico – cada caixote de morango apresentando as especificações requeridas pela marca recebia uma subvenção de 5% do preço de venda por kg – quanto no plano simbólico, ou seja, dali em diante, os morangos de Sologne tinham sua marca de qualidade, do mesmo modo que os morangos do sudoeste, de Lorraine, da região de Rhône-Alpes, como se pôde verificar pelo cartaz impresso daquele mesmo ano.
Com base nos interesses comuns, o sindicato dos produtores de morango também conseguiu colocar em relação os produtores de morango de várias comunas, o que seria determinante para a implantação do mercado de Fontaines. A ação do sindicato departamental dos produtores de morango está na origem da “homogeneidade” do produto observada no mercado, fato que constitui uma das condições da existência do modelo de concorrência pura e perfeita. A homogeneidade do produto não é algo dado, mas resultado de um trabalho de organização da produção estimulado por subvenções ou sancionadas pelo serviço de fraudes. Segundo a expressão de um integrante de um grupo de assessoria agrícola da região: “Nós lutamos pelo rótulo Fraises de Sologne”.
Esse era o quadro dos circuitos comerciais na época da criação do mercado de Fontaines: as transações se faziam segundo as relações personalizadas entre “corretores”, “expedidores” e “mandatários”; as cooperativas não constituíam mais, para os agricultores das comunas onde estavam implantadas, um circuito comercial adaptado às suas necessidades. Havia muito tempo os agricultores não estavam satisfeitos com as redes de comercialização da região e alguns dentre eles nutriam a esperança de poder criar “um pequeno Rungis em Fontaines”, modelo selvagem do mercado criado em 1981. Vejamos quais são os fatores que contribuíram para agravar o descontentamento frente aos antigos circuitos comerciais e para provocar sua substituição rápida por meio de uma nova instituição.
As características sociais dos promotores do mercado de Fontaines
A criação do mercado foi o resultado do encontro realizado entre um assessor econômico da Câmara Regional de Agricultura e alguns agricultores de Sologne com interesses comuns quanto à instalação desse novo modo de comercialização. [14]
Em 1979, um jovem assessor econômico foi designado para Loir-et-Cher com a finalidade de proceder à reorganização da produção de frutas e legumes do departamento, particularmente de Sologne e de Val-de-Loire. Tendo feito estudos na Escola Superior de Agronomia de Nancy, titular de diploma de mestrado em biologia e em direito, esse assessor tinha um capital escolar mais elevado que os seus colegas da Câmara de Agricultura, inclusive o diretor desta. Foi provavelmente o ensino de Economia, recebido na Faculdade de Direito que lhe forneceu o conhecimento da teoria neoclássica e inspirou sua ação: para ele, a necessidade de uma política para agrupar os agricultores se justificava “para fazer funcionar novamente os mecanismos de concorrência”.
As organizações econômicas dedicadas à comercialização de frutas e legumes não diferiam muito das que se ocupavam de morangos: existe uma seção departamental da FNSEA (Federação Nacional dos Sindicatos de Responsáveis por Explorações Agrícolas) chamada “frutas e legumes”, mas ela só tinha uma existência nominal. Quanto às cooperativas, já se via a situação precária em que se encontravam. O mencionado assessor tentou operar uma reorganização do conjunto do mercado de frutas e legumes por meio daquela seção “frutas e legumes” e das cooperativas. Para explicar o insucesso da sua tentativa e a frieza encontrada, ele apontou “o imobilismo” dos conselhos administrativos e inclusive dos filiados. Em contrapartida, suas palavras encontraram eco num pequeno número de agricultores (seis, sendo cinco de Fontaines) e estes se mostraram interessados na organização de um mercado com painel computadorizado.
Enquanto os agricultores que estiveram na origem da criação do mercado de Fontaines situam-se entre os maiores agricultores da região e cultivam superfícies entre 30 e 80 hectares, no conjunto das comunas utilizadoras do mercado de Fontaines 77% dos agricultores dedicam todo seu tempo à agricultura e cultivam áreas inferiores a 35 hectares. Cinco desses últimos agricultores inovadores empregavam um ou vários assalariados; na região, os agricultores que recorriam a tal tipo de mão-de-obra só representavam 25% do total. Eram profissionais modernizadores, sendo os primeiros a utilizar na região técnicas de ponta na produção de morangos que lhes forneciam o grosso da sua renda, técnicas que eles associavam às culturas de mudas de pés de morango e de semente de milho selecionado, de tabaco, ou à pecuária, atividades essas que exigem muitos conhecimentos técnicos e que são relativamente lucrativas. Se, no tocante à idade, esses agricultores eram representativos de uma mesma população agrícola, já que se situavam na faixa entre 45 e 55 anos, diferenciavam-se quanto à escolaridade. Mais elevada em um caso (é detentor do Bepc – Brevê de estudos de primeiro ciclo – com 9 anos de estudo) e, nos demais, com a freqüência de escola agrícola especializada. [15] A criação do mercado de Fontaines representava para tais agricultores modernizadores uma questão ainda mais importante, ao menos para cinco dentre eles que tinham filhos passíveis de assumirem a exploração agrícola. O único meio de assegurar essa transmissão era operar uma reconversão indispensável para tornar seus empreendimentos “viáveis”, o que implicava não somente uma produção com produtividade e qualidade mais elevadas, como também um circuito comercial mais eficaz. Conquistar novos mercados ou produzir para vender melhor era realizar uma operação equivalente àquela que seus pais tiveram que fazer na juventude quando mecanizaram as explorações agrícolas: modernizar a exploração agrícola para poder reter os filhos na terra.
Mas o que mais os distingue dos demais agricultores são as numerosas e freqüentes relações que mantêm com o exterior da região por meio das organizações profissionais, ou através dos contatos regulares com cultivadores de outras áreas produtoras de morangos pelo fato de eles serem multiplicadores de mudas de pés de morango. A tudo isso se somava o fato de ocuparem uma posição de liderança local legitimada pela excelência profissional.
Dentre tais agricultores, encontravam-se um membro do conselho de administração nacional da associação dos produtores de sementes de milho, o presidente do sindicato dos produtores de morango de Loir-et-Cher, igualmente integrante da seção regional do mesmo sindicato, e um membro do conselho de administração departamental do sindicato dos produtores de morango. Estes dois últimos tiveram a oportunidade de participar dos “seminários nacionais de morango”: reuniões anuais nas quais era elaborada toda a política para a produção e comercialização da fruta na França e, sobretudo, decididas as atribuições de subvenções.
No plano local, vê-se que entre esses agricultores estavam o primeiro e o segundo prefeitos-adjunto de Fontaines, o delegado comunal da Federação dos proprietários de explorações agrícolas, o presidente do grupo de extensão rural do distrito administrativo, o presidente da cooperativa de utilização dos equipamentos agrícolas e o chefe da banda de música. Pertencia também ao grupo um agricultor de origem social mais elevada: titular do diploma mais alto (Bepc), perito em seguros, relator dos “Estados gerais do desenvolvimento agrícola” e membro do conselho de administração da Associação Nacional de Produtores de Milho (Agpm), portanto, muito familiarizado com os meios administrativos e financeiros.
A função de multiplicador de mudas de pés de morango que caracterizava quatro produtores (três irmãos de Fontaines e o presidente do sindicato dos produtores de morango) foi fundamental do ponto-de-vista da aquisição do capital de conhecimentos relativos à produção de morangos na França, o que constituiu uma premissa para o desenvolvimento da cultura na região. Reproduzindo mudas selecionadas que eles mesmos comercializam em diferentes regiões, particularmente no sudoeste da França, pólo dominante da produção de morangos na França, esses agricultores puderam adquirir, graças às freqüentes viagens, um conhecimento “prático” das formas de agricultura dessa região. Eles descobriram que, embora não fosse uma cultura tradicional do lugar (cujos solos lhe são menos propícios que os da região de Sologne, onde se situa Fontaines), o morango permitia à maioria dos produtores obter rendas superiores ou iguais às rendas dos mais prósperos agricultores de Sologne. Esta descoberta transformou seus horizontes que, até então, estavam limitados a uma comparação constante com a moderna agricultura da região vizinha chamada Beauce. Os agricultores de Beauce, que participavam das mesmas organizações profissionais e políticas em nível departamental, constituíam o principal ponto de referência: cultivando solos ricos e apropriados à cultura cerealífera, tinham uma rentabilidade extremamente superior, em relação à qual a região de Sologne, categorizada como “zona desfavorecida”, aparecia como prima pobre.
Considerada no século XIX como uma das províncias da França mais miseráveis, [16] “Sologne” faz parte desde 1976 das regiões classificadas pelo Conselho de Ministros da Comunidade Européia como “zona desfavorecida”, ao aplicar a esta e outras regiões assemelhadas o mesmo status atribuído às regiões montanhosas (Decreto n° 76.395 de 28/04/1976). Para ser definida dessa maneira a região devia ter uma fraca densidade demográfica, uma produção agrícola por hectare inferior a 80% do valor da média nacional, uma renda de cada exploração agrícola por pessoa ativa inferior ou igual a 80% do valor correspondente da média nacional.
Os “Estados Gerais do Desenvolvimento Agrícola” [17] de Sologne (novembro de 1982) enfatizavam a heterogeneidade do mercado fundiário, havendo concorrência para compra de terras entre o setor agrícola e o de lazer (caça, pesca, residências secundárias). A estrutura fundiária e o modo de exploração da terra se modificaram muito: no século XIX predominavam as grandes propriedades, ultrapassando freqüentemente 1000 ha. Os camponeses só raramente possuíam a terra que cultivavam; freqüentemente eram sitiantes arrendatários (espécie de trabalhadores agrícolas aos quais era atribuído um lote durante o tempo em que estavam ligados a uma propriedade) (Poitou, 1985). Segundo o recenseamento francês de 1979, nas 10 comunas onde estavam instalados os agricultores que vendiam morango no mercado de Fontaines, 90% das explorações eram inferiores a 50 ha, 51% da superfície sendo explorada diretamente pelo seu proprietário e 49% em arrendamento. [18] De acordo com o Serviço Econômico da Câmara da Agricultura, 10% dos estabelecimentos eram especializados em cereais (trigo, centeio e sorgo), 30% retiravam mais de 80% da renda da pecuária leiteira ou para corte e 60% das explorações praticavam a policultura (cereais, pecuária, produção de pequenos animais e culturas hortifrutigranjeiras). A FNSEA, única organização profissional representada na região, tinha dificuldade para renovar seus delegados sindicais de base comunal. A média de idade dos responsáveis pelas explorações agrícolas era muito elevada: 67% deles tinham mais de 45 anos (Recenseamento Agrícola, 1980).
O contato com outras regiões, em particular com o sudoeste, permitiu aos agricultores se situarem diferenciadamente e darem-se conta de que poderiam praticar uma agricultura que fosse igualmente rentável, pois dispunham de solos mais favoráveis à cultura de morangos e já produziam as mudas selecionadas que explicavam a origem da prosperidade dos agricultores de Lot-et-Garonne (sudoeste).
O trabalho de criação do mercado computadorizado
Em 1979, criou-se em Verg, na região de Lot-et-Garonne, um mercado computadorizado que provocou o aumento das cotações dos frutos e a melhoria da qualidade da produção. [19] Os morangos de Sologne, que já eram considerados inferiores aos do sul da França, ficaram duplamente desclassificados. Foi neste contexto que os líderes regionais e o assessor econômico, convencidos do interesse da criação do mercado computadorizado, começaram a realizar um duplo trabalho de convencimento junto aos expedidores e agricultores da região. A operação não visava uma substituição completa dos comerciantes que trabalhavam na região, mas inseri-los em outra correlação de forças na qual o jogo da concorrência pudesse operar mais livremente, de modo que os preços resultassem mais do jogo da oferta e da demanda do que da imposição dos “expedidores” ou “corretores”.
Com tal fim entraram em contato com os expedidores da região interessados na compra de seus produtos para tentar quebrar o monopólio estabelecido pelas práticas de comerciantes que passavam com caminhões nas explorações agrícolas recolhendo a produção. A maior parte dos expedidores reagiu fortemente à criação do novo mercado, marcando coletivamente sua recusa ao novo circuito de venda e tentando dissuadir seus antigos clientes a aderirem, até mesmo fornecendo todo tipo de contra-informações. No entanto, para alguns compradores, a criação do mercado de Fontaines tornava possível a conquista de novos mercados: os expedidores da região de Saint-Romain, que não dispunham de produção local de morango, tinham interesse em comercializar o produto durante a safra de Sologne, já que permitia operar a transição entre a comercialização dos aspargos realizada na primavera e a dos legumes da região que se inicia em julho, tornando mais rentável sua estrutura comercial. Dessa forma, certos “expedidores” julgaram poder se reapropriar de uma parte da produção que era vendida diretamente aos mandatários. Triunfou assim o mecanismo da concorrência: um punhado de expedidores aceitando fazer o jogo proposto pelos produtores e desorganizando o monopólio virtual em que operavam os expedidores.
Para convencer os agricultores, foram organizadas viagens pelo sindicato de produtores de morango, a fim de que fosse observado diretamente o funcionamento de outros mercados computadorizados. Também foram feitas reuniões de “sensibilização” no campo. Quando os agricultores favoráveis à criação do mercado julgaram que já constituíam um grupo suficientemente numeroso, foi convocada uma assembléia geral do sindicato de produtores de morango, na qual se decidiu pela criação do mercado computadorizado. A definição dos estatutos, as providências junto aos órgãos administrativos para a habilitação e a obtenção de subvenções foram facilitadas pelo concurso do assessor econômico, o qual ainda participou da compra do computador e do recrutamento do técnico agrícola.
Em maio de 1982, o novo mercado começava a funcionar numa escola desativada de Fontaines-en-Sologne. No ano seguinte, o mercado adquiria sua autonomia administrativa e financeira em relação ao sindicato de produtores de morangos e passava a funcionar em um galpão novo construído para tal fim. Reunia 21 produtores, 11 dos quais originários de Fontaines. Esses agricultores se caracterizavam, em sua maioria, por explorarem terrenos de 50 ha em média e produzirem “morangos de mesa” em grande quantidade. Como os frutos tinham de ser transportados diariamente ao mercado, só os agricultores que dispunham de uma grande produção e possuíam uma caminhoneta podiam se deslocar para vender seus produtos. Inclusive porque também dispunham de tempo livre para fazê-lo, o que supõe a ajuda de outros membros da família que podiam ser encarregados, por exemplo, de vigiar a colheita de morangos durante a ausência do chefe da exploração agrícola.
Observa-se que entre os aderentes ao mercado computadorizado, três trabalham associados a seus filhos e 12 têm filhos passíveis de os sucederem à frente do empreendimento agrícola, já possuidores de nível escolar Bta (Brevê de técnico agrícola) ou equivalente; 17 praticam outros cultivos, além dos morangos (tabaco, pecuária, milho ou mudas de pés de morango), que são comercializados por outros, sendo assim menos dependentes dos “corretores”. Sob esse prisma, é significativo que o único produtor que combinava a cultura dos morangos com a produção de outros hortifrutigranjeiros não respeitava a regra em vigor no mercado de Fontaines, segundo a qual toda a produção de morangos teria que ser comercializada por meio dessa instituição e vendia uma parte de seus morangos aos “corretores”.
No tocante aos compradores, os dados disponíveis, no momento da pesquisa, só permitiam levantar certas hipóteses: os “corretores” que não dispusessem de um certo capital econômico para gerir suas empresas eram excluídos de um sistema no qual era exigido que se “compre firme”. Foram, portanto, os “expedidores”, e entre eles os mais fortes economicamente, que entraram para o novo mercado. Eram os que dispunham dos fundos necessários para fornecer as cauções bancárias impostas pelos produtores que organizaram o mercado.
Constata-se assim que a criação do mercado de Fontaines-en-Sologne é mais próxima de uma “invenção social” devida ao trabalho de alguns indivíduos interessados, por diferentes razões, em mudanças das correlações de força entre agricultores e comerciantes do que à aparição espontânea de um mecanismo liberador de energias econômicas que se imporia graças à racionalidade e à eficácia de seus processos. Como esse mercado implicou em ruptura com práticas correntes, sua criação não só representou um custo em investimentos materiais e psicológicos e um trabalho político para convencer os parceiros econômicos a aderirem como também supôs confronto com os expedidores para que aceitassem participar desse mercado. Não foi, portanto, um simples desenvolvimento de relações mercantis já existentes, produto de um mecanismo que se aperfeiçoaria na medida em que ocorressem interações entre parceiros comerciais: as práticas constitutivas desse mercado não são práticas mercantis.
“Mão invisível” ou “criação permanente”
Em 1985, o mercado computadorizado funciona mesmo que sua criação tenha estremecido antigas amizades entre corretores e produtores e tenha levado a discussões acaloradas no interior de algumas famílias dos quais uns entraram no mercado enquanto outros continuavam a defender vigorosamente os circuitos tradicionais. Uma vez instituído o mercado, a fixação dos preços seria o resultado da “mão invisível” de que fala Adam Smith (1976), que permite o equilíbrio da oferta e da demanda, cada qual perseguindo apenas seu próprio interesse, idéia retomada por Samuelson (1973: 43), que especifica que para atingir o equilíbrio se supõe que se trate de concorrência pura e perfeita?
Na verdade, o funcionamento do mercado deve ser objeto de uma vigilância incessante por parte de seus organizadores, que devem lutar contra todas as ações dos participantes que possam prejudicar o desenrolar das transações mercantis nas suas formas idealizadas. Se a criação do mercado colocou os expedidores em situação de concorrência, estes, desde 1981, tentaram se reorganizar, fazer alianças para reencontrar o poder que dispunham. Nesse sentido, há trocas cotidianas de informação por telefone sobre a evolução dos preços, há acordos secretos cujos efeitos observáveis são, por exemplo, a manutenção do mesmo preço ofertado quando uma mercadoria é submetida a uma segunda rodada de venda por ter o seu dono recusado o preço ofertado numa primeira vez.
Para evitar que tais práticas tenham uma importância crescente, o Conselho de Administração do mercado tomou certas medidas: a renovação das convenções dos compradores com o mercado se fazia automaticamente segundo os estatutos de 1981, passando posteriormente a ser estudada a cada ano, o que é uma maneira de redefinir as exigências frente aos expedidores. A expulsão, no caso de não-cumprimento das regras formuladas, estava prevista pelos estatutos; se tiver ocorrido apenas uma vez, em virtude de o comprador não ter liquidez para saldar suas dívidas, ela constituiu uma ameaça freqüentemente lembrada.
Os produtores também eram objeto de vigilância: nem todos participavam do jogo do mercado totalmente; uns por não verem contemplados todos os seus interesses e outros por não terem um conhecimento suficiente de seu funcionamento. Alguns tentavam aproveitar os dois sistemas, vendendo em um dia no mercado e noutro, diretamente ao expedidor, não respeitando a regra estatutária que obrigava levar a totalidade da produção de morangos para ser vendida no mercado; eles minavam a nova correlação de forças que estabeleceram e diminuíam a transparência do mercado. Algumas vezes outros intervinham de forma desastrada porque não conheciam o estado da demanda em outras praças comerciais. Se o silêncio era uma constante durante a realização das transações, na saída o encontro de expedidores e produtores freqüentemente era acompanhado de comentários de certa forma violentos da parte dos produtores, que objetivavam prevenir os expedidores para não baixar abusivamente o valor das cotações ou para chamar a atenção para as respostas possíveis (expulsão do mercado, interrupção da colheita).
Estas manifestações hostis em relação aos expedidores nos casos de baixa dos preços, mesmo quando a baixa era causada por uma superprodução, podiam comprometer o clima de cordialidade necessário à realização das transações e ao correto desenrolar de todo o jogo. Os produtores que tinham um melhor conhecimento do conjunto do mercado nacional assumiam a incumbência de informar os demais e de limitar os protestos. Para manter a “concórdia” e o “espírito de uma grande família” entre os aderentes, o presidente e o tesoureiro estavam presentes todos os dias e observavam, aconselhavam e, eventualmente, chamavam a atenção de um ou outro. Cada sessão do mercado era seguida de uma reunião informal entre o vendedor (o técnico agrícola), a secretária e o presidente do mercado ou o responsável indicado por ele para fazer o balanço das transações do dia.
Os efeitos econômicos e sociais do mercado computadorizado
A criação do mercado computadorizado teve um efeito positivo sobre os níveis das cotações dos morangos da região: antes de 1981, elas eram nitidamente inferiores à média nacional, como se pode verificar pelas estatísticas da seção nacional do sindicato de produtores de morangos. Desde esse ano, observou-se uma reversão da tendência até meados da década: as cotações mantiveram-se freqüentemente iguais ou superiores à média nacional, as diferenças a mais chegando a atingir a marca de 40%. Esta alta sensível dos preços dos morangos ao produtor foi gestada no interior do mercado computadorizado, mas também atingiu os circuitos tradicionais. Pois a criação desse mercado modificou o campo das redes de comercialização, particularmente por ter criado um ponto de referência para todo e qualquer agricultor da região que pôde tomar conhecimento dos preços praticados, indo diretamente ao mercado para assistir às transações ou lendo a imprensa regional que publicava as cotações regularmente. Desde então, expedidores e corretores tiveram que fixar seus preços em torno dos praticados no mercado de Fontaines. Com certa freqüência, tiveram que aumentar os preços pagos nas explorações agrícolas para evitar a adesão massiva dos agricultores ao mercado, o que enfraqueceria ainda mais suas posições como negociantes. As exportações, por outro lado, passaram de 9.495 toneladas, em 1980, para 89.758 toneladas, em 1981.
A elevação dos preços não provinha unicamente do modo de comecialização, mas do efeito estimulante que representava a exposição lado a lado das diferentes produções, pois a homogeneidade do produto e a transparência do mercado destacavam as diferenças de qualidade e quantidade que antes os produtores não podiam comparar, já que todos os produtos eram recolhidos em cada exploração agrícola. Diz um produtor: “No primeiro ano nós penamos. Este mercado nos ensinou a trabalhar. A gente vê os morangos do vizinho e a gente não quer passar por alguém que só produz para geléia”. Intensificando a concorrência entre produtores no tocante à qualidade dos produtos, esse mercado tornou-se também um meio para se obter informação sobre as técnicas a serem utilizadas. Se o número de tratamentos administrados a cada planta e as doses usadas permanceciam um segredo ciosamente guardado pelos produtores, numerosas eram as informações que circulavam acerca das doenças que atingiam os pés ou os frutos e os meios de debelá-las.
A cultura do morango tornou-se mais rentável, observando-se um aumento das superfícies cultivadas. Na comuna de Fontaines-en-Sologne, particularmente, a superfície coberta de pés de morango foi multiplicada por três entre 1981 e 1985. Por outro lado, o mercado computadorizado ampliou a variedade de produtos a serem comercializados. Desde 1982, também se vendeu aspargos e alho poro, a partir de 1984.
A institucionalização de novas formas de comercialização de morango modificou o status desses produtos e, consequentemente, dos próprios produtores. Nos anos 70, o morango de Loir-et-Cher constituía apenas um complemento de renda monetária do produtor. Graças ao novo mercado, os morangos de Sologne adquiriram uma marca de qualidade e reconhecimento regional: a imprensa local, sobretudo “Nouvelle Republique” e “Petit Solognot”, publicou uma série de artigos ressaltando a qualidade dos morangos de Sologne e o dinamismo dos produtores (cf. Le petit solognot, 1985). O cultivo de morangos tornou-se símbolo de dinamismo; prova disso foi a organização de uma feira anual de morangos em Fontaines. Em 1984 e em 1985, a Associação de Lazer dos Jovens de Fontaines organizou uma feira de morangos ao ar livre, do tipo quermesse, com barraquinhas de comidas e bebidas, bailes, espetáculo musical e de variedades, exposição da organização e dos produtos do mercado computadorizado e venda de produtos embalados para levar para casa. Segundo a imprensa, nesses eventos 15.000 pessoas freqüentaram Fontaines, comuna onde residiam apenas 484 habitantes. O engarrafamento nas estradas de acesso, por qualquer lado que se chegasse, e as filas quilométricas de carros estacionados na beira das estradas testemunharam a afluência à feira. A festa animou a vida de Fontaines de uma forma que ela nunca conhecera, ao mesmo tempo que contribuiu para forjar uma imagem de marca do morango de Sologne no plano regional.
A exposição dos produtos no mercado não só esteve na origem da elevação dos preços ao produtor como também de benefícios simbólicos. [20] A apresentação simultânea dos produtos, num único lugar, tornou evidente as disparidades de volume e qualidade da produção que refletiam as diferenças entre as superfícies cultivadas e as técnicas utilizadas, o que por sua vez expressavam os diversos capitais econômicos e culturais possuídos pelos produtores. Assim também o caráter público das transações, sobretudo no tocante a preços e quantidades, permitia que se conhecesse de forma exata o faturamento global dos aderentes ao mercado.
Por outro lado, a existência desse mercado criou novas relações ou reforçou antigos laços entre produtores. As longas noites passadas juntos em sua preparação, as viagens em grupo, os esforços exigidos pela construção do imóvel, a aceitação comum de todos dos riscos do empreendimento, todo esse esforço coletivo criou uma identidade “mercado computadorizado” (“cadran”) reforçada a cada dia na época de operação do mercado: os agricultores se encontravam todo dia juntos em um espaço distinto dos expedidores, teatralizando a oposição agricultor-comerciante. Os agricultores juntavam-se ombro a ombro face aos compradores, ajudavam-se a descarregar os produtos, trocavam informações sobre a agricultura e também sobre todos os fatos cotidianos da vida social. O mercado tornou-se uma rede de comunicação muito dinâmica, numa região em que as explorações agrícolas encontravam-se dispersas, onde a missa do domingo e a feira tradicional tinham perdido o papel de reunião social semanal. Criaram-se laços para além do trabalho e era freqüente que os agricultores do mercado, quando havia casamento de um dos filhos, convidassem os demais aderentes para tomar um vinho como parte das celebrações, cerimônia organizada nas dependências do mercado. A oposição entre os agricultores pertencentes a esse mercado e os demais fazia-se assim mais sensível.
Com a criação do mercado surgiram novas fontes de poder e prestígio, o mercado sendo administrado por um conselho eleito pelos aderentes. Os líderes do mercado passaram a ter um relacionamento inteiramente novo com a administração, com os bancos e as tecnologias de ponta. Segundo o assessor econômico que os auxiliou, tal mudança era simbolizada pela transformação do comportamento em relação à Caixa Regional do Crédito Agrícola. “A senhora conhece o Crédito Agrícola, um edifício de cinco andares? No térreo estão os guichês. No quinto andar está o escritório do diretor. Antes da criação do mercado, eles só conheciam o térreo. Agora sobem os cinco andares sem constrangimento.”
Criado sob a forma jurídica de uma cooperativa de serviços, o mercado ganhou prestígio e, em 1982, o seminário anual sobre morangos organizado pelo sindicato nacional de produtores de morango foi realizado em Sologne em Cour-Cheverny (comuna vizinha a Fontaines). Em compensação, o sindicato dos produtores de morango de Loir-et-Cher, organismo que deu origem ao mercado, perdeu os seus quadros mais ativos que se consagraram, então, inteiramente às atividades do mercado. Ouvidos, alguns deles julgavam o desaparecimento do seu antigo sindicato inevitável.
A evolução do mercado de Fontaines
Desde a criação, o mercado viu crescer o número dos seus aderentes em 63%, o volume de morangos comercializado em 55% e a superfície plantada com morangos de mesa em 66%. [21] Pode-se pensar a priori que os produtores reagiram a um deslocamento da curva da demanda, correspondente a um acréscimo do lucro marginal, seja aderindo ao mercado, seja ampliando as áreas de cultivo, no caso dos aderentes. Porém não é suficiente explicar essas duas tendências pela renda esperada. [22] Um exame detalhado da repartição das adesões e de sua evolução nos sugere que outros fatores devam ser considerados ao aderirem os produtores a essa organização econômica. Efetivamente constata-se que, de um modo geral, os aderentes às cooperativas não se integraram ao mercado computadorizado, embora este signifique uma rede de comercialização bem mais eficiente que a das cooperativas que, ademais, exigiam da parte dos sócios uma forte dependência.
As cooperativas estavam implantadas em comunas, onde a produção hortifrutigranjeira e as vinhas (cujo produto fundamentalmente era comercializado por meio das cooperativas) estavam particularmente desenvolvidas. Os produtores que associavam essas culturas eram tão dependentes das cooperativas quanto o seriam dos corretores se adotassem este circuito de comercialização, com o agravante de que as cooperativas exigiam legalmente que os sócios lhes trouxessem a totalidade da produção, fosse ela de morango ou de qualquer outro produto que se propusessem comercializar. O dirigente da cooperativa de Contres, perto de Fontaines, era, até 1981, prefeito da comuna. Optar pelo mercado teria tido, em seu caso, um significado mais forte que uma simples mudança de circuito comercial.
Um certo número de conselheiros gerais e técnicos da Câmara de Agricultura não parecem favoráveis à implantação desse mercado, talvez porque, tendo lutado pelo desenvolvimento das cooperativas, foram reticentes ante uma organização econômica mais eficaz que havia posto em xeque a própria existência de um tipo de organismo pelo qual trabalharam tanto. Em outros casos, a decisão de não aderir parecia estar ligada a situações locais nas quais intervinham relações de parentesco ou de aliança, ou, ainda, relações de concorrência.
Da mesma forma certas comunas apresentavam um número relativamente grande de aderentes (Montrieux e Romorantin), enquanto outras comunas produtoras de morango, embora mais próximas geograficamente, estavam pouco ou nada representadas. Tais foram os casos de Courmemin e Fresnes. Os dados de que dispúnhamos só permitiam hipóteses. Parece que em Fresnes a presença de um corretor muito bem implantado e que tinha laços de parentesco com um número relativamente importante de agricultores constituiu um fator importante para manter as formas tradicionais de comercialização.
Em Courmemin, o agricultor líder da comuna, que era prefeito adjunto, um dos maiores reprodutores de mudas de pés de morango da França e secundariamente produtor de “morangos de mesa”, não aderiu ao mercado de Fontaines. Talvez fosse possível explicar essa abstenção pela situação de concorrência em que se achava devido à relação com o presidente do mercado, como ele produtor de mudas, concorrente nesse mercado e igualmente devido ao cargo de dirigente no sindicato dessa atividade. Sua não-adesão ao mercado pode ser atribuída a uma estratégia que visava limitar o crescimento do mercado e o prestígio do presidente, tanto mais que a adesão deste líder provavelmente teria levado um grande número de produtores de morangos da comuna a aderir, sobretudo aqueles que praticavam o cultivo de mudas por meio de subempreitadas com ele.
Um mercado sob medida para agricultores sob medida
O estudo de um caso particular, que parece reunir as condições para que se aplique o modelo de concorrência pura e perfeita descrito por Samuelson (1973: 43), permite abordar o problema de uma forma diferente dos economistas e analisar as condições sociais que tornam possível a existência de um mercado como esse. As variáveis sociais não podem mais ser consideradas como um resíduo e causa das imperfeições da realidade em relação ao modelo; ao contrário, elas permitem explicar a implantação do mercado e suas práticas constitutivas.
O mercado de Fontaines não se criou num vácuo social, mas em oposição a relações já constituídas diante das quais certos indivíduos não se achavam mais suficientemente recompensados. O trabalho de criação do mercado só ganha todo seu significado se posto em relação à existência anterior de “corretores”, “expedidores” e agricultores, e se correlacionado às dificuldades de que padecem as cooperativas da região. As transações mercantis, tais como são praticadas no mercado de Fontaines, não são dadas a priori, mas foram preparadas por todo um trabalho com investimentos nos dois sentidos da palavra: investimento financeiro, [23] e em equipamentos (locais e pessoal) que nunca poderia ter sido realizado se dependesse exclusivamente de indivíduos isolados, tanto da parte dos agricultores como dos investidores. Ele se tornou possível graças à criação de uma associação e também devido à construção de uma identidade coletiva dos aderentes, ou seja, graças a todo um trabalho de investimento psicológico que o empreendimento exigia, o qual consistia em produzir a crença coletiva nas chances de sucesso, o consenso e a confiança mútua entre todos os participantes.
Se as transações mercantis foram efetivamente reduzidas às variações de preços monetários capazes de produzir um ajustamento entre quantidades ofertadas e quantidades demandadas, é que toda a organização do mercado foi concebida nesta perspectiva, inclusive a organização do espaço físico e a seqüência das operações no tempo, tudo sendo previsto para que compradores e vendedores só pudessem olhar para as variações dos preços fixados no painel luminoso comandado pelo computador, na única expectativa de se atingir um preço aceitável. A linguagem e mesmo as expressões que utilizavam os participantes eram estritamente codificadas. Tudo o que concernia à observação da qualidade e às quantidades dos produtos devia ser realizado antes que a sessão de compra e venda tivesse início, cada qual tendo na mão um catálogo como instrumento de acompanhamento de cada operação. A arquitetura do galpão de vendas, à imagem das curvas de oferta e demanda construídas independentemente uma da outra, separava vendedores e compradores, que eram dispostos no espaço de maneira que não pudessem se comunicar entre si nem mesmo dar uma piscadela de olho ou fazer algum gesto que marcasse o protesto ou sua aprovação. Tudo foi previsto para que os “fatores sociais” não perturbassem o livre jogo da oferta e da demanda, e seu ajuste por meio dos preços monetários.
Na realidade, se as práticas mais imediatas guardam uma correspondência estrita com aquelas que a teoria econômica prevê, é que a própria teoria econômica serviu de quadro de referências para instituir cada detalhe desse mercado computadorizado, [24] principalmente o espaço e os regulamentos, fixando o que é e o que não é admitido. [25] O mercado de Fontaines é o resultado de uma construção econômica e social. E esta construção foi possível porque um certo número de agentes, particularmente os produtores, cujos filhos poderiam sucedê-los na exploração agrícola, tinham especial interesse em reverter a correlação de forças entre corretores, expedidores e agricultores. Eles estavam aptos a fazê-lo, ajudados por um conselheiro econômico que tinha interesses convergentes [26] , que dotou o empreendimento de seu capital cultural e social.
É necessário salientar que as formas concretas desse mercado não são reprodutíveis em todo e qualquer lugar, para todos os gêneros de produção e para todos os tipos de produtores. A agricultura francesa naquele tempo quase só conhecia preços fixados politicamente, como nos casos das produções cerealífera e leiteira, nas quais os produtos que obedeciam ao livre jogo da oferta e da demanda constituíam exceção à regra. Mesmo no plano local, o mercado só atingia indiretamente o conjunto dos produtores, pois os agricultores que aderiam ao mercado constituíam uma categoria social e economicamente distinta da maioria dos produtores de morango.
Como o mercado instaurava uma separação espacial entre os parceiros da troca, ele contribuiu para reforçar a identidade social de compradores e vendedores: embora colocados em situação de concorrência entre si, os produtores compartilhavam um certo número de experiências comuns (espera ansiosa da abertura do mercado, descoberta das cotações do dia, saída em grupo terminadas as operações e expressão coletiva de eventual descontentamento em relação às cotações). No tocante aos “expedidores”, também foi fácil observar que, se o mercado reforçou a concorrência existente entre si (antes cada “expedidor” tinha praticamente o monopólio de certas áreas geográficas), dali em diante os encontros e práticas cotidianas permitiram estabelecer laços e alianças mais eficazes que as propiciadas pelo seu sindicato. O mercado formalizou, portanto, grupos que tinham interesses determinados, simultaneamente complementares e antagônicos, e o seu surgimento entre os negociantes e as cooperativas redefiniu as alianças e os conflitos possíveis. Além disto, não foram só as posições objetivas que mudaram, mas igualmente as representações associadas a essas posições: com o aparecimento do mercado computadorizado, ser produtor de morangos tornou-se uma identidade legítima que constituiu o símbolo de uma agricultura com futuro para uma região até então tida como atrasada e unicamente destinada à caça e reservas florestais.
O funcionamento “perfeito” do mercado não é efeito de “mecanismos” dados “naturalmente” (em que pese o paradoxo destes termos), nem decorre de uma “mão invisível” restaurada por meio da aplicação do “laissez-faire, laissez passer”, mas se deve ao trabalho de alguns indivíduos com interesse em que ele viesse a existir e da aceitação dos limites do jogo impostos a todos os demais participantes que também chegaram a se beneficiar de sua existência. Esse mercado deve ser considerado mais como um campo de lutas do que como produto de leis mecânicas e necessárias inscritas na natureza do mundo social, embora algumas vezes desfiguradas por “fatores sociais”. Se a criação do mercado computadorizado transformou integralmente o campo das diferentes redes de comercialização e os princípios da distinção social e instituiu novas e legítimas identidades, não se pode esquecer que, produzindo e funcionando para um grupo restrito de agentes dotados de características e interesses particulares, tal mercado está inserido no campo dos circuitos de comercialização, em relação ao qual mantém um vínculo de dependência. Deve-se ter presente que o equilíbrio desse campo pode ser posto em questão a qualquer momento segundo as correlações de força entre produtores, expedidores, cooperativas e a ação dos poderes públicos.
Os 13 mandamentos do produtor que deseja obter
morangos de qualidade1. Escolher um terreno sadio, fresco ou irrigável, sem muito calcário.
2. Escolher duas ou três variedades que tiveram bom resultado na re gião: GORELLA e RED GAUNTLET.
3. Adquirir mudas sadias e selecionadas de um produtor certificado em reprodução de mudas.
4. Prever a duração da plantação inferior a três anos.
5. Manter a cultura limpa.
6. Proteger a cultura de parasitas com tratamento apropriado.
7. Cobrir o solo obrigatoriamente com plátisco ou palha.
8. Alimentar a planta com água e adubo.
9. Colher no momento adequado, permitindo o transporte e a comercialização em boas condições.
10. Formar, enquadrar e interessar os empregados encarregados da colheita a selecionarem frutas de qualidade.
11. Prever uma triagem conforme as normas e, sobretudo, não esconder as frutas de qualidade inferior.
12. Desde a colheita, armazenar os lotes em um local fresco ou, se possível, refrigerado.
13. Utilizar de modo suficiente as embalagens de qualidade.
A marca de qualidade “morango de Sologne”
Para melhor rentabilizar os morangos de qualidade foi criada uma marca de qualidade “morango de Sologne” pelo Comitê Interprofis-sional de Morango de Loir-et-Cher, recentemente constituído.
Utilizada desde a campanha de 1973, essa marca permitirá tornar mais homogêneos os lotes de morango de Loir-et-Cher e empreendender ações publicitárias. Ela facilitará a escolha dos compradores que procuram qualidade.
Aplicado nas embalagens pelo produtor, um selo normalizado permitirá distinguir aqueles lotes.
Características dos lotes vendidos com a marca de qualidade:
• Provir de culturas cobertas de palha ou plástico.
• Variedades: GORELLA, RED GAUNTLET e BELRUBI.
• Tempo de colheita: dois dias antes da maturidade ótima.
• Categoria EXTRA (etiqueta vermelha) e 1 (etiqueta verde).
• Emprego de embalagens novas. Caixinha: a madeira é aconselhada; os outros materiais são tolerados somente até 1973; capacidade: 250 e 500g unicamente. Caixotes: preferir o formato 57 x 34 cm, mas o 50 x 30 cm também é aceito. Altura: 8-12 cm.
As pessoas que queiram utilizar essa marca deverão respeitar as condições acima indicadas e aceitar as visitas efetuadas do Comitê Interprofissional com a participação dos técnicos do Comitê Técnico Interprofissional de Frutas e Legumes (CTIFL).
(Documento difundido pela Câmara de Agricultura de Loir-et-Cher).
Os objetivos da organização econômica
“O objetivo da organização econômica consiste em gerir o mercado, isto é, dar aos agricultores um verdadeiro poder econômico na sua relação com os compradores. (…)
Para que o seu ato de venda seja eficaz, os agricultores devem se comportar como verdadeiros chefes de empresa que possuem um poder de negociação.
Para obter tal poder, eles devem restabelecer, quando da primeira venda, algumas condições de concorrência entre os compradores.
a) Fazer frente aos circuitos concentrados. Em resposta às exigências de uma distribuição concentrada e poderosa, os produtores devem repor a relação de força a seu favor, propondo uma oferta correspondente às necessidades dos circuitos e suficientemente importante para representar uma força econômica. (…)
b) Restabelecer a transparência do mercado. A transparência das transações, o controle da qualidade e das quantidades e o conhecimento dos fluxos financeiros e físicos supõem a organização ao nível dos produtores de um circuito bem organizado de informação. (…)
c) Obter as referências sobre os produtos homogêneos. A fim de oferecer a qualidade que desejam aos circuitos comerciais, poder conquistar os mercados para exportação e melhorar as condições de venda dos produtos, os agricultores devem, por um lado, procurar falar a mesma linguagem, generalizando a normalização e, por outro, apresentar uma produção homogênea e revalorizada, isto é, apresentada sob embalagens idênticas e sempre se demonstrar preocupados com a melhoria da qualidade dos produtos. Estas são as condições para que se abram os mercados. Uma vez restabelecidas a concorrência e melhores condições de venda, a aquisição de um verdadeiro poder de negociação repousa sobre a idéia, sempre presente na organização econômica, da defesa verdadeira da renda do produtor. (…)
d) Uma liberdade de transações nasce de uma livre discussão. A conseqüência mais grave das distorções da concorrência é a ausência de liberdade nas ações comerciais. Na medida em que o produtor não possui as informações necessárias, ele não dispõe de meio para tratar, de igual para igual, com os compradores – seus parceiros comerciais – que são, afinal de contas, os que determinam o preço…”
Fonte: B. Foucher, Étude sur la promotion de l’organisation légumière en Loir-et-Cher, bilan des actions (estudo financiado pelo Établissement Public Régional e pelo Conseil Général de Loir-et-Cher, maio de 1981).
Plano do Mercado Computadorizado de Fontaines-en-Sologne
Referências bibliográficas:
Bourdieu, P. La Distinction. Paris: Minuit, 1979.
______. Espace social et genese de classes, Actes de la recherche en sciences sociales, 52/53, Juin 1984.
Elegoët, Franch. Les révoltes paysannes en Bretagne Saint-Pol-de-Léon. Ed. du Léon, 1984.
Foucher, B. Etude sur la promotion de l'organisation légumière en Loir-et-Cher. Chambre d'Agriculture du Loir-et-Cher, 1983.
Gould, J. P. e Ferguson, C. E. Théorie microconomique. Paris: Economica, 1984.
Hicks,Y. Value and Capital – An inquiry into some fundamental principals of economic theory. Oxford: Clarendon Press, 1946.
______. Valor y Capital. México: Fondo de Cultura Económica, 1954.
Hirschman, A. Face au déclin des entreprises et des institutions. Paris: Ouvrières, 1972.
Malinowski, B. Os Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril, 1976.
Maresca, S. Les dirigeants paysans Paris: Editions de Minuit, 1983.
Perroux, François. La culture du fraises en Loir-et-Cher. Chambre d'Agriculture de Loir et Cher, 1967.
Poitou, C. Les Paysans de Sologne dans la France ancienne. Le Coteau: Norvath, 1985.
Polanyi, Karl. The Economy as an instituted process. In: Trade and Markets in the Early Empires. New York: The Free Press, 1957.
Samuelson, P. Economics. New York: M.Graw-Hill Book Company, 1973.
Smith, A. An inquiry into the nature and causes of the weath of Nation Oxford. Oxford University Press, 1976.
Suaud, Charles. Le mythe de la base. Les Etats Géneraux du développement agricole et la production dtune parole paysanne. In: Actes de la Recherche en Sciences sociales, n° 52-53, 1984.
Vaudois, J. Les marchés au cadran de la région du nord. In: Études rurales n. 78-79-80, 1980
Weber, Max. Economie et Société. Paris: Plan, 1971.
Notas
[1] Este texto foi inicialmente redigido em 1986 por ocasião de uma pesquisa discutida com Pierre Bourdieu e Isac Chiva sob o patrocínio do “Patrimoine Historique” na França. A primeira versão foi publicada em 1986 em Actes de la Recherche en Sciences Sociales. Agradeço a Angelica Massuquetti a gentileza de proceder à revisão do texto para sua publicação em português.
[2] “Morangos de mesa” visa traduzir a expressão “fraises à bouche”, usada localmente, e que significa os frutos destinados a serem consumidos frescos, por oposição àqueles que, utilizados pela indústria, servem para fabricar sorvetes, geléias e produtos de beleza.
[3] A central de abastecimento de Rungis localiza-se nos subúrbios de Paris e é responsável pelo suprimento da região parisiense.
[4] O relatório usava aquela expressão referindo-se à “vocação” daquela região como território destinado a florestas. Redigido no final dos anos 60, o relatório Mansholt traduzia a opinião dominante segundo a qual as regiões de montanha ou com configurações ecológicas que prejudicavam sua utilização agrícola eram tão pouco produtivas que seria melhor abandonar qualquer agricultura nessas regiões e destiná-las à pecuária extensiva, à manutenção das áreas florestais e ao turismo.
[5] Em Valor e Capital, que constitui uma das principais obras de referência para os economistas contemporâneos, John Hicks trata a concorrência perfeita como um conceito sem o qual a teoria econômica desmoronaria: “Devemos reconhecer que o abandono geral da hipótese da concorrência perfeita, a aceitação universal da hipótese segundo a qual o monopólio existe, tem conseqüências muito destrutivas para a teoria econômica. Quando o monopólio existe, as condições de estabilidade tornam-se indeterminadas, portanto as bases sobre as quais pode-se construir as leis econômicas desaparecem” (Hicks, 1946: 83-84). Num prefácio de 1954 à edição espanhola, Hicks matiza sua formulação, precisando que não é toda a teoria econômica que “desmorona”, mas apenas a do “equilíbrio geral” (Hicks, 1954: 10).
[6] O “vendedor”, que possuía título escolar de “técnico superior” em Agronomia, foi recrutado pelos produtores para tal fim. Estes esperam que ele cumpra o papel de “animador” e técnico de produção.
[7] Os preços máximo e mínimo são estabelecidos levando-se em conta as cotações do dia anterior para as mesmas categorias de produto, tanto no mercado de Fontaines-en-Sologne quanto em outros mercados franceses, conhecidos por telex, e levando-se em consideração também as variações esperadas segundo o dia da semana ou do calendário (os expedidores e os agricultores reconhecem, por exemplo, que os morangos se vendem mal quando há fins de semana prolongados).
[8] Segundo Gould e Ferguson, em manual de microeconomia publicado em 1966 (reimpresso nos EUA em 1969, 1972, 1975 e 1980 (Homewood, Richard, D. Irwin) e traduzido na França em 1980 e 1984 (Paris, Econômica) e cf. Gould e Ferguson (1984: 247).
[9] Tendo observado três dias de funcionamento do mercado em plena safra dos morangos (nos dias 7, 17 e 18 de junho de 1985), constatamos a venda de 62, 69 e 61 lotes; os lotes situavam-se freqüentemente entre 100 e 500 kg.
[10] Petits Fruits, Note hebdomadaire, Fraises, Paris, AFCOFEL.
[11] Uma vez que os preços pagos por morangos na indústria são baixos (em 1985, eles eram vendidos a 4,50 francos, enquanto o preço mínimo dos “morangos de mesa” era 6 francos), esta reconversão só tem sentido se os morangos já colhidos não foram vendidos no mercado. Tal operação consiste em transferir os morangos de pequenas embalagens de 500 gramas para caixas grandes, sem preocupação de “machucar” os frutos, e encaminhá-los a empresas de conserva.
[12] Estimamos aquela percentagem a partir do estudo de Bernard Foucher sobre a organização dos hortifrutigranjeiros de Loir-et-Cher em 1981. 31% dos “morangos de mesa” eram comercializados por negociantes, 44% pelo mercado de Fontaines e 25% por cooperativas. Como um só dos aderentes das cooperativas entrou para o mercado de Fontaines, podemos deduzir que, em 1980, 75% da produção era comercializada por negociantes (Foucher, 1983). É difícil avaliar a proporção da produção escoada respectivamente pelos “corretores”, “expedidores” e os “mandatários”. Em 1980, 22 produtores, dos 122 aderentes ao sindicato dos produtores de morangos (sindicato que controlava 60% da produção da região), vendiam os morangos diretamente aos “mandatários”. Parece que a relação entre produtor e “mandatários” se estabeleceu na geração precedente: os “mandatários”, com quem os agricultores faziam negócio, eram, na maioria das vezes, pessoas da região que haviam “subido” para Paris depois da segunda guerra mundial.
[13] Nos anos 80 existiam as cooperativas de Contres, Soings-en-Sologne e Les Montils. As de Noyers e Vineuil cessaram suas atividades pouco antes da criação do mercado.
[14] Tal tipo de mercado computadorizado não é uma invenção dos agricultores de Sologne. Foi na Holanda que se construíram os primeiros mercados com painéis fixadores de preço no século XIX; introduzidos na França em Saint-Pol-de-Léon em 1961 (Elegoët, 1984), multiplicaram-se sucessivamente na Bretanha, no norte da França (cf. Vaudois, 1980) e no sudoeste.
[15] As propriedades sociais dos atores do mercado de Fontaines-en-Sologne não diferem das dos líderes camponeses das organizações profissionais de Meurthe-et-Moselle e de Charente estudados por Sylvain Maresca. Esses últimos possuem características econômicas, sociais e culturais que os distinguem do resto dos camponeses da região, o que leva o autor a observar que “aqueles que têm por função dar a representação dominante do campesinato são os menos conformes à realidade dominante do campesinato” (Maresca, 1983: 49).
[16] Em Les Paysans de Sologne dans la France ancienne, Christian Poitou reúne um certo número de depoimentos que sublinham a pobreza daquela região, em especial o de Arthur Young (Young, 1931) e de funcionários de diversos escalões (Poitou, 1985).
[17] “Les Etats Généraux du Développement Agricole” foi uma operação política lançada pelo governo socialista em 1982, apresentando-se como uma consulta popular que teria como objetivo dar nova orientação às políticas de desenvolvimento agrícola. Para uma análise dessa produção da palavra camponesa de “base”, ver Suaud, 1984.
[18] A produção de morangos escoada pelo mercado de Fontaines provém das comunas situadas a leste da “Grande Sologne” e da “Sologne viticultora”: Bauzy, Courmemin, Billy, Neuvy, Fontaines-en-Sologne, Romarantin, Gy-en-Sologne, Contres e Montrieux.
[19] As conseqüências da criação de um mercado computadorizado sobre a evolução das cotações e a qualidade dos produtos serão explicitadas mais adiante, a propósito do mercado de Fontaines-en-Sologne.
[20] A exposição dos morangos no mercado não tem apenas por único efeito a diferenciação dos preços de cada lote no momento da venda. O confronto da qualidade dos frutos e da sua forma de apresentação atinge a honra dos agricultores enquanto produtores: pode-se comparar a excelência da produção e reconhecer aqueles que controlam os segredos do ofício. A relação entre a qualidade e a quantidade dos produtos expostos e o reconhecimento social do homem que os produziu lembra a exposição dos inhames entre os tobriandeses descrita por Malinowski; estes produtos sem valor mercantil, às vezes mesmo sem valor de uso, eram apresentados de forma cuidadosa para que os tobriandeses viessem admirá-los (Malinowski, 1976).
[21] Segundo as estatísticas elaboradas pelo mercado de Fontaines, de 1981 a 1984, o número de aderentes passou de 21 a 35, o número de toneladas de morangos de mesa comercializadas por meio do mercado passou de 224 898 a 407 118 e a superfície cultivada, de 38,03 ha a 57,46 ha.
[22] Para analisar esse ponto, inspiramo-nos na reflexão de Pierre Bourdieu sobre o consumo (“A teoria que faz do consumo uma função simples da renda tem por si todas as aparências, pois a renda contribui com uma parcela importante para determinar a necessidade. Todavia ela não pode dar conta dos casos em que a mesma renda acha-se associada a consumos de estruturas totalmente diferentes” (Bourdieu, 1979: 248). Também nos apoiamos na análise de Hirschman segundo a qual as empresas não tendem necessariamente a atingir o lucro máximo possível (Hirschman, 1972).
[23] Não possuímos dados precisos sobre tal investimento. Os agricultores mencionaram despesas situando-se aproximadamente em torno de 30.490 euros, sem contar o custo do galpão.
[24] Pierre Bourdieu chama de “efeito de teoria” a contribuição particular das formulações com pretensão científica sobre a constituição do mundo social segundo as imagens que elas projetam sobre este mesmo mundo social (Bourdieu, 1984: 3-12).
[25] Max Weber enfatiza que a regulamentação do mercado tem influência sobre a “situação mercantil, ou seja, a totalidade das chances de cessão e de aquisição contra numerário, tais como podem ser percebidas nas lutas dos preços e na competição dos eventuais trocadores”. (Weber, 1971: 84). No caso do mercado computadorizado é a regulamentação elaborada pela iniciativa dos produtores que garante a livre concorrência.
[26] Do sucesso da criação do mercado computadorizado dependia sua trajetória profissional e política.