William Héctor Gómez Soto
A Sociologia do “mundo rural” de José de Souza Martins. [1]
Estudos Sociedade e Agricultura, 20, abril 2003: 175-198.
Resumo: (A Sociologia do “mundo rural” de José de Souza Martins). O objetivo deste texto é apresentar a explicação sociológica de José de Souza Martins acerca do mundo rural e da sociedade brasileira. Martins constrói sua teorização do agrário e do capitalismo brasileiro utilizando criativamente categorias marxistas tais como produção de relações não-capitalistas, formação econômico-social, diversidade dos tempos históricos e o conceito de desenvolvimento desigual. O artigo enfatiza o método dialético que Martins retoma de Marx e de Henri Lefebvre. Na construção analítica de Martins, o rural constitui um elemento decisivo para explicar as contradições do capitalismo brasileiro. Para Martins, uma vez que se situa na margem da sociedade capitalista, o rural oferece um formidável ponto de observação e análise da nossa formação social.
Palavras-chave: mundo rural, campesinato, marxismo, reforma agrária.
Abstract: (José de Souza Martins and the Sociology of the Rural World). This work presents the sociological analysis developed by José de Souza Martins about the rural world and Brazilian society. Martins’ theory about agrarian social relations and Brazilian capitalism is based on a creative use of Marxist categories such as the production of non-capitalist relations, social-economic formations, diversity of historical time and the concept of unequal development. The article focuses the dialectic method that Martins has adopted from Marx and Henri Lefebvre. In Martins’ work, rural relationships are essential for the explanation of the contradictions of Brazilian capitalism. According to Martins, the rural world is an excellent standing point from which to observe and analyze Brazilian social formation, because it is on the margins of capitalist society.
Key words: rural world, peasantry, Marxism, agrarian reform.
William Héctor Gómez Soto é professor da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC).
Apresentação
O objetivo deste trabalho é analisar a explicação sociológica de José de Souza Martins acerca do “mundo rural” e da sociedade brasileira. Esta análise implicou descobrir as escolhas teóricas e as influências dos “autores-mentores”. José de Souza Martins é, sem dúvida, o mais importante estudioso contemporâneo do “mundo rural” e da sociedade brasileira. Suas obras são referência obrigatória para a compreensão do Brasil contemporâneo.
Ao longo da sua trajetória intelectual, iniciada nos anos 60, Martins constrói uma nova interpretação sobre as contradições e os desencontros da sociedade brasileira. O método de Martins é o método dialético, “marxiano”, como ele próprio o chama. O autor busca recuperar a tradição originada em Marx, mas em oposição às interpretações dogmáticas e rígidas dos seguidores de Marx que esterilizaram o que há de mais rico e estimulante: a dialética marxiana.
Já nas suas primeiras pesquisas pode-se visualizar a idéia que fundamenta sua análise: Martins defende a tese de que o atraso, o “tradicionalismo” agrário não necessariamente se torna um obstáculo para o desenvolvimento do capitalismo brasileiro; muito pelo contrário, essas relações “atrasadas” e “não-capitalistas” são reproduzidas e recriadas sob o domínio do capital e necessárias para a própria acumulação capitalista.
A idéia principal da fase inicial da pesquisa de José de Souza Martins sobre o “mundo rural” refere que a cultura camponesa não necessariamente está em contradição com o processo de modernização tecnológica e o desenvolvimento capitalista, contrariando a concepção vigente em muitos estudos sobre o mundo rural que se basearam na idéia marxista do desaparecimento do campesinato. Nesse contexto, a sociologia tem um papel importante a desempenhar, principalmente no que diz respeito à construção de uma consciência social capaz de eliminar esse descompasso, descobrir e formar as possibilidades objetivas para a transformação da sociedade brasileira numa sociedade democrática e justa. Da mesma forma que Florestan Fernandes, José de Souza Martins constrói uma sociologia dos pobres do campo, dos marginalizados da modernização e de um campesinato como sujeito ativo e participante da história.
Martins representa uma nova forma de pensar a sociedade brasileira. Em certa medida a obra martinsiana aparece como continuação, por um lado, da Escola Sociológica de Florestan Fernandes e, pelo outro, do projeto de recuperação do método dialético iniciado por Henri Lefebvre. De acordo com Martins, tanto Florestan Fernandes como Henri Lefebvre foram, em vários sentidos, marginalizados pela esquerda e pela academia. Florestan foi marginalizado pela academia e pela própria sociedade brasileira. Florestan nasceu no meio da mais absoluta pobreza. Lefebvre rompeu com o Partido Comunista francês e por isso mesmo foi marginalizado, mas também marginalizado pela sua própria região de origem, uma província camponesa. Lefebvre nasceu nos Pirineus, à margem portanto do mundo intelectual parisiense. José de Souza Martins igualmente teve origem humilde e talvez ela explique sua preocupação com as vítimas do capitalismo brasileiro. Num certo sentido, ele também tem sido marginalizado pela independência intelectual, pela sua crítica radical aos dogmatismos e por rejeitar a confusão, muito comum, entre ideologia e conhecimento sociológico, entre o papel do militante e do sociólogo. Martins afirma que a missão do sociólogo é produzir conhecimento mesmo que essa tarefa provoque desconforto em alguns.
Os autores-mentores: Florestan, Candido, Marx e Lefebvre
Florestan Fernandes, Antonio Candido, Marx e Henri Lefebvre são sem nenhuma dúvida os autores que exerceram uma decidida influência na construção da sociologia de José de Souza Martins. Martins recebe essas influências de forma criadora, reelaborando-as e potencializando assim o alcance explicativo que elas proporcionaram.
A sociologia fundada por Florestan Fernandes no final da década de 1950 teve como principal desafio explicar cientificamente as profundas transformações sociais que fizeram emergir a nova sociedade urbano-industrial. É possível reconhecer que, por suas inovações temáticas, teóricas e metodológicas, essa nova sociologia representou uma ruptura paradigmática em relação às interpretações da sociedade brasileira anteriores, ao mesmo tempo que suas elaborações teóricas e indagações ainda hoje permeiam as obras e as análises de cientistas contemporâneos. Resulta difícil entender o Brasil atual sem dialogar com a produção teórica do núcleo de sociólogos formados e orientados por Florestan Fernandes.
Se, por um lado, as primeiras investigações sobre o “mundo rural” de José de Souza Martins encontram-se estreitamente ligadas às preocupações teóricas, empíricas e práticas da Escola Sociológica de Florestan Fernandes, por outro, também é verdade que elas foram marcadas sensivelmente pelas obras de autores que buscavam o diálogo com outras disciplinas, como a antropologia. Cabe mencionar, especialmente, a influência decisiva de Os parceiros do Rio Bonito, de Antonio Candido, e por meio desse autor a influência de A ideologia alemã de Marx e Engels, principalmente no que se refere à tentativa de entender a historicidade do homem.
Para Martins (1998: 117), “Antonio Candido traz com Os parceiros do Rio Bonito uma contribuição inestimável à compreensão do modo como as contradições sociais se propõem na sociedade brasileira – em termos de uma pluralidade de tempos históricos, de descompassos e conflitos que passam pelo desencontro desses tempos na construção do vivido.”Por outro lado, como indica o próprio Antonio Candido, a idéia marxista do caráter histórico das relações entre os homens, entre sociedade e natureza, orientou-o na elaboração da análise resultante de sua pesquisa:
“Quanto às influências intelectuais: devo à obra de Marx a consciência da importância dos meios de vida como fator dinâmico, tanto da sociabilidade, quanto da solidariedade que, em decorrência das necessidades humanas, se estabelece entre o homem e a natureza, unificados pelo trabalho consciente. Homem e natureza surgem como aspectos indissoluvelmente ligados de um mesmo processo, que se desenrola como História da sociedade. Neste sentido, foi decisiva para o presente estudo a parte inicial de A ideologia alemã.”(Candido, 1987: 11).
A idéia de historicidade do processo de construção da sociedade, originada de Marx e retomada por Florestan Fernandes e Antonio Candido, também fundamenta a análise dos processos sociais do mundo rural, realizada por José de Souza Martins. Ele mostra que:
“Desde Os parceiros do Rio Bonito, o esforço interpretativo de ligar os processos singulares, e, não raro, locais e imediatos, com o processo histórico e a realidade social e histórica do país, e da condição humana, define um padrão teórico e metodológico de interpretação de uma sociedade que não se confunde com as sociedades pressupostas nas orientações dos clássicos e da sociologia de importação” (Martins, 1998: 125).
Na concepção do projeto Economia e sociedade, coordenado por Florestan Fernandes, os sociólogos teriam que contribuir para criar a consciência, nos diversos grupos sociais, com o objetivo de superar os obstáculos ao desenvolvimento. Nesse cenário é possível entender melhor a discussão sobre feudalismo e capitalismo no Brasil. Já na década de 1950, muitos anos antes das formulações de Gunder Frank, [2] Florestan Fernandes a seu modo discutia sobre o atraso e os obstáculos ao desenvolvimento capitalista no Brasil. Em Sociedade de classes e subdesenvolvimento, Florestan Fernandes argumentava que as relações atrasadas eram em certa medida necessárias para o funcionamento do sistema capitalista. Essa é a idéia que Martins retoma nas suas primeiras pesquisas sobre o homem do campo:
“A surpresa da pesquisa foi a constatação de que na região mais caracteristicamente tradicionalista e caipira, o Alto Paraíba, o tradicionalismo era justamente um ingrediente essencial e uma condição do padrão moderno, capitalista e eficiente da agropecuária regional, especialmente no Médio Paraíba, que ganhava corpo numa moderníssima cooperativa regional de leite. O tradicionalismo era, naquelas condições, e certamente não seria em outras, um dos meios da acumulação capitalista” (Martins, 1998: 155-56).
Essa ótica de análise serviu de base para estudos posteriores que chamavam a atenção sobre a funcionalidade da agricultura no de-senvolvimento do capitalismo no Brasil, em especial a idéia de que a pequena produção agrícola desempenha uma função necessária para a reprodução e acumulação do capital. [3]
Florestan Fernandes estava preocupado por entender as singularidades do desenvolvimento capitalista no Brasil em relação à universalidade do capitalismo como noção abstrata. Essa interação entre o universal e o particular permitiria a apreensão da essência do capitalismo brasileiro, seus limites e potencialidades; suas tendências e características. Assim, as pesquisas do grupo estavam orientadas por essa idéia. Martins confessa que suas primeiras pesquisas no âmbito do agrário estavam norteadas pelas concepções e idéias sustentadas pela Escola Sociológica de Florestan Fernandes:
“Minha primeira pesquisa, e outras que eu fiz depois, partia dessas orientações e das contribuições teóricas e interpretativas consistentes que vinham desses trabalhos e lhes dava continuidade. Em particular, enfatizo a importância dessa marca da ‘escola sociológica de São Paulo’, que foi a de tomar como referência metodológica da pesquisa científica não necessariamente o que está no centro do processo histórico, mas aquilo que está num plano secundário ou marginal, uma mediação. Mesmo quando se tratou de estudar a burguesia (e o empresariado), Fernando Henrique não foi estudá-la em seu apogeu e em sua dominação, mas começou a estudá-la em sua origem, nas contradições do escravismo, num momento de impasses históricos e de incertezas, um momento de gênese e de definições estruturais. Meu trabalho procurava seguir esse padrão. Fui estudar o pólo atrasado do de-senvolvimento capitalista, tendo como referência os resultados sociais mais elaborados desse desenvolvimento” (Martins, 1998: 157).
Na produção de conhecimento sociológico de José de Souza Martins sobre o mundo rural, este aparece como a mediação possível para entender as contradições e o desenvolvimento do capitalismo brasileiro. Estudando o mundo rural, entendido como o anômalo e o atrasado, poder-se-ia entender os limites e as particularidades do capitalismo brasileiro. Para Martins, “não se tratava de retomar polarizações e dualismos, como ocorrera com o estudo de Jacques Lambert, Os dois Brasis, nos anos 50. Tratava-se de reconhecer no atrasado, no anômalo e no marginal a mediação que oferece a compreensão mais rica do processo histórico e também indica o lugar histórico de bloqueios e resistências ao desenvolvimento social” (Martins, 1998: 157). Ao considerar o “mundo rural” como uma mediação para entender o desenvolvimento capitalista no Brasil, Martins abre uma nova perspectiva para a compreensão do processo histórico e seus limites e bloqueios. Essa opção leva implícita a crítica às interpretações dualistas das décadas de 50 e 60 nascidas em Os dois Brasis que mostram a polarização entre um Brasil “moderno” e outro “atrasado”.
Essa opção de José de Souza Martins implicou estudar o anômalo:
“O conjunto de meus trabalhos é marcado por uma preocupação de natureza com aqueles que estão à margem, os quais eu costumo chamar de vítimas, aquelas pessoas que não estão no centro da percepção dos acontecimentos dominantes, que aparentemente não estão envolvidas neles embora de fato estejam, pessoas que normalmente não são consideradas como informantes válidos do acontecer histórico, testemunhas dos acontecimentos históricos que possam merecer uma atenção especial por parte dos pesquisadores. Essa preocupação é própria do grupo de sociologia da USP. Vários dos estudos de Florestan Fernandes foram feitos com quem estava à margem: o negro, o jovem, enfim, populações que normalmente não merecem atenção de um pesquisador convencional, a menos que se tornem um problema social” (Martins, 1998: 197- 98).
A análise de Martins distancia-se criticamente das interpretações dualistas. Isto é possível pela incorporação do marxismo nas pesquisas da Escola Sociológica de Florestan Fernandes, um marxismo flexível, sem a rigidez do dogmatismo do marxismo oficial, aquele sustentado pelos partidos políticos de esquerda, principalmente o Partido Comunista. A leitura de História e consciência de classes, de Lukács, possibilitou abrir um novo campo de análise centrado na importância da consciência de classe no processo histórico.
Tomar a consciência como um elemento central na análise do processo histórico significou entrar em choque com as interpretações marxistas dogmáticas, nas quais predominava o determinismo econômico como elemento explicador de todos os fenômenos da sociedade capitalista. No enfoque da Escola Sociológica de Florestan Fernandes, o capitalismo aparecia como a única opção histórica “possível” e “desejada socialmente” e, portanto, cabia aos sociólogos a análise objetiva do processo de desenvolvimento do capitalismo brasileiro. Tal posição atentava contra o determinismo do marxismo gerado pela União Soviética e tornado ideologia do partido e do estado burocrático. No Brasil, assim como em quase todos os países da América Latina, o Partido Comunista era o portador desse tipo de marxismo dogmático. Os manuais de materialismo dialético difundidos pela Academia de Ciência da URSS eram a referência básica na qual alguns intelectuais de esquerda buscavam inspiração. A Escola de Sociologia de Florestan Fernandes subverte, desde a esquerda, aqueles dogmas que não ajudavam em nada a compreender a sociedade brasileira. [4]
O debate e as preocupações teóricas, práticas e metodológicas levantadas pela Escola Sociológica de Florestan Fernandes serviram como um quadro de referência obrigatória muito útil nas análises dos resultados das primeiras pesquisas de José de Souza Martins sobre o “mundo rural”. O próprio Martins reconhece que: “Meu trabalho foi, portanto, não apenas um trabalho de pesquisa, mas uma pesquisa fundada em um debate teórico. Quando estava no campo, por exemplo, pensava como questões teóricas aquilo que observava, o que foi muito importante para mim” (Martins, 1998: 161).
O Seminário sobre O capital, constituído por um grupo de discípulos de Florestan Fernandes, mas sem sua participação, foi outro evento importante e cujos resultados têm influenciado a obra de José de Souza Martins. Através das discussões sobre a obra de Marx, Martins teve diante de si um marxismo livre de dogmatismo. Martins, ao mesmo tempo que incorpora nas suas análises as preocupações teóricas da Escola de Florestan Fernandes, busca nas contribuições específicas de autores como Lefebvre uma nova perspectiva para o marxismo.
Posteriormente, em 1975, Martins organizou, com alunos de pós-graduação, um novo grupo para a leitura da obra de Marx. Esses seminários aconteceram todas as sextas-feiras durante 13 anos. A posterior descoberta de Lefebvre trouxe ao grupo novos temas esquecidos pelo marxismo vulgar. Da leitura de Lefebvre e da releitura de Marx, o grupo descobriu a importância que tinham os Grundrisse como referência teórica para entender-se e interpretar-se a problemática dos países subdesenvolvidos. O desenvolvimento, num país atrasado e periférico como o Brasil e a maior parte dos países da América Latina, tem a característica de ser desigual e combinado. [5] Como mostra Martins:
“Os Grundrisse de Marx ajudam a pensar essa diversidade de tempos históricos que não são residuais; o importante em Marx está nisso. Para ele, essa diversidade de tempos está ligada a uma certa concepção de história, de transformação, mas não se trata de tempos residuais. São tempos contemporâneos convivendo simultaneamente” (Martins, 1998: 206).
Essa idéia de Martins sustenta sua postura teórica e metodológica nas suas pesquisas sobre o mundo rural. Este aparece, não como um resíduo que tende a desaparecer e que trava o desenvolvimento, mas como um tempo e uma forma social integrante do desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Essa postura entra em choque diretamente com a visão marxista ortodoxa que considera o campesinato em processo inevitável de desaparecimento.
Mais adiante poderá ser visto que essa perspectiva aparece como um traço diferenciador de suas análises sobre o mundo rural brasileiro. Como resultado da incursão na obra de Lefebvre, Martins afirma que a noção de formação econômico-social expressa que as relações sociais “têm datas diferentes e que estão, portanto, numa relação de descompasso e desencontro. Nem todas as relações sociais têm a mesma origem. Todas sobrevivem de diferentes momentos e circunstâncias históricas” (Martins, 1996: 15).
Por meio de Lefebvre, Martins descobre um marxismo despojado de dogmatismo e uma fonte de inspiração para interpretar os problemas do capitalismo sem se restringir exclusivamente às determinações econômicas.
Em O capital, o desenvolvimento capitalista aparece como modo de produção dominante, destruidor dos demais modos de produção, ao passo que nos Grundrisse as relações sociais capitalistas convivem com outras relações sociais. Em Marx, as relações atrasadas não propriamente capitalistas em estado puro tornam-se mediações necessárias para se entender a sociedade inglesa, considerada como o modelo do desenvolvimento capitalista. Assim ele preocupou-se por entender como o processo capitalista adquire formas diversificadas nos países periféricos. Essa é a importância das suas análises sobre a Irlanda, a Espanha, a Índia, a Rússia e os Estados Unidos. Marx refere-se à coexistência das relações sociais precedentes com as relações sociais meramente capitalistas.
A coexistência de diversos tempos do desenvolvimento capitalista, segundo Martins (1996a), pode ser expressa de forma rica e clara no mundo rural. No mundo rural a diversidade e a complexidade das relações sociais se manifestam como expressões dos ritmos e dos tempos históricos diferentes do desenvolvimento capitalista. Porém, não se trata de considerar o mundo rural como um espaço social e econômico isolado do mundo urbano-industrial, como expressão clássica e, ao mesmo tempo, moderna, do capitalismo. Trata-se de estudar o mundo rural devido a “sua extraordinária variedade e suas características próprias” (Lefebvre, 1986: 163).
A partir da perspectiva de Lefebvre, entende-se que os estudos sobre o mundo rural e em particular sobre o problema camponês, para tornarem-se objeto científico da sociologia, devem ser considerados não de forma isolada, mas, pelo contrário, devem ser explicados a partir da elaboração de uma perspectiva de “totalidade do processo social e de suas leis” (Lefebvre, 1986: 165). Dentro dessa visão, a explicação sociológica sobre os fenômenos sociais rurais é insuficiente e incompleta se não se vincular à noção de totalidade; os fenômenos sociais devem ser entendidos como parte de um processo social em nível nacional e global. Nos países subdesenvolvidos, periféricos e dependentes, coexistem as formas mais atrasadas com as mais modernas.
Para Lefebvre, a noção de formação econômica e social, recuperada de Marx, resulta central para explicar a dupla complexidade da realidade social: horizontal e vertical. O método proposto de Lefebvre e retomado diretamente da dialética de Marx é o método que orienta os estudos sociológicos de José de Souza Martins sobre o mundo rural no Brasil.
Além da sociologia rural
Apesar da maior parte da sua produção científica referir-se a temas rurais, a abordagem analítica de José de Souza Martins para explicar o “mundo rural” ultrapassa os limites de uma “sociologia rural”. Contrariamente ao que possa parecer, o objeto central da sua análise não são os “fenômenos sociais rurais”, mas sim o processo de de-senvolvimento do capitalismo no Brasil. Como ele afirma (Martins, 1975: 1): “O tratamento crítico que dei às minhas pesquisas permitiram-me ultrapassar o conceito limitado e limitante de ‘rural’, de forma que os processos que investigo estão situados tanto no meio rural quanto no meio urbano”.
Nesse sentido, Martins (1986) considera o capitalismo como uma totalidade inacabada, em movimento e contraditória. Para ele, muitos estudos recentes sobre o mundo rural tentam separar o que o capital já unificou, ou seja, o rural e o urbano. Dessa forma, segundo Martins, as análises devem ser concentradas no processo do capital e nas contradições que ele engendra. Como a complexidade do capitalismo no Brasil expressa-se nas particularidades de seu desenvolvimento, no “mundo rural”, essa complexidade é descoberta nos diferentes ritmos e nos diferentes tempos do desenvolvimento capitalista.
A apreensão da complexidade do capitalismo brasileiro implica necessariamente uma rede de conceitos que Martins vai construindo sucessivamente. O exame da sua produção científica, iniciada no final da década de 1960, mostra o surgimento de um conjunto de categorias e, por trás delas, uma visão de mundo baseada numa leitura crítica das obras de Marx e de Henri Lefebvre. Assim, ao longo da sua produção vão aparecendo categorias como: campesinato, capitalismo inacabado, desenvolvimento desigual, formação econômica e social, renda territorial capitalizada, escravidão por dívida, classes subalternas, sociologia do estranho e do estranhamento, dissimulação, código de duplicidade, linguagem do silêncio, sociedades barrocas, território antropofágico, ideologia urbana, ideologia capitalista, ideologia do trabalho na “grande lavoura”, exclusão integrativa, expropriação, exploração, terra de negócio/terra de trabalho, revolução agrária e reforma agrária e finalmente produção capitalista de relações não-capitalistas. Não interessa apenas encontrar os significados desses conceitos; mais do que isso, trata-se de encontrar o fio condutor, a categoria ou o seu núcleo, que ilumine e explique o conhecimento produzido. A partir da análise da obra do autor é possível propor que existe uma categoria central que oferece esse fio condutor: trata-se da categoria a produção capitalista de relações não-capitalistas.
Em O cativeiro da terra, [6] Martins explicita a importância do conceito de produção capitalista de relações não-capitalistas na sua análise sobre o capitalismo brasileiro e especificamente sobre a questão agrária. Como ele mesmo expõe: “Venho orientando a minha pesquisa teórica e empírica pelo problema da produção capitalista de relações não-capitalistas de produção” (Martins, 1996b: 1).
O conceito de produção capitalista de relações não-capitalistas é explicitado por Martins da seguinte forma: “O capitalismo, na sua expansão, não só redefine antigas relações sociais, subordinando-as à reprodução do capital, mas também engendra relações não capitalistas igual e contraditoriamente necessárias a essa reprodução” (Martins, 1996b: 19-20). Um exemplo do anterior é a renda da terra que, mesmo sendo uma forma social e econômica anterior ao capitalismo, é subordinada e reproduzida pelo capital. Como indica o autor: “A nova forma que ela assume é caracteristicamente capitalista, é oposta ao tributo historicamente anterior: nem os burgueses nem os proletários transferem diretamente uma parte dos seus lucros ou de seus salários aos proprietários” (Martins, 1996b: 20).
No seu livro O cativeiro da terra, o autor explica de forma explícita seu método de trabalho intelectual, enfatizando que ele privilegia “o concreto, o processo social”. Além disso, Martins diz que: “Num plano mais geral, reputo como importante, a partir da retomada da constatação de que o capital é um processo, desenvolvida por Marx, a observação de que o próprio capital engendra e reproduz relações não capitalistas de produção”. Aqui parece estar a chave que possibilita entender a forma em que o autor constrói seu quadro explicativo acerca da sociedade capitalista brasileira, a qual ele chegou através da leitura e interpretação da obra de Marx: “Pude chegar a esse ponto especialmente por meio de uma reflexão demorada sobre a análise que Marx faz da renda territorial na sociedade capitalista” (Martins, 1996b: 3).
Cabe salientar que a análise de Martins a respeito da produção de relações não capitalistas é desenvolvida em oposição à tese de que o trabalho assalariado, como expressão exclusiva do capitalismo, substituiu o trabalho escravo. Essa tese foi sustentada, ente outros, por autores clássicos como Caio Prado Júnior em seus livros História econômica do Brasil (1945; 1963 e A revolução brasileira (1966; 1999).
Ao trazer para a análise a questão da renda da terra, Martins resgata uma noção esquecida por alguns autores brasileiros: a noção de renda fundiária. Para Martins (1996b), a ausência de uma análise sobre a renda da terra provocou um atraso teórico e político: no plano teórico, significou uma certa incapacidade na compreensão sociológica das lutas sociais no campo e de seu significado histórico; no sentido prático, produziu um desencontro entre a luta pela reforma agrária e a luta pela terra.
O desencontro entre a luta pela terra e a luta pela reforma agrária, [7] segundo Martins (1991: 12), baseia-se na concepção de reforma agrária dos grupos de esquerda oriundos das classes médias, sobretudo no momento da “abertura democrática” do começo da década de 1980. Com isso, na sua visão, a luta pela reforma agrária se inicia muito tempo depois das lutas dos trabalhadores pela terra.
A centralidade da categoria produção capitalista de relações não-capitalistas
Propõe-se aqui que produção capitalista de relações não-capitalistas é a categoria central na obra de Martins não somente porque permite captar o fio condutor da sua produção, mas por ela ser um instrumento que possui um significado amplo, sintético, global e que possibilita entender o pensamento do autor. Essa categoria expressa um processo complexo que reproduz, amplia e recria suas contradições. Esse processo é o desenvolvimento do capital na sociedade brasileira. Ela dá sentido, iluminando assim, do início até o fim, toda a produção sociológica de Martins sobre a formação e o desenvolvimento do capitalismo brasileiro, o que quer dizer que a categoria mencionada permite entender e explicar as outras categorias utilizadas pelo autor em suas análises. Categorias como campesinato e seu significado, seu papel político, sua posição social, suas relações sociais e suas características como expressão do real são explicadas a partir daquela categoria central. Da mesma forma, a compreensão e a interpretação do capitalismo, como categoria e como processo real, ultrapassam as interpretações dogmáticas que o identificam como expressão de relações salariais ou como exclusivo de uma práxis industrial. Assim, Martins supera, ainda que anos depois e de forma radical, o debate feudalismo x capitalismo.
Para Martins, o capitalismo é considerado como uma totalidade inacabada, constituído de partes distintas em conflito, com incoerências e contradições. A reprodução das relações sociais implica também a reprodução das contradições. Algumas relações sociais se dissolvem, outras (novas) são produzidas ou modificadas, no seio do processo de reprodução das relações sociais. Sob essa perspectiva, Martins discute o problema camponês. Na sua visão, o camponês é recriado através das mediações próprias da sociedade capitalista, especificamente da “renda territorial capitalizada”, da “propriedade privada da terra”, da distinção entre “terra de trabalho e terra de negócio”. A renda da terra constitui-se em mediação entre as atividades produtivas do camponês e as necessidades da reprodução ampliada do capital. Portanto, como indica Martins, o que define as relações sociais como capitalistas é a mediação da renda capitalizada como forma de expressão da propriedade privada da terra e não a compra e venda da força de trabalho.
Apesar do poder explicativo dessa categoria analítica, verifica-se que ela encontra-se vinculada a outras duas categorias: desenvolvimento desigual e formação econômica e social, formando um núcleo conceitual que amplia a compreensão da visão de mundo do autor. Elas são categorias relacionadas, interdependentes, que, combinadas, informam plenamente sobre a visão de Martins acerca do “mundo rural”.
O diverso não é apenas o diferente, como acreditaram muitos dos seguidores de Marx, mas aquilo que não é contemporâneo. De acordo com Lefebvre:
“A noção de formação econômico-social retomada e aprofundada por Lênin engloba a de desenvolvimento desigual, como engloba a de sobrevivências na estrutura capitalista de formações e estruturas anteriores” (Lefebvre apud Martins (1996b: 17).
Diga-se de passagem que a influência de Marx na obra de Martins se manifesta precisamente na construção do marginal, das relações sociais atrasadas, do campesinato, do cotidiano como mediações que explicam a constituição do capitalismo brasileiro. Esse é um traço distintivo e diferenciador da análise martinsiana. Marx busca entender a economia capitalista da Inglaterra a partir das relações entre a aristocracia inglesa e os arrendatários irlandeses. De acordo com Marx: “A Irlanda é o baluarte da aristocracia fundiária inglesa. A exploração daquele país não é apenas uma das fontes principais do bem-estar material dessa aristocracia, mas também a sua maior força moral. Isso representa, de fato, o domínio da Inglaterra sobre a Irlanda. A Irlanda é, pois, o principal instrumento de conservação de hegemonia da aristocracia inglesa na própria Inglaterra” (Marx apud Martins, 1996b: 17).
A utilização, por Martins, do camponês como categoria para explicar o desenvolvimento capitalista no Brasil, é possível graças a um esforço de interpretação crítica da obra de Marx. Esse esforço de interpretação crítica significa a superação ou ampliação de algumas noções utilizadas por Marx. Esse é o caso da categoria marxiana de produção e reprodução das relações sociais capitalistas. Essa categoria tem passado desapercebida para a maior parte dos produtores brasileiros de conhecimento sobre o “mundo rural”. Martins retoma essa noção a partir das leituras de Marx e de Lefebvre. Com base nessa noção Martins elabora a noção de produção capitalista de relações não- capitalistas. O camponês como categoria de análise sintetiza, ao mesmo tempo que é resultado, essa descoberta de Martins. A noção de produção capitalista de relações não-capitalistas permite que Martins critique a “teoria da articulação dos modos de produção”, isto é, a noção de formação econômica e social que supunha a coexistência de diversos modos de produção articulados. [8] As teses feudalistas defendidas por alguns autores, como Alberto Passos Guimarães, baseiam-se nessa visão.
Os conflitos sociais no campo são explicados por Martins com base numa perspectiva que combina o reconhecimento de tempos históricos e ritmos diferentes do processo de desenvolvimento capitalista. Os conflitos sociais no campo são explicados a partir do processo de expropriação da terra e da concentração do capital. As noções de exploração e de expropriação são utilizadas por Martins para apreender e explicar o processo diferenciador na formação das classes sociais na sociedade brasileira. Martins quer mostrar que o processo de desenvolvimento capitalista expropria, mas sem proletarizar o trabalhador do campo. Ele chega ao conceito de camponês através de um processo intelectual que combina uma postura crítica diante da teoria marxista e das interpretações dogmáticas e uma observação sistemática dos processos sociais e especialmente dos movimentos sociais no campo.
No seu livro A militarização da questão agrária no Brasil, Martins introduz dois conceitos novos. Trata-se dos conceitos de comunidade e de pobre. A partir desses dois conceitos, Martins busca encontrar um elemento unificador das diversas lutas sociais no campo. A interpretação de Martins se coloca em clara oposição à idéia dominante que considera que o trabalho assalariado deve ser o critério unificador das lutas sociais. Nesse livro, o autor, a partir da análise das especificidades das lutas dos posseiros, dos indígenas, dos pequenos proprietários, dos assalariados e dos sem-terra, propõe a comunidade como novo “sujeito social”. Martins se refere à multiplicação dos grupos de saúde, hortas comunitárias, clubes de mães, movimento do custo de vida, Movimento dos Sem-Terra, a Comissão Pastoral da Terra e as Comissões de defesa dos Direitos Humanos. Para o autor, o conceito de pobre permite explicar o elemento que organiza as práticas dessas comunidades. “A categoria de pobre (...) tem uma definição ética e histórica que implica considerar os resultados da produção, não só a acumulação do capital, mas também a acumulação da pobreza que dela resulta” (Martins, 1985: 106). A visão de Martins se insurge contra as análises economicistas centradas na produção material.
Para Martins, o campesinato brasileiro é uma classe social. O camponês não é um resíduo, mas resultado das características do desenvolvimento histórico do capitalismo brasileiro. Na sua perspectiva analítica, “o nosso campesinato é constituído com a expansão do capitalismo, como produto das contradições dessa expansão” (Martins, 1983: 16). Martins critica as interpretações político-ideológicas que classificam indevidamente as lutas camponesas como “populistas”. Para o autor, o campesinato está inserido no presente do capitalismo, faz parte das suas contradições. Por isso é importante “ouvir o campesinato”. A resistência do campesinato não se limita a um mundo isolado. Segundo Martins, “a resistência do camponês à expropriação, ao capital, vem de dentro do próprio capitalismo. Que essa resistência só adquire sentido pela mediação das contradições fundamentais que contrapõem operários e burgueses, pois a questão agrária é uma entre outras expressões das contradições do capital” (Martins, 1983: 18).
Considerações finais
Para Martins, o capitalismo nos países como Brasil se caracteriza pela coexistência de diferentes ritmos e tempos, o que significa a permanência de relações sociais não tipicamente capitalistas. Apesar de reconhecer a complexidade do mundo rural, Martins nega a possibilidade de entendê-lo de forma separada e independente. Segundo ele, não se pode separar o que o próprio capitalismo já uniu.
Na visão de Martins, o fato de os trabalhadores produzirem seus próprios meios de subsistência é expressão de relações não-capitalistas, recriadas e reproduzidas pela acumulação do capital. Mas, para ele, considerar a compra e venda da força de trabalho como critério para definir o caráter capitalista ou não das relações sociais é insuficiente, dada a complexidade das relações sociais existentes no mundo rural brasileiro. Essa complexidade se expressa no que Martins chama de “tipos intermediários”: o parceiro, o colono, o caipira e o arrendatário. É por isso que para Martins o capitalismo não é necessariamente destruidor das relações não-capitalistas. Para ele, o capital não compreende apenas a relação social baseada no salário: “a exploração capitalista assume diferentes formas, não só a partir das condições sociais e econômicas que encontra, mas também a partir das relações sociais que cria, das mediações que gera” (Martins, 1985: 14).
Martins considera que a propriedade privada da terra representa a mediação das relações sociais capitalistas no campo. Por isso, na sua visão, é insuficiente utilizar a compra e venda da força de trabalho como critério para identificar a existência das relações sociais capitalistas. É através da terra, como equivalente de capital, que os sujeitos estabelecem suas relações sociais no campo. Em outras palavras, de acordo com Martins, a “renda territorial capitalizada” permite vincular a produção camponesa às necessidades da reprodução ampliada do capital e a insere nas leis do mercado. Assim, para Martins, a identidade dos camponeses não pode ser definida a partir da sua relação com a natureza e, sim, pela “renda capitalizada”, ou seja, pelas suas relações com a sociedade capitalista.
As análises de Martins tomam o “mundo rural” como ponto de partida metodológico, porque nele se expressam de forma mais clara os diferentes ritmos e tempos do desenvolvimento capitalista. Como se viu anteriormente, o objeto central da pesquisa de Martins é o processo de desenvolvimento do capitalismo brasileiro e não apenas o mundo rural.
O campesinato desempenha um papel metodológico e analítico fundamental na construção da explicação sociológica de Martins acerca da sociedade brasileira, que, na sua visão, se afasta das interpretações maniqueístas e simplistas dos mediadores da luta pela terra. Para Martins, o campesinato revela a “desumanização própria da chamada acumulação primitiva. Uma função histórica que o operariado não pode cumprir e na qual não pode reconhecer-se. Mas o campesinato também tem um lugar histórico enquanto categoria com funções analisadoras-reveladoras, metodológicas, para utilizar uma concepção de Henri Lefebvre” (Martins, 2000: 57). Da mesma forma que em Marx, Martins encontra no campesinato a possibilidade de desvendar e explicar a destruição social que o capital provoca quando se apropria da terra e da força de trabalho. Segundo Martins (2000: 57), “essa consciência o operário não tem nem pode ter, pois essa violência não está no âmbito de sua situação social e de sua consciência possível. Portanto, a compreensão da força histórica do campesinato em diferentes sociedades depende grandemente da boa compreensão de seus limites e debilidades e não da apologia gratuita, apaixonada e cúmplice”.
Martins afirma que o tipo de desenvolvimento industrial no Brasil não conseguiu absorver os excedentes de população expulsa do campo por causa da modernização da agricultura, da impossibilidade de acesso à terra e da concentração fundiária.
Martins retoma de Marx e de Lefebvre o método de análise e de interpretação do processo histórico do capitalismo. Se Marx escolheu Londres como seu principal ponto de observação, o seu método de análise buscava a apreensão do significado do capitalismo por meio de seus desdobramentos na Irlanda, na Espanha, na Índia, na Rússia e na América. Quando Marx focaliza sua análise na Irlanda, ele não a concebe apenas como um local onde se repete o processo capitalista da metrópole. Segundo Martins, Marx buscou mostrar que o mesmo processo de reprodução ampliada assume diversas formas sociais “em lugares diferentes como a América escravista, a Irlanda e a Rússia camponesa, a Índia de antiga civilização, mas subjugada, com seu sistema de castas integrado na lógica capitalista do lucro e da razão” (Martins, 1996b: 18).
A noção de formação econômico-social utilizada por Martins engloba dois aspectos da práxis que faz o homem produtor da sua própria história: a natureza (o econômico) e a sociedade (o social). Esse duplo aspecto da práxis explica, segundo Martins (1996b: 19) “o desencontro entre o econômico e o social na sociedade capitalista (que) expressa o avanço do econômico em relação ao social, este atrasado em relação àquele. O econômico anuncia possibilidades que a sociedade não realiza ou realiza com atraso”.
Essas três noções – produção capitalista de relações não-capitalistas, formação econômico-social e desenvolvimento desigual – formam o núcleo conceitual que possibilita a Martins construir uma explicação acerca do mundo rural e do capitalismo brasileiro que o diferencia de outros autores e marca a originalidade da sua contribuição para uma sociologia crítica, fortemente enraizada, através de uma ampla pesquisa empírica, na sociedade brasileira. A partir desse núcleo conceitual, Martins vai tecendo um conjunto articulado de outras noções, uma rede de conceitos, com uma certa hierarquia, derivados daquele triângulo de conceitos acima apresentados, que lhe possibilitam apreender os diferentes ritmos e tempos do processo de de-senvolvimento capitalista brasileiro. É possível afirmar que, através das mediações dessas categorias e ao final de um processo que se inicia com a formulação de hipóteses, testadas através de longas pesquisas empíricas, obtém-se uma interpretação original sobre o de-senvolvimento capitalista brasileiro e seus reflexos no mundo rural.
A idéia da diversidade e do ritmo lento do desenvolvimento do capitalismo na agricultura encontra-se na obra de Lênin O desenvolvimento do capitalismo na Rússia. Para Lênin, a proletarização do campesinato é válida apenas como tendência geral e o capitalismo nem sempre precisa de um proletário livre de terra. Lênin afirma que em “nossas obras se compreende freqüentemente com excessiva rigidez a tese teórica de que o capitalismo requer um operário livre, sem terra. Isto é justo como tendência fundamental, mas na agricultura o capitalismo penetra com excessiva lentidão e através de formas extraordinariamente diversas” (Lênin, 1974: 166-67). Essa concepção de Lênin permite concluir que o capitalismo pode se desenvolver sem proletarização, reproduzindo e preservando formas sociais diversas como o campesinato. Martins (1989) faz referência a essa idéia de Lênin para fundamentar sua crítica às concepções dogmáticas e evolucionistas de um certo tipo de marxismo. Mesmo assim, segundo Martins (1989), o próprio Lênin não teria escapado ao dualismo e ao evolucionismo.
A explicação sociológica de Martins baseia-se na crítica ao evolucionismo e ao uso dogmático dos conceitos de modo de produção e de formação econômico-social, presente na literatura brasileira de origem marxista e especialmente nas obras dos autores brasileiros que discutiram a origem feudal da sociedade brasileira. Para desvendar as insuficiências das análises que buscam entender o Brasil a partir de seu passado feudal, Martins argumenta que o capitalismo brasileiro, pela sua própria origem histórica, utiliza, produz (e reproduz) relações sociais não-capitalistas.
Martins recusa um Marx acabado, concluído, dogmatizado, considerado instrumento de poder e, portanto, ideologizado, fetichizado (Martins, 1996b). Nessa perspectiva, o pensamento de Marx tem um sentido histórico, porque situado numa época determinada. Por isso, o pensamento de Marx é inconcluso, com muitas questões ainda não resolvidas. Lefebvre estava interessado em compreender e explicar a relação entre o modo de pensar e a práxis de Marx. Em outras palavras, de acordo com Martins, para Lefebvre as transformações sociais não seguem um curso predeterminado e evolucionista. Martins utiliza esta idéia como um formidável ponto de apoio para entender e explicar a produção capitalista de relações não-capitalistas, diferenciando a sua conceituação do conceito de relações pré-capitalistas. A categoria produção ou reprodução de relações-capitalistas certamente está em Marx; Lefebvre chama a atenção para sua importância e é Martins que a retoma, tornando-a referência para sua análise das particularidades do processo de desenvolvimento do capitalismo brasileiro no campo.
Referências bibliográficas
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Notas
[1] O presente artigo é resultado da minha tese de doutorado em sociologia intitulada A produção de conhecimento social sobre o “mundo rural” nas obras de José de Souza Martins e José Graziano da Silva defendida em fevereiro de 2002 no Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de Rio Grande do Sul (UFRGS). Este trabalho também foi apresentado no VI Congresso Latino-americano de Sociologia Rural "Sustentabilidad y Democratización de las Sociedades Rurales Latinoamericanas", UFRGS, Porto Alegre, 25 a 29 de novembro de 2002.
[2] No seu livro Capitalismo y subdesarrollo en América Latina, Gunder Frank (1970: 3) negava a existência no Brasil, assim como nos outros países da América Latina, de uma “economia dual” e rejeitava a caracterização feudal que outros autores conferiam à agricultura. A pobreza e a ineficiência da agricultura eram resultados do próprio capitalismo. Na sua crítica aos dualistas (referindo-se a Jaques Lambert e Celso Furtado), Gunder Frank (1970: 151) afirma que: “A tese central de todos estes pesquisadores sustenta que o Brasil moderno está mais desenvolvido porque se funda em uma sociedade capitalista aberta e que o Brasil arcaico permanece subdesenvolvido porque não é um conjunto aberto à indústria e ao mundo em geral, e, particularmente, porque não é suficientemente capitalista, mas, pelo contrário, pré-capitalista, feudal ou semi-feudal” (tradução do autor do presente texto).
[3] Essa idéia suscitou a crítica de Paulo Sandroni (1980), indicando Martins como o fundador da concepção da funcionalidade do pequeno produtor dentro do processo de desenvolvimento capitalista. No entanto, a explicação de Martins é mais complexa que isso, pois ele quer mostrar a contradição existente no processo de desenvolvimento capitalista no Brasil que recria e utiliza relações não-capitalistas de produção.
[4] Nesse sentido, Cardoso explicita a posição do grupo: “Não aceitávamos, por outro lado, o bê-a-bá do estalinismo teórico: a infra-estrutura, dinamizada pelo avanço das forças produtivas, que entra em contradição com a superestrutura (a política e a ideologia) e impõe uma ação, que é mais uma ‘resultante’, do que uma ‘práxis’. Quando Sartre publicou as Questions de méthode e, em 1960, saiu a tradução francesa de Histoire et conscience de classe de Lukács, vislumbramos alguma saída para nossos impasses. Curiosamente, foi a partir de interpretações não baseadas na economia e na história, mas, sim, na filosofia, que fomos buscar elementos para uma análise dialética de processos sociais” (Cardoso, 1977: 13).
[5] Ver a respeito, as formulações de Trotsky em sua História da revolução russa.
[6] Sua primeira edição é de 1979.
[7] O tema do desencontro entre a luta pela reforma agrária e a luta pela terra é retomado por Martins no seu último livro Reforma agrária – o impossível diálogo (2000).
[8] Martins critica a noção de “formação econômico-social” que resulta da interpretação marxista de Althusser e é difundida na América Latina por Marta Harnecker no seu manual Conceptos elementales del materialismo histórico.